UMA COMOVENTE CIO-CIO-SAN PASSOU PELO TÚMULO DA ÓPERA. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Carla Camurati é bastante vaiada por sete anos de negligência com a programação própria do Municipal.
Madama Butterfly, ópera em três atos de Giacomo Puccini sobre libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, com base na tragédia homônima do dramaturgo norte-americano David Belasco, foi o título que encerrou a sequência de três óperas esparsas apresentadas pelo Theatro Municipal do Rio de Janeiro neste ano de 2014. Chamar essas óperas esparsas de “temporada lírica” seria um desrespeito com o leitor, uma afronta à sua inteligência.
Antes, porém, de tratarmos daquilo que foi levado ao palco, é preciso tratar de um assunto mais urgente.
Para reflexão
Para os leitores refletirem antes de continuarem a leitura desta resenha, e entenderem melhor alguns dos meus posicionamentos, deixo aqui uma declaração de Alberto Ronchi, secretário de Cultura da cidade italiana de Bolonha, durante a coletiva de imprensa para divulgação da temporada 2014-2015 do Teatro Comunale di Bologna:
“As fundações lírico-sinfônicas são um valor, e não são um problema. Devemos ter sempre esta noção presente e nós nos movemos nesta direção”.
Em seguida, defendendo o financiamento público às instituições culturais, completou Ronchi: “É o financiamento público que garante a diversidade da oferta, porque este é um lugar que tem um problema de oferta, não um problema de demanda. Se você não oferece ao público certo tipo de espetáculo, não pode lamentar depois que não há público”.
Qualquer semelhança com o nosso Municipal do Rio de Janeiro não é mera coincidência.
Vaia forte e mais do que merecida
Um teatro de ópera tem que montar ópera. Qualquer pessoa com dois ou três neurônios na cabeça sabe disso. Carla Camurati, presidente da Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro, passou os últimos sete anos aparentando não saber, ou pelo menos fingindo não saber, presa em um mundinho limitado só dela.
E, sempre que questionada sobre o assunto, mais especificamente sobre a ausência de uma programação decente de óperas em um teatro de ópera, apelava (e ainda apela!) para subterfúgios e para desculpinhas imaturas, do tipo: “Também temos que montar balés”, como se uma coisa excluísse a outra; ou “Não é só programação”, esquecendo-se que administrar um teatro como o Municipal exige cuidados TAMBÉM com a programação; ou até a estapafúrdia “Estamos em ano de eleição”, sugerindo nas entrelinhas, mas sem ter coragem para dizê-lo às claras, que em ano de eleição os políticos preferem direcionar recursos públicos para outra coisa.
É por tudo isso que começo pelo fim: foi a administradora do Municipal – e não a diretora do espetáculo – que recebeu uma tremenda vaia na última sexta-feira, dia 5 de dezembro, quando subiu ao palco no final da terceira apresentação da ópera Madama Butterfly, que ficou em cartaz na casa por apenas quatro récitas, encerradas no domingo, dia 7. Antes disso, na estreia da ópera, Camurati também fora vaiada, segundo relatos de várias fontes.
Há quem pense que a vaia é uma demonstração de má educação. Não é. A vaia tão somente é uma demonstração de insatisfação, de não concordância com uma atitude, um método, uma política etc. Poderíamos considerar má educação se a diretora tivesse sido, por exemplo, xingada, como foi Dilma Rousseff na abertura da Copa do Mundo, mas isso definitivamente não ocorreu. O que ocorreu foi apenas a vaia, nada mais.
Particularmente, até por minha posição de quem foi ao Municipal para analisar a performance apresentada no palco, não vaiei, mas apoiei a vaia, inclusive em conversas depois do espetáculo. Era mais do que merecida e dona Carla estava apenas colhendo o que plantou. Ou melhor, o que não plantou em sete anos (não foram sete meses) à frente do Municipal em termos de programação artística própria.
Aplausos, portanto, para o público, ou pelo menos para boa parte dele, que finalmente demonstrou ter senso crítico a respeito de uma administração medíocre, nivelada por baixo, fechada em si mesma e que passou sete anos negligenciando a programação própria da casa. Senso crítico esse que, aliás, boa parte da imprensa e da crítica especializada não demonstra ter – pelo menos boa parte da imprensa e da crítica especializada do Rio de Janeiro.
A maior prova de que a programação própria do Municipal sempre ficou em segundo plano, sempre ficou para depois, foi dada pela ex-secretária de Cultura, Adriana Rattes, que, ao deixar o cargo e ainda que tardiamente, reconheceu ao jornal O Globo: “Depois da reforma do Municipal, foi falho não termos centrado esforços na programação. Faltou esse direcionamento, de termos uma programação mais intensa, diversificada e forte”.
Depois dessa declaração de quem, até pouco tempo, era sua superiora, só resta à dona Carla a resignação e a aceitação da vaia que fez por merecer por ter transformado o Theatro Municipal do Rio de Janeiro no túmulo da ópera. Ali a ópera jaz, e apenas ressuscita por quatro ou cinco récitas de duas a três vezes ao ano.
A nova Central Técnica de Produções
Nesses sete anos, ninguém nunca notou dona Carla cobrando do Governo do Estado melhores condições para a programação da casa, pois ela sempre aceitou o orçamento do jeito que este veio. Se viesse zerado, aceitaria do mesmo jeito, e passaria o ano alugando o teatro para terceiros – o que, aliás, ela já fez durante todo esse tempo, com uma ou outra produção própria só para constar.
Em sua gestão, somente duas coisas a mobilizaram realmente: a reforma do Theatro Municipal, concluída em 2010 (aparentemente para que a casa pudesse ser alugada em melhores condições); e a construção de uma nova Central Técnica de Produções (CTP), apelidada pela dirigente com o nome afrescalhado de “Fábrica de Espetáculos”. Esse nome é estranhamente bastante semelhante ao de uma organização civil chamada “Spectaculu – Escola Fábrica de Espetáculos” (veja o site aqui), fundada, dentre outros, por Gringo Cardia, profissional que, ao lado de Camurati, é um dos idealizadores da nova CTP.
É claro que a imprensa chapa branca carioca também nada fala, nada questiona, sobre esta semelhança de nomes. Além disso, não se sabe bem o que essa ‘fábrica” do Municipal vai fabricar afinal de contas, uma vez que o Theatro não produz praticamente nada. Quem sabe não será mais um equipamento para ser alugado para terceiros na maior parte do tempo, não é verdade? Quem sabe não é isso?
De qualquer forma, questionada por e-mail sobre a data de inauguração da nova CTP, a Assessoria de Imprensa do TMRJ limitou-se a dizer que “A inauguração da Fábrica de Espetáculos está na agenda do governador Luiz Fernando Pezão, aguardando definição de data”.
No entanto, a julgar por publicações recentes do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, nas quais podemos perceber que vários itens (bens/equipamentos) que farão parte da nova CTP ainda estão sendo licitados, das duas, uma: ou ela não será inaugurada neste mandato (o que seria um absurdo, visto que dona Carla centrou sua gestão nos últimos anos neste empreendimento, deixando a programação sempre de lado), ou será inaugurada ainda incompleta.
Teatrinho de aluguel e de balé
Para quem tem dúvidas, atualizo alguns poucos dados estatísticos que eu havia divulgado parcialmente há alguns meses, que provam de maneira inequívoca o fato de que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro é um teatrinho medíocre de aluguel e de balé.
Por títulos (entenda-se: programas diferentes apresentados, sem contar reapresentações): entre março e o fim de dezembro terão subido ao palco do TMRJ apenas 14 produções com pelo menos um dos seus Corpos Artísticos, e nada menos que 68 produções de terceiros (OSB, Opes, Dell’Arte e outros produtores). Portanto, a produção própria do Municipal representa apenas 17,07% dos títulos apresentados em seu palco no ano de 2014.
Por apresentações (aqui as reapresentações são contadas): entre março e o fim de dezembro terão subido ao palco do TMRJ 72 concertos ou espetáculos com pelo menos um dos seus Corpos Artísticos (44,17% do total), e 91 concertos ou espetáculos de terceiros, sendo que:
a) dessas 72 apresentações com pelo menos um dos Corpos Artísticos do Municipal, nada menos que 44 (61,11%) referem-se apenas aos balés Nuestros Valses/Novos Ventos, La Bayadère, Coppélia e O Quebra-Nozes, enquanto apenas 16 (22,22%) referem-se a récitas de óperas; e
b) do universo total de 163 apresentações no ano de 2014, incluídas as produções próprias e as de terceiros, e sem contar eventos fechados que não são divulgados no site da casa, as 16 récitas de ópera representam irrisórios 9,81% de toda a programação 2014 apresentada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, assim como os concertos da OSTM (aí incluídas quatro apresentações da Série Música e Imagem) respondem por miseráveis 3,68% da programação.
Observação: neste levantamento, apresentações de séries como Ópera do Meio-Dia ou Ballet do Meio-Dia não foram computadas, por se tratarem de espetáculos de pequeno porte, de caráter alternativo, apresentados em local e horário alternativos. Por óbvio, tais apresentações só poderiam ser comparadas com outras também alternativas.
Locatários divulgam datas para 2015
Dois tradicionais locatários do Municipal, a Dell’Arte e a Orquestra Petrobrás Sinfônica, já anunciaram as suas respectivas temporadas para 2015. No Municipal é sempre assim: primeiro os locatários, depois o locador. Se o Municipal fosse um teatro sério, já teria divulgado também sua temporada para o próximo ano, como já o fizeram o Municipal de São Paulo, o São Pedro, a Osesp, a OFMG etc., etc.
Mesmo com a possibilidade de haver mudança de direção, o teatro tem a obrigação de divulgar o quanto antes sua programação, pois, se houver mesmo mudança e os novos diretores quiserem alterar tudo, este não seria um problema da direção atual.
A montagem da Butterfly
Não, eu não me esqueci da Butterfly. A produção levada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi requentada do começo dos anos 2000, e muito provavelmente só foi escolhida por ser mais barata e mais fácil de levar ao palco. A concepção de Carla Camurati, elaborada em uma época de vacas magras em São Paulo, é bastante simples. Tão simples que chega a ser simplória. Sua direção de cena, porém, funciona melhor e certamente evoluiu em relação ao trabalho apresentado aqui no Rio em 2002.
O “cenário” único de Renato Theobaldo é de um amadorismo constrangedor, principalmente para quem como eu, no fim de semana anterior, viu cenários de verdade em São Paulo, tanto no Theatro São Pedro, como no Municipal paulistano. A iluminação correta e, por vezes, sensível de Carina Stassen atenua um pouco a pobreza do cenário nos momentos em que o palco fica mais escuro, como no fim do segundo ato, por exemplo, mas é de dar dó olhar para o palco claro e ver aquele cenário tão mal acabado. Já os figurinos de Cica Modesto são, em geral, não mais que razoáveis, e, por vezes, pouco inspirados.
Na récita do dia 5, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro esteve muito bem sob a condução bastante sensível de Isaac Karabtchevsky. O acompanhamento da cena entre Cio-Cio-San e Sharpless no segundo ato, bem como aquele do coro a bocca chiusa foram grandes momentos do conjunto. O Coro do Theatro Municipal, preparado por Jésus Figueiredo, também esteve muito bem, e cumpriu seu papel sem maiores dificuldades, também se destacando naquele momento sublime a bocca chiusa.
Patrick Oliveira, Ciro D’Araújo, Vivian Delfini e Ivan Jorgensen estiveram bem. Sergio Weintraub deu boa conta de Goro, assim como Daniel Soren esteve muito bem como o tio Bonzo. Merece um destaque todo especial o menino David Weintraub (seria filho ou parente do tenor Sergio?), que encantou o público como o filho de Cio-Cio-San.
Três solistas brasileiros do nosso primeiro escalão participaram da montagem: o barítono Rodolfo Giugliani ofereceu uma ótima prestação como Sharpless, vocal e cenicamente bastante seguro numa belíssima atuação. Exatamente o mesmo se pode dizer da Suzuki da mezzosoprano Denise de Freitas. O tenor Fernando Portariinterpretou o canalha Pinkerton à perfeição, e teve várias oportunidades de inebriar a plateia com o frescor de sua maturidade vocal. Passagens como Bimba dagli occhi pieni di malia e Addio fiorito asil brilharam intensamente na voz do artista.
A soprano japonesa Hiromi Omura completou o elenco interpretando a protagonista, Cio-Cio-San, ou Madama Butterfly, como preferirem. E ela ofereceu no Rio de Janeiro uma interpretação comovente da japonesa que espera o retorno de seu amor americano. Musicalmente, a soprano deu muito boa conta do recado, com uma voz dotada de belíssimos agudos e de graves seguros. Vez ou outra, pôde-se notar uma nota menos “encaixada” no registro médio, mas nada que tenha maculado sua performance geral.
É difícil, porém, transcrever em palavras a imensa qualidade do trabalho cênico da artista. Sua gueixa é construída meticulosamente. Vemos nitidamente em sua expressão, ao longo da ópera, amor, paixão, esperança, e depois decepção, humilhação e desespero. Não tenho dúvidas em afirmar que, em quase 20 anos de presença assídua em nossos teatros de ópera, esta foi a interpretação mais tocante que tive o privilégio de presenciar.
É uma grande pena que Hiromi Omura e os demais artistas que participaram dessaMadama Butterfly tenham sido obrigados a ouvir as vaias do final, pois nenhum deles as merecia. Que tenham consciência de que tais vaias tinham endereço certo: uma administradora incapaz, que não faz a menor questão de que o teatro de ópera do Rio de Janeiro tenha uma programação lírica à altura da cidade e da sua população.
Foto do post: Sheila Guimarães
Uma chatice esse texto. Citar Secretario de Cultura de Bologna e ficar martelando em Carla Camurati, não vai melhorar em nada, pois eles vão continuar sendo apoiados pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. Qual e a sua, deseja ser o Secretario de Cultura ou o diretor do TMRJ
ResponderExcluirNão sera mesmo !
De fato o Leonardo Marques tem essa vertente. Fala somente oq lhe interessa. oq é pertinente ao canto lírico, pois o mesmo não sabe, divaga! Gostaria de ver uma crítica construtiva, e não somente rasgar elogios ou não... Devo lembrar que esse tipo critica não é privilégio dele, mas sim uma unanimidade dentre os críticos.
ResponderExcluirRealmente Leonardo Marques divaga, só sabe é puxar saco dos cantores brasileiros e manter uma boa relação com eles. E meter o pau em Carla Camurati.
ResponderExcluirE só.
Permitam-me discordar, mas acho que os senhores que comentaram aqui estão longe da verdade. Primeiro porque Carla Camurati já não é mais presidente do Municipal, graças em parte às críticas pertinentes de Leonardo Marques à sua gestão catastrófica, só interessada em obras. Sabemos bem, como comprova o escândalo da Petrobras, o que obras públicas significam neste país. Portanto "eles" não estão mais sendo apoiados pelo Governador. Se perguntarem, vão dizer que ela saiu porque quis, mas sabemos que não é bem assim, esta é só a versão oficial, assim como existe a versão oficial segundo a qual a refinaria de Pasadena foi comprada com base em um relatório técnico falho. Os ingênuos acreditam que eles não sabiam de nada. Na verdade, Camurati demitiu-se antes de ser demitida pela nova secretária de cultura, com quem ela não mantém boa relação, e também porque a pressão sobre ela aumentou depois das vaias que recebeu recentemente em cena aberta, e que nem todos relataram nas críticas.
ResponderExcluirQuanto à afirmação de que o crítico queira ser secretário de cultura ou diretor do Municipal, me parece nada além de fantasia, pois ele me parece inteligente o suficiente para saber que qualquer um que exerça esses cargos terá enormes dificuldades pela frente, tendo que convencer políticos incompetentes e/ou mal intencionados sobre a importância de investir em cultura. Ficar de longe só avaliando é muito mais fácil e confortável. E, afinal, alguém precisa fazer isso, não é verdade? Se ele não fizesse, a propósito, será que a tal Camurati ainda não estaria firme e forte à frente de mais um ano medíocre do Municipal?
Não concordo também com esse comentário que sugere que ele não entende de canto lírico. Pelo contrário, parece-me um dos mais equilibrados críticos que temos hoje. Já o vi falando bem e mal dos mesmos cantores em mais de uma oportunidade, salvo exceções como talvez um Fernando Portari, que está mesmo acima de qualquer crítica. Pelo menos no momento está. Amanhã não sei. E o Leonardo tem também uma característica peculiar em relação a todos os críticos que escrevem para sites: escreve muito bem (refiro-me à qualidade da escrita). Muitos críticos da internet perdem a credibilidade exatamente porque escrevem muito mal, muitas vezes sem se fazerem entender direito.
E para terminar, não entendo que ele "puxe o caso de cantores brasileiros". Já o vi falando bem e mal (às vezes muito bem, às vezes muito mal), seja de cantores brasileiros ou estrangeiros. E se os elogios se repetem para um cantor, geralmente é porque o cara é bom mesmo, como um Portari que eu já citei, como um Sávio Sperandio. Manter boa relação com os cantores? Não entendi bem o que isso quer dizer, mas se for alguma coisa em relação a cumprimentar os caras depois de uma apresentação, ou coisa parecida, todos os críticos fazem isso de vez em quando, o Leonardo, o Marcus Góes, o Ali, o Seta, o Irineu, o João, o Nelson, o Eduardo, o Sidney, todos. Se for assim, não devemos mais ler crítica nenhuma.