UMA OUTRA INVERDADE NA VIDA DE CARLOS GOMES. ARTIGO DE MARCUS GÓES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
As biografias de Carlos Gomes (1836/1896), desde o famoso “Perfil Biográfico” escrito pelo amigo Luis Guimarães Junior, distribuído ao público na estréia de Il Guarany no Brasil (Rio de Janeiro, 02/12/1870) , passando pelas referências dos mais que amigos Visconde de Taunay, André Rebouças e Salvador de Mendonça, até a escrita pela filha Itala Gomes,a escrita por Silio Bocanera Junior, a “ficção” escrita por Rubem Fonseca ,tem sido causa de muita inverdade amigável, interessada (eira...) ou fruto de amor filial adotada como verdade .
Uma das inverdades que povoam as biografias e referências a Carlos Gomes é a origem de sua separação e dissolução de seu casamento com Adelina Peri (1842/1887) : todos dizem que foi ela quem pediu a separação,por não suportar as aventuras extra-conjugais do marido, que o marido era um Don Juan inveterado, que mantinha romances secretos, logo ele que não era de romances.
Nada mais falso. Foi Carlos Gomes quem pediu a separação, e por adultério. Era ele Carlos Gomes quem se julgava traído pela mulher.
Para descobrir esse detalhe de um processo que não poderia deixar de acabar tendo influência na obra do compositor (o processo de separação é de 1879 , ano do fracasso da “ MARIA TUDOR” na Scala ) quem escreve estas linhas procurou inicialmente os arquivos judiciários gerais de Milão , e através deles e de informações dadas por colegas advogados chegou ao Arquivo do Senado , que conserva o original do processo de separação, o qual miraculosamente atravessou várias crises políticas, várias ocupações estrangeiras e duas guerras mundiais e lá está, íntegro e todo legível. O autor deste artigo possui cópias xeroxes do processo em seus arquivos.
Bem clara é a posição de Carlos Gomes como autor da demanda, e muitas são suas queixas contra a “pérfida’ mulher que lhe ‘manchou a honra” . Carlos Gomes ia longe, misturando sua honra pessoal com o “nome brasileiro” .Para ele,até isso entrava no conjunto de elementos de cunho moral ofendidos e atingidos...
O processo enveredou pelos tristes mas cômicos caminhos típicos de querelas judiciais desse tipo: houve grossa disputa por pensões, poupanças, mobílias, por pequenos objetos, até se chegar ao cúmulo de briga por garrafas vazias... O compositor de óperas italianas mais representado na Scala na década 1870/1879 ,depois de Verdi, o que era ser o quase-primeiro,descia publicamente ao nível de disputas e querelas vulgares com uma mulher que conhecera mal chegado a Milão, que o ajudara tanto e que não o traíra ,como ao menos não ficou evidenciado no processo , que não teve seu fulcro em traições conjugais.
Tudo isso consta por escrito com detalhes no processo que correu no Tribunal de Justiça de Milão, então presidido pelo magistrado Cesare Malacrida, que assina o documento de desfecho da lide, na qual nem se chegou a promover inquéritos ou indagações sobre o suposto adultério .
A separação de Gomes e Adelina foi um prato cheio para a sociedade milanesa da época. Exigia-se de um compositor famoso um comportamento muito diferente do desenvolvido por Carlos Gomes em um processo judicial cheio de vulgaridades, no qual se lavava uma quantidade enorme de roupa suja. Além disso ,em 1879 o filho de Gomes Mario Antonio,de quatro anos, por causa de desvairada e inóspita viagem a que o submeteu o pai , morre para desespero geral. É a partir desses acontecimentos que o prestígio de Carlos Gomes na Itália começa a declinar. Suas óperas famosas, principalmente Guarany e Salvator Rosa, continuam a ser representadas, mas só em 1889 ,ou seja, dez anos depois, apresentará ele uma ópera nova , Lo Schiavo, mesmo assim levada ao palco pela primeira vez no Brasil. Além do mais, depois de separar-se de Adelina, Carlos Gomes começou a aumentar seus problemas de relacionamento com o mundo da ópera que o cercava. Seu temperamento irascível veio mais à tona , deu início a um sensível aumento em uma velha mania sua, a de pedir empréstimos e adiantamentos, e se mostrou desorientado onde antes era sagaz e equilibrado. No entanto , como ocorria com quase todos os artistas da época de CG, o sofrimento engendra muitas obras de valor, e CG no período é pródigo em composições de notável beleza, principalmente hinos e canções para canto e piano ,das quais foram editados álbuns pela Ricordi.
Era natural que a filha Itala e os parentes de Adelina , cujos descendentes o redator deste artigo conheceu pessoalmente em Milão ,não tenham nunca querido colocar Adelina na incômoda posição de adúltera . Duas filhas de Laura Donadon, nascida em 1879 e falecida em 1972, passaram a este escriba várias informações que receberam da mãe,que conheceu muito bem Carlos Gomes e era a prima dileta de Itala,com quem residiu muitos anos.Foi Giuseppina Donadon,irmã de Adelina,que a recebeu em família depois da morte de Adelina em 1887. Essas informações nunca conduziram ao adultério suposto por Carlos Gomes.
Escrito de memória.Para melhor fazer verificações e conhecer o assunto,há três livros do autor à disposição dos leitores:1- “CARLOS GOMES – a força indômita” ,Editora Secult,Belém do Pará , 1996,publicado no centenário da morte de CG na cidade em que morreu ; 2 – “CARLOS GOMES – un pioniere alla Scala” , original em italiano,publicado em 1997 por Nuove Edizioni , Milão , na cidade onde CG viveu a maior parte de sua vida ; e 3 – “ CARLOS GOMES – documentos comentados”, Algol Editora,São Paulo, 2008,publicado na cidade em que recebeu os primeiros estímulos para partir para o Rio de Janeiro, onde iniciou sua carreira de maior compositor nascido em solo americano de sua época .
MARCUS GÓES (1939-2016)
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