A ESTONTEANTE MÚSICA DE LOHENGRIN. ARTIGO DE FABIANA CREPALDI EXCLUSIVO PARA O BLOG DE ÓPERA E BALLET.



"Correntes de ouro arrebatando os sentidos do expectador". Assim, segundo Wagner, deve soar o início do prelúdio de Lohengrin. Assim foi certamente arrebatado o expectador que, em 28 de agosto de 1850, em Weimar, testemunhou pela primeira vez acordes tão sublimes sob a batuta de Franz Liszt. Exilado político, Wagner não pôde assistir à estreia de sua ópera, posteriormente dedicada a Liszt, com afeto e gratidão.

Foi pelo prelúdio que Wagner começou a composição em 1846 e foi por ele -- por sua orquestração -- que a terminou dois anos depois. Em 1853 Wagner explicou que o Santo Graal foi trazido do céu por anjos e confiado a um grupo de homens fervorosos que viviam isolados. "Essa descida miraculosa do Santo Graal ... foi escolhida pelo compositor de Lohengrin -- segundo o próprio -- ... como o assunto a ser musicalmente tratado no prelúdio de seu drama. Para o extasiado em busca do amor divino, uma visão quase imperceptível embora atrativamente mágica ..." Essa aparição vai se tornando cada vez mais visível para aqueles na Terra. "Agora o Graal derrama suas bênçãos sobre aquele que é engolido pela êxtase do amor, consagrando-o Cavaleiro do Graal. O brilho ardente dá lugar a um brilho mais suave, espalhando-se sobre a Terra em um sopro de indescritível alegria e ternura, preenchendo o peito do suplicante de inesperada felicidade."

O prelúdio começa com os violinos, flautas e oboés em região aguda -- no céu -- e em piano. As cordas do violino devem soar delicadamente metálicas, como se fossem feitas de ouro. O início, etéreo, é quase estático: a movimentação dos violinos só ocorre a partir do quinto compasso, quando se ouve o tema do Graal. Gradativamente mais instrumentos vão entrando, a música vai ganhando corpo, chegando à Terra. Temas tocados no prelúdio estão presentes durante todo o primeiro ato, especialmente no momento da chegada de Lohengrin, o Cavaleiro do Graal, e no final da ópera, no terceiro ato, quando Lohengrin revela sua identidade. 

Basta ouvirmos uma boa gravação ou darmos um golpe de olho em uma partitura para reconhecermos as dificuldades técnicas para cada instrumento e para a orquestra como um todo na produção desse som mágico. Há ainda um desafio adicional e talvez até pior: esse som extremamente intimista, celestial, que requer delicada lapidação, é exigido logo nos primeiros compassos, quando os ruídos da vida mundana ainda povoam as mentes e perturbam o silêncio. Não é de se estranhar, portanto, que a Orquestra Sinfônica Municipal, sob a direção de John Neschling e Eduardo Strausser em dias alternados, tenha levado algumas récitas para conseguir nos arrebatar com as correntes de ouro fornecidas por Wagner. Aliás, não só no prelúdio mas em toda a ópera a orquestra -- e especialmente o grupo dos metais -- foi crescendo e se aprimorando a cada récita. Para quem assistiu a mais de uma récita, esse processo de envolvimento da orquestra -- na verdade de todos: orquestra, coro, solistas -- com a música de Wagner foi nítido e louvável. 

Baseada nas lendas dos cavaleiros do Graal, a ópera narra a história de Lohengrin, filho de Parsifal, que vai ao reino de Brabante para provar a inocência de Elsa, injustamente acusada de ter assassinado seu irmão, Gottfried, o futuro Duque de Brabante. A acusação é feita por Friedrich Telramund a partir do testemunho de Ortrud, sua esposa. A exigência feita por Lohengrin para salvar e desposar Elsa, exposta enquanto a orquestra toca e o tenor canta o tema da pergunta proibida, é: "Jamais me perguntarás, e jamais te preocuparás em saber, de onde eu vim em minha viagem e qual é meu nome e minha estirpe." 

Em Lohengrin o tratamento dos Leitmotives ainda não está plenamente estabelecido, mas já se podem notar temas que possibilitam à orquestra falar por si -- e nem sempre de acordo com o que os personagens estão afirmando em seus textos. Desse modo, além do tema do Graal e da pergunta proibida, já citados, também é importante que se observe o tema da dúvida -- ou da maquinação de Ortrud --, que se alterna com o da pergunta proibida no sombrio e importante prelúdio do segundo ato e persiste até que a pergunta seja finalmente feita:http://www.rwagner.net/midi/lohengrin/l25.mp3

O coro tem presença praticamente constante na ópera. Algumas vezes comentando a ação, tecendo julgamentos, impressões. Outras vezes tem linhas de caráter mais místicos, preces, em estilo de coro de oratório  -- como ocorre no segundo ato​. No terceiro ato, militar.​ Desse modo, a atuação do coro é absolutamente fundamental e nada trivial. Desempenhou muito bem sem seu importante papel o Coral Lírico Municipal.

Personagem central, em torno do qual os acontecimentos se desenrolam, Elsa acumula dúvidas. O que teria acontecido com o irmão? Estaria ele vivo ou morto? Quem seria esse cavaleiro misterioso, que já lhe havia aparecido em sonhos como enviado de Deus? Num primeiro momento Elsa entrega-se sem exitar ao salvador misterioso, mas a astuta Ortrud, como um Iago, semeia a dúvida no coração de Elsa. Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (Caderno 2, 08 de outubro de 2015), Marianne Cornetti, que interpretou uma impactante Ortrud no elenco da estreia, afirmou que é a sua personagem quem faz o drama caminhar. Nesse ponto pode-se fazer um paralelo entre as relações de Ortrud e Elsa, em Lohengrin, e Iago e Otelo, tanto na peça de Shakespeare quanto na ópera de Verdi. Quando compôs Otelo, Verdi afirmou que Iago era "o demônio que coloca tudo em movimento, mas é Otelo quem age." O mesmo vale para Ortrud e Elsa. Talvez seja até maior o papel de Elsa na ação, uma vez que não se pode afirmar que sem Ortrud a dúvida não acabaria por corroê-la, que a pergunta nunca seria feita. Pode ser que Ortrud só tenha acelerado as coisas.

São diversas as interpretações do libretto de Lohengrin. Uma forte corrente considera que Wagner, do ponto de vista artístico, se via como o inovador e incompreendido Cavaleiro do Graal. Para os críticos da obra, ela prega a fé cega não só religiosa (em contraposição a qualquer questionamento científico), mas também em líderes políticos que se colocam como salvadores (contrapondo-se ao questionamento crítico). Por outro lado, também pode ser encarada como um alerta de quão frágil, insustentável mesmo, é uma situação de fé absolutamente cega nesses salvadores desconhecidos; do poder que a dúvida tem de gerar uma angústia insuportável.  E é justamente o crescimento dessa dúvida angustiante que a música de Lohengrin vai gradativamente desenhando.

Interessante o papel da mulher da ópera. Por um lado, a moral e a pureza estão com os homens -- com Lohengrin, o puro enviado de Deus, e com Telramund, o honrado nobre que se deixou enganar pela pagã Ortrud. A ação, porém, é determinada pela conduta das mulheres, Ortrud e Elsa. Elas detêm total poder sobre os destinos delas próprias e de seus maridos.

Também os confrontos entre os dois homens, Telramund e Lohengrin, e entre suas mulheres possuem características diferentes. Ortrud e Elsa têm uma relação mais complexa, dissimulada. Já os dois homens partem para o confronto franco e direto. Nesse sentido, Johanna Rusanen, a Ortrud do segundo elenco, que não tem a voz com o peso e o tamanho da de Cornetti, saiu-se muito bem. Sútil, ela soube ser dissimulada, inteligente​, e demonstrar fúria quando necessário​. O confronto entre os homens no primeiro ato, retratado na imagem acima foi um momento bastante feliz da encenação paulistana.
As preces das mais variadas, de Lohengrin, Elsa, do Rei, do coro... estão sempre presentes no desenrolar da ação. É, porém, no segundo ato, que se dá a prece mais forte, a de Ortrud. Comparável ao credo de Iago, ela invoca os deuses pagãos da mitologia germânica, pedindo que a ajudem em sua vingança. No YouTube há a gravação da mais célebre Ortrud, Christa Ludwig, https://www.youtube.com/watch?v=1KNT9ZSPL_U . Na produção paulistana,teria sido​ magistral a interpretação da excelente mezzo-soprano Marianne Cornetti, com sua voz enorme, se ela tivesse se deixado conduzir pela fúria do texto e da música que estava interpretando​.

Se a Ortrud do primeiro elenco impressionou, foi com o segundo que Elsa, Lohengrin e Telramund se materializaram no Theatro Municipal. Com ophysique du rôle, voz forte e fluente, o tenor russo Viktor Antipenko, que parece estar dando largos passos rumo a uma promissora carreira, foi um Lohengrin ao mesmo tempo heroico e sensível, com as nuances que o papel exige. Sua atuação no terceiro ato pode ser vista em uma gravação precária no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=9YP8wSPDBR4 Com voz potente e segura, a Elsa de Natalie Bergeron foi sua digna companheira. Enquanto isso, o casal do primeiro elenco foi constituído por Tomislav Muzek e Marion Ammann, cujas vozes não se mostraram adequadas para seus papéis. Mesmo assim, não há muito o que se possa reclamar do Lohengrin de Muzek. Competente cantor com sólida carreira, temos, porém, que ​reconhecer​ o esforço a que ele submeteu sua voz -- esforço esse que pode ser tão perigoso para sua saúde vocal quanto o cigarro que ele foi visto tragando nos arredores do teatro. O terceiro ato foi especialmente difícil para ele. É verdade que ele aceitou riscos, mas nem sempre foi bem sucedido. Quanto à Elsa de Ammann, embora sua presença cênica tenha sido bastante satisfatória, sua voz mostrou sinais de instabilidade, sua afinação foi pouco precisa em muitos momentos, sobretudo nas regiões agudas.​

O Conde de Telramund foi bem interpretado por Tómas Tómasson, que cantou o mesmo papel na abertura da temporada 2012/2013 da Scala de Milão com Daniel Barenboim e Jonas Kaufmann. Mas foi especialmente vivido por Johmi Steinberg, que encantou o sortudo público do segundo elenco com sua atuação perfeita e​ poderosa voz aveludada
​ -- que, infelizmente, já apresenta alguns sinais de desgasteO público do sábado 17 de outubro presenciou curioso fato: no meio do segundo ato, Tómasson, ainda em cena, parou de cantar e foi engenhosamente substituído por Steinberg, que cantava no canto esquerdo do palco.​ Antes do terceiro ato o maestro Neschling justificou que Tómasson apresentou problemas vocais. 

Luiz-Ottavio Faria e Carlos Eduardo Marcos​, que cantaram com os dois elencos,​ também merecem destaque como o Rei e o Arauto. Especial reconhecimento merece Luiz-Ottavio Faria, cujo papel não era pequeno, e se saiu bem mesmo tendo cantado em récitas seguidas: no sábado até tarde da noite e no domingo à tarde.​
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Integrantes de um segundo elenco de primeiríssima!

Quanto ao polêmico cenário de Yannis Kounellis, o professor de História da Arte Jorge Coli, em seu ótimo artigo para o site da Revista Concerto, nos ensina tratar-se de Arte Povera, corrente artística que surgiu na Itália nos anos 1960. Ele define essa forma de arte como "Movimento que contrariava quaisquer seduções suntuosas para expor, sob forma de instalações, a presença, o peso, de materiais pobres: terra, restos de madeira, de plástico, lixo industrial  etc. Matérias brutas: nas estratégias das disposições organizadas – as instalações já contêm, em si mesmas, o espírito de teatralidade – situam-se numa fronteira entre a evidência material e o arquétipo." Recomendo fortemente a leitura do artigo do Professor Coli que, além de analisar a interação entre cenário e direção cênica de Henning Brockhaus e discutir sua adequação ou não ao contexto da ópera, faz uma lúcida análise do desempenho dos cantores: http://www.concerto.com.br/textos.asp?id=571

É tanta música que nos deixa até tontos. Essa frase, que ouvi de uma amiga no intervalo, define bem Lohengrin, define bem a densidade estonteante da música de Wagner, que exige nossa dedicada atenção, que monopoliza nossos sentidos. Nem sempre é fácil, nem todos estão preparados para embarcar por horas nessa viagem. Se por um lado lamentamos a suspensão de uma obra prima de Mozart, por outro podemos dizer que o encerramento da temporada 2015 do Theatro Municipal foi de tirar o fôlego. 

Fabiana Crepaldi

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