O EXERCÍCIO E O SENTIDO DA CRÍTICA. ARTIGO DE MARCUS GÓES NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.



A crítica, seja de que natureza for, não é um mero arrazoado de opiniões baseadas em gosto pessoal, mas outrossim o produto do conhecimento.
Neste blog e em  postos da mídia no Brasil e em muitos outros países, ocorre uma deturpação quase sempre danosa à arte de modo geral, a qual estatui que crítica é uma simples opinião calcada no “gostei ou não gostei”, uma declaração meramente subjetiva de preferências, e que cada um tem o direito de dizer o  que lhe aprouver sem o menor conhecimento técnico, teórico, ontológico ou prático do assunto abordado. De conhecimento histórico e vivencial nem se fala. Muito menos de inserções desses conhecimentos no grande painel abrangente da Filosofia da Arte.
Crítica é opinião, sim. No entanto, a crítica artística e a opinião devem, por força, ter por base não o simples “gostei ou não gostei”, mas o embasamento seguro no geral e abrangente conhecimento de quem emite julgamentos. Não é de se admitir por exemplo que alguém se intitule crítico de arquitetura sem saber o que é uma ogiva nem o que significa criar espaços, ou crítico de literatura sem saber quem é que tinha os dentes amarelos, ou crítico de pintura sem distinguir vermelhão da China de carmesim, ou crítico de teatro sem saber quem narrou a  Hamlet quem matou o narrador.
No caso da música, há vários pressupostos para que alguém escreva uma crítica. Em primeiro lugar, o crítico de música deve conhecer e saber o significado verbal e musical de uma quantidade razoável de teoria musical e seus termos. Deve saber o que é um “piano”, um “smorzando”, um “adagio”, uma “appogggiatura”, um “tremolo”; deve saber que o relativo de dó maior é lá menor, deve saber que um compasso 4/4 se preenche primariamente com quatro semínimas, que existem quiálteras, sinais de pausa, que os intervalos podem ser melódicos ou harmônicos, consonantes ou dissonantes, e muita coisa mais. Deve o crítico de música em seguida ter familiaridade com partituras e com tradições no modo de executá-las. Deve estar sempre atentíssimo à propriedade e estilo .
O ouvido do crítico de música deve ter sido longamente familiarizado com todos os sons e sonoridades de uma execução, para que ele possa perceber quando um instrumentista transformou por exemplo quiálteras de seis em quiálteras de três, quando um violino desafinou, quando um pianista “esbarrou”, quando um soprano emitiu uma nota “calante” ou errou as palavras do texto, quando o regente escolheu um tempo muito rápido ou muito lento, e muitíssimas outras coisas mais .
Munido desse arsenal que vai acima simples e sumariamente exemplificado, o crítico poderá aplicar a seus julgamentos sua sensibilidade de amante da música, procurando o principal: a “expressão” através da música. Nosso Carlos Gomes, em carta a Francisco Braga, é autor de frase lapidar: “Música é expressão e expressão não se escreve.”, dito que seria repetido  por Mahler de outra forma: “A partitura tem tudo, menos o essencial.
No caso de crítica de ópera, o crítico deverá estar familiarizado com vozes de vários intérpretes do mesmo papel, com as palavras e indicações do texto, com as dificuldades tradicionais, com locais usados para abaixamento de tonalidade, com deturpações da partitura para facilitar a superação de dificuldades, com dicção e pronúncia, com propriedade, com estilo.
De preferência, deve o crítico de ópera ter estado presente a várias récitas com elencos diferentes das óperas comuns do repertório, para poder ter uma visão comparativa mais aguçada. Para exemplificar mais objetivamente o assunto, um crítico verdadeiro jamais deixará de perceber que a coloratura aspirada e em staccato da cantora Cecilia Bartoli é uma deturpação  anti-musical. Ele, por exemplo, terá ouvido ao menos em gravações, no caso muito úteis, uma Joan Sutherland, uma Giulietta Simionato, uma Eleanor Steber, executando as coloraturas ligadas como escritas pelo compositor.
No caso de crítica por exemplo de piano, o crítico deverá ser capaz de aquilatar se uma mão esquerda está sendo tocada com mais volume do que o correto, se os pedais estão sendo usados a contento, se o discurso musical flui com facilidade e sem arestas. E mais se alongaria esse pequeno artigo se se mencionassem as atenções e cuidados que deve ter um crítico ao emitir julgamentos.
Não se trata pois uma crítica de uma mera opinião pessoal “gostei ou não gostei”. Quanto às palavras nela usadas, o público brasileiro, parte do “homem cordial”, célebre dito de Sérgio Buarque de Holanda, quer festa, ingressos grátis, jantares depois do espetáculo, tapinhas nas costas. Não conhecem as candentes ou irônicas expressões admitidas e até benvindas de críticas dos grandes críticos, desde Robert Schumann e Edward Hanslick , os dois maiores críticos de música do século XIX, até os escritos de um Sergio Segalinii, redator-chefe da revista especializada Opera International, de Paris, que passou anos chamando o tenor Placido Domingo de “PLAMINGO”, ou seja, o tenor sem o “si” e sem o “dó” (Domingo é um tenor curto, todos sabem)  sem que o crucificassem por isso. Nem conhecem as palavras de Rodney Milnes, importantíssimo crítico internacional, escrevendo sobre o soprano Lucia Aliberti em Opera, de Londres; nem o que Oscar Guanabarino escrevia de Villa-Lobos. Nem os escritos de Rosenthal, de Landini, de Osborne.
Conta-se que há muitos anos, em recital, um tenor em Porto Alegre, ao cantar a despedida de Lohengrin, saiu-se com um “Mein lieber Schwein” (Meu amado porco) no lugar do correto “Mein lieber Schwan” (Meu amado cisne), o que deu oportunidade a um crítico de escrever “O tenor X  esteve muito mal e foi responsável por várias porcarias…” Respeitável público, diante de tamanho disparate do tenor, esse crítico foi mal educado, grosseiro ou superiormente engraçado? Deveria ter simplesmente dito que o tenor X , coitadinho, ama os porcos em vez de preferir os cisnes, é o gosto dele, viva a liberdade !!!!
A regra de ouro da crítica ou julgamentos, opiniões e qualquer forma de declarações que ao final sejam uma apreciação crítica artística escrita em jornais ou em qualquer veículo é que o prolator das mesmas não entra em discussões, polêmicas e principalmente confraternizações e troca de elogios com aqueles que enviaram mensagens ao veículo. Crítico escreve, diz o que tem a dizer, e some, desaparece. Isto é uma regra vigente na mídia em geral. Assim não sendo, tudo vira circo, “você é o maior”, ”obrigado, sou sim”, “você é um idiota”,  “você é que é”, ”não tenho  rabo preso”,  “obrigado pelas palavras a meu respeito”, “de nada, você merece”. O bolo é cortado, todo mundo quer um pedacinho, pedaços são atirados na cara dos participantes julgados “mal educados”, ou de qualquer modo  adversários e caem todos no obscuro anonimato dos membros do oba-oba geral.
A demonstração de conhecimentos, as citações literárias, a internacionalidade, a vivência, o burilamento cuidadoso da escrita, no Brasil são um anátema, são o pedantismo, o rebuscamento.
Quousque tandem …
GOTT SOLL ALLEIN MEIN HERZE HABEN
MARCUS GÓES (1939-2016)

Comentários

  1. Com licença,fora a exibição de erudição do falecido,não entendi a parte referente a não entrar em discussões e polêmicas;ISSO FOI O QUE ESSE HOMEM PROVOCOU A VIDA INTEIRA!Isaac Carneiro Victal.

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    1. Também gostaria de acrescentar que para mim a crítica é sim fruto de gosto pessoal,seja ele embasado ou não,toda crítica é profundamente pessoal.Essa tentativa de elevar-se a uma dignidade quase científica de alguns críticos muitos vezes é o que gera um mal-estar muito grande.Isaac Carneiro Victal.

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  2. Entendi o texto como uma forma de dizer "nós os críticos podemos dizer o que quisermos, inclusive chamar irônica e pejorativamente um tenor de "PLAMINGO" porque nós somos f...das, donos do conhecimento superior e todos têm que se render à nossa sabedoria, e bater palmas para o que dizemos. Não, de forma alguma! Há de se ter o respeito. Um tenor não deixa de ser magnífico porque troca uma palavra em alemão, mesmo com suas implicações ao texto, um mezzo soprano não deixa de ser divino porque alguém que nunca cantou ache que sua emissão é "é uma deturpação anti-musical" (mesmo ela sendo uma aclamação mundial no mundo da ópera). Curiosamente, um tenor alemão (Jonas Kauffman) errou recentemente (ao vivo) a letra (em italiano) de "Nessun dorma", e ninguém o crucificou por isso. Seria a crítica a arte de bater nas costas e aplaudir os que estão em voga, e crucificar os iniciantes que erram uma ou outra coisinha na letra, só para os críticos parecerem superiores? Façam-me o favor!...
    O que quer (queria) esse senhor, com esse texto? Uma justificativa para poder continuar a dizer o que quisesse, e pior, ser aplaudido por isso? Ele e qualquer um que escreva o que quiser, mas não venha se explicar para que eu bata palmas para isso, para mim é um embuste. Não existe sabedoria maior do que o "gostei" e "não gostei", pois essa é uma reação natural, vem de nossa percepção mais íntima, vem do coração. Uma emissão anti-musical não causa frenesi na platéia, uma palavra errada no alemão não significa NADA na avaliação de um cantor.
    “Tocar uma nota errada é insignificante. Tocar sem paixão é imperdoável.” (Beethoven)

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