ENTRE OS PALCOS E A TELA : A COREOGRAFIA CINEMATOGRÁFICA. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
BALLET MECANIQUE. Filme de George Antheil / Fernand Léger. 1924. Foto/Divulgação.
A partir das primitivas experiências cinematográficas, na última década do século XIX, já nas incursões de Georges Méliès, o balé com formas clássicas se fez várias vezes presente através de divertimentos coreográficos de caráter sério ou em pantomimas burlescas. Como nas antigas sombras chinesas nas quais a dança das silhuetas era acompanhada por músicos ou por pequenos conjuntos orquestrais, o mesmo ocorreria com estes filmes.
Com o gradual desenvolvimento da “sétima arte" a dança continuou como parte integrante das obras cinematográficas alcançando similar posição destacada das óperas e dos romances transpostos à tela. Inclusive, tendo como base o movimento do corpo humano encarado inventivamente pelo coreógrafo/criador, tornou-se motivo de surpreendentes efeitos videográficos mesmo sem grandes preocupações com o ritmo, este essencial para o desenvolvimento da trama romanesca, na média das duas horas de um filme normal.
A dança se impunha dependendo da maior ou menor expressividade da coreografia, havendo apenas o difícil problema da sincronização do som e da imagem no cinema silencioso. O regente teria que conhecer perfeitamente o filme para saber em que exato momento deveria mudar o tempo ou o movimento. E até sinais foram colocados em determinadas películas, para orientação dos músicos.
O principal problema da dança no cinema continua sendo ate hoje a maneira como ela deva ou não ser tratada. No cinema documentário é natural que o objetivo seja preservar um determinado evento histórico, social ou artístico. Assim, a filmagem de atuações dos grandes mitos da dança do século XX permitiu que as futuras gerações tivessem, pelo menos, uma ideia do que representaram para uma época esses catalisadores de êxtases coletivos. Desde Nijinsky, Pavlova, Isadora, no passado, Nureyev, Margot Fonteyn, Plissetskaya, Baryshnikov, em tempos mais próximos de nós.
A simples filmagem documental de balés oriundos dos palcos, por outro lado, pode cair em medíocre passagem para a tela de peças quase lugares comuns do repertório popular e historicista da dança. Tornando necessário que o olhar mais atento do cinegrafista tenha uma visão absolutamente livre do tradicionalismo nas suas tomadas e movimentos da câmera, a partir da ideia de um espetáculo circunscrito às medidas limitadoras de um palco de teatro.
A dança na caixa cênica tem existência autônoma e sua transformação em filme não lhe acrescentará nada, se não houver o ponto de vista criativo-estético do cineasta, principalmente se considerarmos o elo profundo que une, numa mesma emoção coletiva, dançarinos e espectadores (cortado em grande parte no cinema, pela ausência física dos primeiros).
É o que nunca aconteceu com a dança pensada exclusivamente em moldes fílmicos e que gerou inesquecíveis momentos nos anais do cinema. Através de coreografias grandiosas em termos de cenografia trazendo números quase infinitos de bailarinos, assim vistos pela profunda perspectiva dos ambientes faustosamente decorados, na prevalência de planos gerais e tomadas em câmera alta. Exemplos perfeitos foram os de Busby Bekerley, talvez o coreógrafo máximo da fase áurea do cinema musical/dançante, e os filmes com Fred Astaire e Gene Kelly (mais ricos em movimento e ritmo que em cenas imponentes).
BODAS DE SANGUE, de Carlos Saura. 1981. Foto/Divulgação.
Coreograficamente valem ser lembrados filmes musicais para sempre inscritos na memória popular e nas enciclopédias de cinema. Indo do Ballet Mécanique (Fernand Léger/George Antheil –1924) ao West Side Story (na versão de Robert Wise de 1961), passando por Bob Fosse (All That Jazz, 1979) além dos filmes coreográficos de Carlos Saura. Chegando ao cinema de animação com Fantasia (1940), de Walt Disney, em três retratos coreográficos a partir da Pastoral de Beethoven, da Sagração de Stravinsky e da Dança das Horas de Ponchielli, e ao Norman McLaren do curta Pas-de-Deux, de 1968.
Hoje, varias abordagens estéticas se confrontam face à dança e seus desafios no relacionamento com a “décima musa” de Cocteau. O cinema documentário propriamente dito no registro dos grandes balés clássicos de repertório e performances ora folclóricas ora contemporâneas, além das biografias de mitos populares interpretadas por ídolos do balé, de Nureyev em Valentino ao Nijinsky pelo bailarino Gregory La Peña, além de atuações como ator/bailarino por Baryshnikov.
Na aproximação destas duas linguagens – dança/cinema – muitos foram os maus resultados. Obras imortais do repertório perderam seu vigor original na transposição para a tela, quando houve um perceptível mau uso de efeitos especiais e trucagens, tornando os intérpretes/bailarinos meros artifícios das técnicas cinematográficas ao fazer prevalecer uma linguagem artística sobre a outra.
Mas ao mesmo tempo com os recursos dos meios virtuais, seguindo-se aos inúmeros registros do videocassete ao blu ray, hoje a dança faz parte de nosso cotidiano domiciliar, especialmente neste momento de crise sanitária e isolamento pandêmico.
Que, por um lado, nos privou do contato presencial das salas de teatro e de cinema mas possibilita, em tempo real, a mágica envolvência em catarse coletivo na ambiência intimista de nossas casas, numa ansiosa e definitiva pulsão a la “grand jeté” no balé das viagens pelos espaços siderais da mente.
E na constatação de que a dança não é apenas "uma música que se vê" mas, também, ainda na simbologia das palavras poéticas de Paul Valéry, “o mais puro e completo ato das metamorfoses”.
Wagner Corrêa de Araújo
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