THAÏS DE MASSENET, GALLET E PODA : O ACONTECIMENTO DO ANO NO THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO. CRÍTICA DE FABIANA CREPALDI NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.



Reza a lenda que no século IV da era cristã, em Alexandria, capital cultural e econômica do Egito, viveu Thaïs, a cortesã que se converteu e virou uma santa da Igreja Ortodoxa. 


Foi baseado na história de Santa Thaïs do Egito que o célebre escritor francês Anatole France, Nobel de Literatura em 1921, escreveu seu romance Thaïs. A partir do livro, publicado em 1890, logo surgiu, em 1894, a ópera homônima de Jules Massenet, com libretto de Louis Gallet.

Fundada por Alexandre o Grande e com sua famosa biblioteca ligada ao Museu, o Templo das Musas, foi em Alexandria que se desenvolveu importante parte da ciência antiga. Foi lá que Euclides formulou seus teoremas e axiomas da geometria; foi lá que o genial Arquimedes formulou as leis da alavanca e do empuxo. Dominada pelos gregos e, posteriormente, pelos romanos, boa parte da filosofia grega foi lá cultivada.

Na época de Thaïs, paganismo (egípcio, grego e romano), cristianismo e judaísmo lutavam por espaço em Alexandria. Os cristãos haviam sido perseguidos e tiveram que viver escondidos por um bom tempo, mas Thaïs já assistiu à ascensão do Cristianismo e à decadência de Alexandria.

A novela de Anatole France nos conta que Thaïs nasceu em família pagã. Porém, o escravo Ahmès, em quem ela encontrou o amor e o afeto que os pais não lhe souberam dar, a conduziu ao Cristianismo e ao batismo. Cristão fervoroso, Ahmès pregava que após a morte, no Paraíso, os escravos alcançariam a glória e os patrões, sofrimento. Na primeira oportunidade o escravo foi falsamente acusado de roubo e crucificado – punição comum para ladrões na época. Após longa agonia, Ahmès morreu como Cristo e tornou-se, para a Igreja Ortodoxa, São Teodoro o Núbio. Após a trágica morte de seu amigo e pai espiritual, Thaïs concluiu que ser boa e justa trazia sofrimento; resolve ganhar a vida como cortesã.

Anatole France também nos apresenta Paphnuce, personagem importante na história dos primeiros cristãos – que na ópera ganhou o nome de Athanaël, mais melódico, mais francês. Filósofo de Alexandria convertido ao cristianismo, abriu mão de todos os seus bens e tornou-se cenobita, vivendo de oração e penitência. Ao contrário dos ermitões, que viviam sozinhos e isolados no deserto, os cenobitas, embora isolados do mundo secular, viviam em comunidade. Quando ainda era garoto, Athanaël havia visto Thaïs atuando no teatro, em Alexandria, mas faltaram-lhe dinheiro e coragem para ir à casa da cortesã. Athanaël agradecia a Deus pelas circunstâncias que haviam evitado que seguisse os impulsos da carne, mas começou a ter sonhos e visões em que Thaïs lhe aparecia. Resolveu ir procurá-la e convertê-la. É no momento em que Athanaël apresenta aos outros monges o seu projeto que começa a ópera de Massenet.

Na magnífica montagem de Stefano Poda, que tivemos o enorme privilégio de assistir no Theatro Municipal de São Paulo, quando a cortina se abre nos deparamos com um grande crucifixo e um Cristo vivo, ofegante, trazendo à cena esse personagem que, embora não de forma corpórea, está fortemente presente em todas as cenas.

Ao chegar a Alexandria, na bela ária “Voilà donc la terrible cité! Alexandrie, où je suis né dans le péché!”, Athanaël amaldiçoa a sua terrível cidade natal, onde viveu como pecador e invoca a ajuda dos anjos do céu – na montagem, bandeiras pretas ilustram a invocação. É digna de nota a mudança da música, primeiramente grandiosa, apresentando a cidade e, adiante, violenta, quando Athanaël declara que por sua ciência e beleza, odeia Alexandria. Saiu-se bem, embora sem grande brilho, o barítono Lado Ataneli. Com voz forte e nítida, faltou-lhe, no entanto, um pouco de dramaticidade e era possível perceber que o pigarro na voz o estava atrapalhando. Foi interessante tê-lo aqui, porém, já que foi ele que atuou na gravação do DVD da mesma produção, em Turim, em 2008, ao lado de Barbara Frittoli. Embora não em boa qualidade, esse trecho pode ser visto no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=4xAyzLBamRg .

Através de Nicias, um filósofo rico, seu antigo amigo, atual amante de Thaïs, ele chega à cortesã. A entrada de Thaïs no palco do Municipal de São Paulo é imponente. Ela arrastando, como um pesado fardo, o figurino que havia usado no teatro. No elenco da estréia, surge de forma brilhante a soprano Ermonela Jaho. No último dia da semana em que Nicias pagou para ter Thaïs a seu lado, a cortesã entra cantando que é o ídolo frágil que vem pela última vez. No cenário, o branco que atualmente atribuímos à Grécia Antiga, o preto austero nas roupas; estátuas gregas, talvez de Vênus, já em ruínas, sem as cabeças – seria o embate entre a cabeça cristã e a cabeça Greco-romana? É de comovente beleza o dueto entre Thaïs e o Nicias do ótimo tenor francês Jean-François Borras: nós nos amamos por uma longa semana, amanhã eu serei para você apenas um nome. A cena, com a mesma montagem de Poda, pode ser vista, no You Tube, com a Barbara Frittoli e Alessandro Liberatore: https://www.youtube.com/watch?v=6KuKVCq4lK8 .




Vênus de Milo (Louvre)

Confrontando-se com Athanaël, Thaïs diz só crer no Amor. Musicalmente é marcante o contraste entre a doçura do canto de Thaïs e da música que o acompanha e o rude cantar de Athanaël. Contrastes, aliás, estão presentes em todo o tempo, seja na música, na história, ou no cenário. Doce e rude, branco e preto, luz e sombra, santidade e devassidão, paganismo e cristianismo.
Ao contrário do que se pode imaginar ao ver o confronto, Athanaël chegou em boa hora. Thaïs, ao olhar-se no espelho, nota os primeiros sinais do envelhecimento, dá-se conta de que sua beleza não será eterna, da efemeridade da vida. Em sua bela ária do espelho, Thaïs pede ao espelho “Dis-moi que je suis belle et que je serai belle éternellement!” (diga-me que sou bela e que eu serei bela eternamente). Nessa ária, como em todo o segundo ato, mostrou-se um pouco inadequada para Thaïs a voz da soprano sensação do momento, Ermonela Jaho – premiada por sua Suor Angelica no Royal Opera House, cantora que vem ganhando espaço e importância e que inaugurou, recentemente, o portal de ópera da União Européia cantando Violeta em La Traviata. Ótima atriz, Jaho conseguiu, contudo, nos trazer uma Thaïs sensível, intensa. Por outro lado, Sara Rossi Daldoss, em sua segunda aparição, no dia 28 de julho, foi muito bem em sua súplica ao espelho. Para aqueles que quiserem ouvir uma Thaïs magnífica ao espelho, com voz em plena forma, há a gravação de Alexia Cusin: https://www.youtube.com/watch?v=6uVzSp2UYRU . No cenário, ao fundo, um relevo branco, rachado, com pedaços de corpos. Um grande espelho mostrando a inevitável ruína?

Na novela, além de dar-se conta de que a beleza é passageira e de que um dia haveria de morrer, Thaïs já se sente entediada e passa a ter repulsa por seus amantes. Seu passado cristão também voltar quando, ao passar por uma celebração cristã, descobre que se tratava de uma homenagem a São Teodoro – seu amado e infeliz Ahmès.

Thaïs medita, permite que as palavras de Athanaël produzam frutos. É o momento da célebre Meditação de Thaïs que, mais que um solo para violino, é um dueto para violino e harpa. Foram perfeitos o spalla Michelangelo Mazza, ao violino, e as harpistas Jennifer Campbell e Paola Baron. No palco, vai se formando, como que em um quadro, uma pintura, a cena mais significativa de toda a ópera.  Ao centro, a mulher grávida – o início da vida, a deusa Gaia, a mãe, a Terra? Acima, uma ampulheta, o tempo. Ao redor, todos nus olham para o centro do palco. Acima, bonecos pendurados de cabeça para baixo, criando como que uma projeção dos que estão no palco – como a ampulheta tem duas partes simétricas, assim ficou todo o espaço. Os bonecos não representariam aqueles que já estão do outro lado da ampulheta, para os quais o tempo já se acabou? No final da meditação, a areia da ampulheta cai toda sobre a grávida. Fechou-se o ciclo da vida. Findo o tempo, o pó.


Gaia.


Quadro da Meditação (Turim, 2008).

Antes de seguir com Athanaël, Thaïs participa do banquete que Nicias faz em sua homenagem. É justamente este o nome do capítulo: “O Banquete”. Não é mera coincidência que o nome seja o mesmo da obra de Platão. No Banquete de Nicias, também há discussão filosófica e, sobretudo, de religião. Dentre os assuntos está o pecado de Eva, a condição da mulher, mas suscetível a ser enganada pela serpente que o homem.

Tem início o momento de glória do Ballet da Cidade de São Paulo, que executa de forma impecável a intrigante e perfeita coreografia de Stefano Poda. Coisa de gênio, não só a direção é obra sua, mas também a rica iluminação, cenário e coreografia. Para música oriental, dança oriental. Dois grupos se distinguem bem: os pagãos de branco e os de saia preta e dorso nu. Homens e mulheres se confundem de forma quase indistinguível.  Surge no centro uma senhora, a idosa na qual Thaïs se tornaria, olhando antigos sapatos de festa. Carregado como caixão, chega um estojo de violão no qual os sapatos são “sepultados”.

Ballet

Thaïs, convertida, parte com Athanaël. Desespero em Alexandria! Na montagem de Poda, seres nus tentam segurá-la. Representariam a cultura pagã que não quer perder uma sacerdotisa de Vênus?  


Thaïs deixando Alexandria.

Após entregar Thaïs ao mosteiro feminino, Athanaël dá-se conta de que como atingiu seu objetivo, como Thaïs se converteu, nunca mais a verá, não terá mais as visões de Thaïs. Descobre que não amava Thaïs em espírito, como havia afirmado anteriormente, mas na carne, como homem. O contato com o ser amado fizera com que o amor percorresse o caminho inverso ao do discurso platônico: o amor espiritual tornou-se amor sensual. Ou, na verdade, Athanaël sempre esteve apaixonado por Thaïs, desde a primeira vez que a vira. Tentou resistir, mas o pecado representado pela figura da mulher foi mais forte. Como ele mesmo falou em sua confissão, de nada serviram suas penitências. Não só em Thaïs de Anatole France, mas também em Manon, Salomé, Carmen, etc, a mulher é a própria encarnação do pecado, que leva os homens à ruína.

Em uma visão, Athanaël descobre que Thaïs está para morrer e anuncia, desesperado: “Thaïs va mourir!”. Nesse momento, outra amostra da genialidade de Stefano Poda e da competência do Ballet da Cidade: homens nus -- espíritos pagãos? almas penadas? todos os sofredores, pecadores? -- começam a correr, percorrendo o mesmo caminho de Athanaël, ao encontro de Thaïs. É uma corrida que começa em câmera lenta, meio aos tropeços, mas depois, sem sair do lugar, torna-se frenética, como a música.

No belo dueto final, na montagem de Poda Thaïs já está praticamente no Céu e Athanaël, preso à Terra, dizendo que tudo o que pregou é mentira, que a ama. O link a seguir tem Renée Fleming com Thaïs e o tocante Athanaël de Thomas Hampson: https://www.youtube.com/watch?v=w0qqxRP5Fqk . 

Em grande parte do tempo esteve presente, no fundo e no centro do palco, uma esfera com rachaduras (que pode ser vista acima, na primeira figura desse artigo). Mais que mera decoração, impôs-se, como símbolo cósmico. A Terra? Um olho? O Universo? Também vale, para a esfera, o que Kandinsky dizia sobre o círculo. Para ele, era uma ligação com o cosmo. O círculo o fascinava porque é: "1. a mais modesta forma, mas se impõe incondicionalmente, 2. uma variável precisa mas inexorável, 3. simultaneamente estável e instável, 4. simultaneamente forte e macio, 5. uma única tensão que contém inumeráveis tensões em si. O círculo é a síntese da maior oposição".   

Thaïs sai do paradigma italiano de ópera, com árias e recitativos onde a ação de desenrola, ainda sagrado para algumas pessoas, mas que até Verdi já havia abandonado com Otello Falstaff. É uma peça contínua, onde árias e belos duetos se confundem com a ação, com a música sem canto que, em alguns momentos, como em Wagner, indica jornadas; em outros, o ballet, necessário na Grand Opéra francesa. A orquestra, aliás, não é mera acompanhante, mas tem papel fundamental, indica a movimentação, os humores, os sentimentos, as personalidades; temas se repetem, fazendo referência a situações diversas. Foi brilhante a orquestra sob a regência do maestro francês Alain Guingol. O incansável coro, sob o comando do sério e competente Bruno Facio, com participação constante, foi fundamental para o ótimo resultado do espetáculo.

Ainda é digna de nota a reação da plateia. A palavra “maravilhoso” era ouvida em todos os cantos. “Ele é um pintor!”, falou, sobre Poda, meu vizinho de cadeira. Jovens compareceram em grande número, alguns pela primeira vez. Isso derruba a falsa ideia de que para se buscar novas plateias deve-se abrir mão da qualidade da obra e apelar para peças comerciais. Poda também mostrou que uma montagem pode ser moderna, atemporal, sem distorcer o enredo, sem buscar soluções forçadamente modernas. Poda não nos impôs a sua interpretação ou uma época fixa, não engessou Thaïs. Ao contrário, dialogando com música e enredo nos propôs uma reflexão, nos levou à formulação de perguntas, e não a respostas simplistas e, muitas vezes, estúpidas. Uma obra de qualidade com uma produção inteligente e de altíssimo nível mostrou-se ser uma receita infalível para atrair um público qualificado. Só por isso já pode ser considerado o acontecimento do ano em São Paulo. Nossos parabéns e nossa gratidão à direção do Theatro Municipal. 

Despeço-me dessa produção de Thaïs, que me arrebatou, que vi diversas vezes, como Nicias: “ton souvenir sera le perfum de mon ame!...
Fabiana Crepaldi

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