RETROSPECTIVA COREOGRÁFICA 2017: QUANDO DANÇAR FOI MAIS QUE PRECISO. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
NEDERLANDS DANS THEATER 2 /MIDNIGHT RAGA |
O ano coreográfico começou no desalento da sensação de que nenhum espetáculo de dança entraria em cartaz. Então eis que surge, em clima de resistência, a Focus Cia de Dança , dando continuidade ao seu projeto retrospectivo, quebrando o gelo , ainda que com uma retomada – Saudade de Mim.
E já nos idos de maio, acontece, enfim, a primeira estreia com a Renato Vieira Cia de Dança em Blue que, mais uma vez, se inspirou na literatura, agora com o simbólico poema Cem Pessoas , de Wislawa Szymborska, para expressar o vazio das relações afetivas, numa trilha jazzística, com reunião de bailarinos de grupos e formações diversas.
Enquanto a programação internacional fazia sua entrada com o Pilobolus ,do Shadowland 2 , que no abuso de recursos tecnológicos/projecionais e episódicas performances puramente coreográficas, decepcionou o público. Valendo apenas pelo inventivo referencial à estética do teatro de sombras e do cinema de animação.
Fenômeno que se repetiu com o Momix Forever, na comemoração dos 35 anos da Cia, num programa remissivo, de sotaque antológico, de suas realizações sob comando e idealização de Moses Pendleton. Onde o clima era do dejá vu num grande vídeo clip que só foi capaz de impressionar, um pouco, pela atualidade do foco ecológico, nos extratos de Opus Cactus eBotanica.
O Balé do Theatro Municipal, detonado pela crise econômica inclusive com a perda de alguns de seus melhores solistas, não conseguiu mostrar nenhuma obra que o caracterizasse como a mais lídima voz da tradição clássica no país.
Limitando-se a uma injustificada participação neoclássica, na concepção de Peter Brook - La Tragédie de Carmen-, menos lírica que a ópera no incisivo desnudamento psico/ físico do personagem titular. E numa convicta atuação, de bravura e entrega, à luta de resistência dos Corpos Estáveis do Municipal carioca , na simplicidade eficaz, mas com forte carga emotiva, de suas intervenções em Carmina Burana, em formato de concerto cênico.
CIA URBANA DE DANÇA |
Os nossos dois maiores grupos de dança contemporânea conseguiram driblar o clima nebuloso com significativos espetáculos a partir da tradição da cultura popular dos terreiros de candomblé (Gira) e do lastro ecológico/poético da paisagem natural/humana nordestina(Cão Sem Plumas).
Na corporeidade enlameada e na expressão da ambiência inóspita com base no poema cabralino, a Cia Deborah Colker , num mix de linguagens artísticas, enfrentando o risco da prevalência do imagético sobre o gestual e a fisicalidade dos bailarinos. E o Grupo Corpo, na perfeccionista tessitura coreográfica de Rodrigo Pederneiras, potencializada no movimento ímpar de pulsão físico/espiritual , celestial/profana, de seus 21 bailarinos, entre o barroquismo mineiro e a ritualística negro/africana.
Sobrevivendo, ainda, as apresentações do Panorama, do Festival Cena Brasil , do Dança em Trânsito e do Rio H2K, com originais registros de solos, quadros rítmicos/musculares, trilhas hip hop, eletro/pop, funk/samba. Como Lil Buck na sua midiática( via you tube) versão da Morte do Cisne ou a action painting da Cie Zahrbat. A força do “passinho” de Alice Ripoll ou a celebração do butô de Tadashi Endo, com olhar na contemporaneidade.
Sem deixar de citar um trabalho singularizado, na interatividade corporal/urbana e na essencialidade da vídeo/dança, assinalando um momento feroz do coletivo social/coreográfico, na série documental/fílmica de Gustavo Gelmini.
Diversificado na rejeição da espetacularização dos efeitos cênicos, no intimismo envolvente, sujeito/objeto, espectador/bailarino, dos requintados fraseados musicais/corporais de Toque, com Renato Cruz e o performer/percussionista Cyril Hernandez.
Encerrando-se o ano tormentoso, com a surpresa da criação espontânea, instintiva, mas tecnicamente rigorosa, na espiritualidade juvenil daNederlands Dans Theater 2 que só falhou, na temporada carioca, pela exclusão do fundamental Cacti , de Alexander Eckman. Felizmente substituída por Midnight Raga com suas nuances gótico/indianas em erotizado sensorial por Marco Goecke, celebrado coreógrafo europeu da última geração.
Seguindo-se , no difícil conceitual de um país perdido, entre os desmandos, a corrupção e a regressão ao conservadorismo moral e artístico, dois simbióticos embates de posturas reflexivo/coreográficas.
O percurso , entre trincheiras e em campo minado, e o rompante grito gestual dos bailarinos das comunidades, no vigoroso trabalho de Sônia Destri Lie e sua Cia Urbana de Dança - “Cinco Passos Para Não Cair no Abismo”.
E a visceral performance/manifesto para tempos sombrios de Renato Vieira(Blue), fechando a conturbada temporada 2017. Instaurando, assim, um transcendente contraponto crítico para um ano em tempo de guerra sem fim.
Wagner Corrêa de Araújo
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