DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DA CUTURA. FERNANDO MEIRELLES E A ÓPERA. ARTIGO DE CLEBER PAPA NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Tarcísio Meira em foto de Gal Oppido
Nos "Dilemas...(95)" encerrei sugerindo no texto as várias formas de provocação. De origem latina, a provocação se transforma conforme sua natureza: se ato, palavra ou efeito. Pode ser uma atitude desrespeitosa e, por decorrência, vista como insulto ou ofensa. Ainda no âmbito das atitudes, pode parecer petulância, atrevimento, se usada como forma de irreverência. Pode ser uma simples tentativa de chamar a atenção, de provocar uma reação de rejeição ou afeto e todos os antagonismos relativos, inclusive aqueles de natureza sexual. Colocada em contextos específicos, provocar também pode sugerir um chamamento à briga, um desafio.
Natureza complexa a desta palavrinha, não é? Coisa para os linguistas ampliarem um pouco mais. Eu cá limito-me a estas considerações - reflexões, melhor dizendo - sem tirar qualquer proveito dela que não seja evitar o uso desta atitude sugerida, pois corre-se o risco de se errar feio se não nos ativermos naquele simples objetivo de levar alguém a perceber alguma coisa que valha a pena ser vista.
Considerando a gama de possibilidades que a palavra - o verbo - apresenta, melhor é, parece-me, considerar a hipótese de provocar como algo a ser mantido à distância para não se correr o risco de contaminação e transformar o que poderia ser um gesto eventual em vício.
Você talvez esteja se perguntando aonde quero chegar com isto. A pretensão é simples. Como sempre, procuro refletir acerca do fazer artístico. Acho admissível, por exemplo, que o artista use a sua forma de expressão para provocar seu espectador, seja para induzir a um estado de alma, uma perplexidade, ao êxtase, até mesmo à repulsa. Isto me parece natural da arte e é um dos aspectos que torna a arte legítima.
Vejamos a foto que abre este post, por exemplo. Gal Oppido* fez a foto. A despeito da absurda qualidade do trabalho, o motivo também surpreende: o ator Tarcísio Meira** com sua personalidade exposta em todas as marcas do rosto. Duas formas de expressão e dois artistas em harmonia, garantindo ao observador várias "leituras" da mesma fotografia.
Observe o trabalho abaixo do mesmo artista:
Vista da Praça Roosevelt em São Paulo, a partir da SP Escola de Teatro - por Gal Oppido
São tantos elementos inseridos nesta visão singular já a partir do título que, revelado o autor, estamos certos de termos ao nosso alcance a obra de um artista reconhecido como poucos.
Mas o importante desta reflexão é que, além do objeto cultuado, há o reconhecimento, a legitimidade de quem o produziu conquistada a duras penas, através de muitos anos de dedicação, do cumprimento de todos os ritos que asseguraram a exposição deste talento e a oferta do seus resultados a todos que tiverem acesso à sua arte.
Para não ficarmos somente na visão deste autor, vale como citação "Todo o complexo que comporta a produção, a difusão e a recepção das obras de arte por parte de um público colabora na determinação, enfim, da legitimidade de uma dada produção (material e/ou conceitual) como arte. Detalhes minuciosos, por vezes quase invisíveis estão neste tipo de validação " (Rosane Kaminski). Muito embora o sistema de circulação de bens culturais seja relativamente autônomo, há uma relação direta entre ele e os sistemas de produção. Isto é fácil de entender quando se percebe que a validação da arte se dá a partir da relação entre artistas e outros artistas com a intervenção de outros agentes e da relação com outras obras consagradas pela história da arte. Ratificando este pensamento com a mesma autora citada, "por um lado, há o olhar do teórico especialista em arte, capaz de detectar nas obras os elementos formais e temáticos coerentes com as poéticas do seu tempo. Enquanto estes teóricos desempenham a função de críticos ou mesmo de curadores, por outro lado se destaca também a atuação do historiador, cujo trabalho de documentação e análise colabora para preservar a memória e o sentido de patrimônio artístico dentro do grupo social".
Ainda que se possa temer a dependência da produção artística e o temor desta dependência dos sistemas de mecenato e patrocínio como cita Pierre Bourdieu, não podemos conferir aos apoiadores, mecenas e patrocinadores a instância com poder exclusivo para legitimar a arte de determinado grupo, artista ou sistema de produção. Cabe a eles incentivar, estimular, propor a avaliação, auxiliar os processos de exposição, sem intervenção direta na produção artística em si. Se isto couber ao poder público, a seus gestores cabe a ação nos limites da sua competência de fomento, difusão ou formação de artistas, sendo esperado nestas relações, a adoção de princípios éticos e respeito aos mecanismos que reconhecem os artistas legitimados na forma de expressão artística requerida.
Isto significa que não cabe diretamente ao poder público legitimar artistas, mas reconhecer em cada forma de expressão aqueles que reconhecidamente têm notória especialização em cada área e, caso a caso, integrar a rede de suporte às artes.
Ao artista, por sua vez, tendo interesse em difundir-se numa vertente de sua vocação e escolha,deve procurar desenvolver seu trabalho, obedecidas as "liturgias" ou subvertendo-as para tornar-se reconhecido e apoiado pelos agentes, curadores, críticos, historiadores etc. Lembremos sempre que as motivações internas do próprio meio artístico e da transformação da arte e sua produção é que consolidarão o que de fato permanece como instancias legítimas na história da arte.
Tudo isto, pode ser amarrado com uma situação recente no universo da ópera no Brasil. O mundialmente reconhecido diretor de cinema Fernando Meirelles dirigirá uma ópera. Após declarar que não conhece a linguagem, resumiu a inesperada situação como " Um convite feito por engano. Aceitei por irresponsabilidade", e mais, diz ainda “Nunca gostei de óperas. Conheço algumas árias famosas, mas só assisti a cinco montagens na vida”. Tirados os efeitos e, vá lá, o humor das frases (e o habeas corpus preventivo implícito), o que sobra de fato é a expectativa de que faça um bom trabalho e que sua investida no gênero deixe algum residual. Pode ser até que tudo faça parte de um jogo de cena desnecessário e que tudo isto esteja atrelado à intensa divulgação resultante.
Por outro lado, não se pode atribuir ao cineasta a responsabilidade pela escolha do seu nome. Ele não se colocou à disposição do espetáculo e, tendo sido convidado, certamente viu ali um desafio a resolver e a perspectiva de colocar nos cinemas - sua tribuna conveniente - a sua versão da obra que lhe foi oferecida. Ao ofertar esta visão e possibilidade, atribuindo valor ao resultado cinematográfico, cumprindo os rituais de direitos de intérprete a cantores e músicos e todas as etapas para que se tenha acesso à obra, é possível até que se reconheça aí no futuro alguma contribuição à ópera.
Esta movimentação toda não agradou algumas pessoas que atuam na ópera inclusive levando a manifestações nas redes sociais contrárias à admissão de um neófito auto declarado sem qualquer ligação ou interesse neste tipo de teatro. Esta rejeição a Meirelles à frente de um novo espetáculo se deu muito mais pelo teor das entrevistas e por um grupo relativamente fechado. Possível discussão longa esta, já que vários cineastas internacionais bem sucedidos já se dedicaram à ópera com excelentes resultados e cumprindo os ritos de legitimação usuais. Mesmo no Brasil, em outros momentos, vários diretores já passaram pela ópera, com maior ou menor aceitação e quase sempre sem qualquer reclamação direta, quando muito observações veladas por um ou outro trabalho mal sucedido, pela imperícia na direção de cantores e de coro ou coisas parecidas. Também são notórios diretores de teatro e ópera que se inseriram naturalmente no cinema e televisão, caminho que me parece até mais natural e seguro dadas as especificidades e dificuldades do teatro e da ópera.
Finalmente, para o público em geral, me parece, este não é um tema que o motive. As plateias não são sensíveis a estes bastidores, parece-me. Talvez os puristas torçam o nariz para uma ou outra coisa no processo.
Certamente a questão toda não está no diretor em si, mas, por tudo isto que expus acima, pela natureza e origem do convite que foi feito, pelo difícil momento desfavorável para os criadores brasileiros na área e - não se pode ignorar isto - certo desprezo ou deboche que transpareceu na comunicação do novo trabalho.
Não é fácil olhar a Cultura sob o ponto de vista do último segundo. Sempre a história. A história é que nos dará ou não razão. Felizmente.
Cleber Papa
Fonte: http://blogdocleberpapa.blogspot.com.br/
* Gal Oppido é fotógrafo, arquiteto, músico e desenhista brasileiro.
** Tarcísio Meira é ator de teatro, cinema e televisão brasileiro. Vale a pena também conhecer o blog dedicado a ele.
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