O BRASIL QUE DÁ CERTO E O QUE NÃO DÁ CERTO. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

Em recital na Sala Cecília Meireles, tenor Atalla Ayan exibe voz poderosa e técnica apurada.


Diariamente, ao ler os jornais, ouvir o rádio ou assistir ao noticiário na TV, ou mesmo quando navegamos pela internet e pelas redes sociais, nós nos deparamos invariavelmente com mais notícias negativas que positivas. Nos últimos anos, então, com o advento da muito bem-vinda operação Lava-Jato, que passou a desnudar a maneira vadia e corrupta como a política é conduzida no Brasil, praticamente só nos deparamos com notícias ruins.
E ainda sofremos com o excesso de violência: o Brasil é um dos países mais violentos do mundo, e as estatísticas estão aí para provar que, aqui, há mais pessoas assassinadas que em muitos países que vivem em guerra. Não é difícil concluir que a corrupção e a violência começam e terminam na política, através das escolhas e atitudes erradas, ou no mínimo bastante questionáveis, de nossos politiqueiros.
Entrando finalmente na nossa seara, também a total ausência de apoio irrestrito e consistente à Cultura (com a consequente inexistência de políticas culturais sérias e duradouras) é também culpa da mediocridade da política brasileira. Na parte final deste texto, voltarei a abordar mais especificamente as nossas mazelas culturais. Por ora, abro um grande parêntese para falar de um pedaço do Brasil que dá certo e que nos orgulha através da arte.

O país que dá certo…
Em recital neste domingo, 28 de maio, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, o tenor paraense Atalla Ayan, uma das vozes líricas brasileiras de maior destaque internacional (se não “a” de maior destaque) atualmente, ofereceu ao público um pouco de seus predicados.
Muito bem acompanhado pela pianista Priscila Bomfim, o tenor abriu o recital com uma impecável Adelaide, de Beethoven, seguindo em frente com quatro canções de Vincenzo Bellini: Dolente immagine di fille miaVaga lunaMa rendi pur contento; e Vanne o rosa fortunata. Se, em Beethoven, Ayan pôde explorar a riqueza dos coloridos, em Bellini, exibiu, através do esmalte de sua voz, toda a delicadeza das melodias, obtendo especial rendimento nas duas últimas peças.
A primeira parte reservava ainda duas árias: Una furtiva lagrima, da ópera L’elisir d’amore, de Donizetti; e Il mio tesoro intanto, do Don Giovanni, de Mozart. Atalla Ayan atacou a primeira de maneira magistral, fraseando lindamente e demonstrando porque merece a fama de que desfruta. Já a peça de Mozart, se poderia exigir uma voz mais leve que aquela que o artista ostenta hoje, foi muito bem defendida, especialmente quando comparamos a interpretação do tenor com a qualidade média com que Mozart costuma ser defendido em terras tupiniquins…
Para quem, como este autor, já conhecia Atalla Ayan de suas atuações anteriores no Rio de Janeiro (Jaquino, em Fidelio; e Romeu, em Romeu e Julieta), não foi surpresa constatar nesta primeira metade da noite toda a beleza de seu timbre viril, a qualidade ímpar de sua projeção (aqui ressaltada ainda mais pela acústica impecável da Sala Cecília Meireles), a riqueza de seus fraseados e a delicadeza com que o cantor colore e valoriza as peças que interpreta.
A segunda parte começou com a sempre irresistível La Danza, de Rossini, e com ela veio o único deslize perceptível da noite, tanto da pianista, que escorregou brevemente na passagem solo do piano que separa as duas partes da peça, quanto do tenor, que acabou “comendo” uma ou duas palavras da letra da prestissima canzonetta. Apesar disso (e aqui é preciso dizer que é muito raro encontrar um intérprete que não “coma” pelo menos uma ou duas palavras ao interpretar a canção), o espírito italianíssimo dessa peça deliciosa acabou superando qualquer exigência de críticos chatos, e arrebatou o público, como já era de se esperar.
Se já estava mais do que demonstrada a técnica primorosa de Atalla Ayan, faltava-lhe ainda oferecer ao público uma demonstração maior de expressividade, e esta veio com a série seguinte de canções de Paolo Tosti: Ideale; Non t’amo più; Vorrei morire; e L’alba separa dalla luce l’ombra (o verbo está grafado incorretamente no programa de sala). Aqui, o tenor caprichou nos recursos expressivos, especialmente na primeira canção, interpretada com requinte.
Já no fim do programa oficial, ouvimos a conhecida canção napolitana Core ‘ngrato (a segunda palavra do título também está grafada incorretamente no programa de sala), cantada lindamente a plena voz; e, por fim, a ária Pourquoi me réveiller, da ópera Werther, de Massenet, outro belo veículo aproveitado pelo tenor para exibir sua capacidade expressiva.
Apesar de a canção napolitana Torna a Surriento, prevista no programa, não ter sido interpretada, Atalla Ayan brindou o público com três bis, começando com a ária Che gelida manina, de La Bohème, de Puccini; seguindo com El día que me quieras, canção de Carlos Gardel e Alfredo Le Pera, interpretada ao lado do cantor popular Márcio Gomes (amigo do tenor); e, encerrando a noite, desta vez pra valer, o tenor atacou a ária No puede ser, da zarzuela La Tabernera del Puerto, de Pablo Sorozábal. O primeiro e o terceiro bis, especialmente, interpretados com bravura.
Não posso encerrar esta análise sem ressaltar, ainda, o belo conjunto formado pelo tenor e pela pianista. Se considerarmos que ambos praticamente não puderam ensaiar (Ayan chegou ao Brasil na véspera do recital), o belíssimo resultado final pode ser creditado a um desses milagres da música, e também ao grande talento de ambos, naturalmente.

… e o que não dá certo
Pouco antes de encerrar o programa inicial, dirigindo-se ao público, Atalla Ayan disse que estava com saudades de cantar na cidade, onde não se apresentava há sete anos. Demonstrando simplicidade e sinceridade, o artista lembrou que foi no Rio que ele cantou pela primeira vez profissionalmente fora da sua Belém natal, a convite do então diretor artístico do Theatro Municipal, maestro Silvio Viegas. E prestou solidariedade aos colegas do mesmo Municipal, que vêm sofrendo com o sistemático atraso de seus salários.
Ayan confessou-se ainda apaixonado pelo Rio e disse que, se pudesse, moraria aqui. Sinceramente, creio que para um cantor lírico de carreira internacional, cada vez mais requisitado por grandes casas de óperas, morar em uma cidade como o Rio, pelo menos sob o ponto de vista profissional, seria um atraso de vida: além de o Brasil estar longe dos grandes centros da música clássica e lírica (a Europa e os Estados Unidos) – o que lhe demandaria sempre longas e cansativas viagens se quisesse manter sua agenda internacional –, nossas temporadas têm um caráter totalmente marginal, ou seja, estão à margem (bem, bem à margem) dos grandes centros supracitados, de forma que, aqui, Ayan cantaria pouquíssimas vezes ao longo de um ano, em comparação com o que canta na Stuttgart em que mora e em outros lugares onde é convidado.
Atalla Ayan, esta joia bruta que veio de Belém e que foi ao longo do tempo lapidando e aprimorando a sua arte, até chegar ao alto nível em que se encontra atualmente, representa o Brasil que dá certo, talvez por ser um brasileiro que tem o privilégio (merecidíssimo, registre-se) de desenvolver a sua carreira principalmente em lugares que sabem valorizar a sua arte, o seu talento e o seu esforço.
Aqui na terrinha, no Brasil que não dá certo, orquestras estão fechando, falindo, sendo diminuídas ou corroídas pela politicagem vagabunda de que todos somos vítimas. Nossos teatros de ópera quase não montam óperas: uns por pura falta de interesse, outros por falta de verbas, a maioria sequer sabe como se começa a caçar patrocinadores, e quase todos ainda sofrem com a pequenez de seus administradores, incapazes de dialogar entre si. Aqui, nos últimos tempos, trocam-se até os administradores de nossos teatros no meio do mesmo governo ao qual eles estão vinculados, sem qualquer benefício claro, por pura politicagem.
Eu falei patrocinadores? Bem, por falar neles, as possíveis empresas que aqui não têm dinheiro para a Cultura, costumam ter para bancar campanhas de vagabundos via caixa 2, para corromper agentes públicos etc., etc. Para isso não falta dinheiro.
O tenor disse ainda, num papo coletivo depois de seu recital, que pretende cantar novamente no Theatro Municipal do Rio assim que possível. Atalla Ayan pode ter a completa certeza de que será sempre bem-vindo ao Rio de Janeiro, e que o público carioca estará ávido para aplaudi-lo, mas para vir cantar uma ópera no Municipal será preciso primeiro combinar com os russos. Os “gestores” do Municipal não sabem nem o que a casa apresentará daqui a dois meses. E se sabem, não contam para ninguém porque não têm certeza se a coisa realmente será levada ao palco. O que dirá achar uma brecha na agenda movimentada de um disputado cantor internacional. Para um recital até pode acontecer, como, aliás, se deu agora na Sala Cecília Meireles (e somente porque a instituição contou com a completa boa-vontade do artista), mas para uma produção completa de ópera, é bem mais difícil achar essa brecha em cima da hora.
Enquanto as nossas casas de ópera continuarem se pautando pela mediocridade administrativa, nossas temporadas continuarão a ser elaboradas da mesma forma que o são há décadas: na base do improviso e do nosso desgraçado “jeitinho”.
Leonardo Marques

FONTE: http://www.movimento.com/

Foto: Vitor Jorge

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