A MORTE NÃO ABALOU O MITO : PÓS QUATRO DÉCADAS MARIA CALLAS ESTÁ "ALIVE". ARTIGO DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

MARIA CALLAS EM LA TRAVIATA. Royal Opera House, 1958. Foto/Houston Rogers.


No refúgio das plataformas digitais para atenuar o isolamento pandêmico, às vezes, há boas surpresas como Sete Mortes de Maria Callas, projeto de ópera/instalação da performer sérvia Marina Abramovic. Estreada virtualmente, no ultimo mês de setembro, na Bavarian State Opera House, Munique.

Que não deixa de ser um tributo memorial, exatamente aos 44 anos da passagem definitiva de Maria Callas, no entremeio de melancólicos anos existenciais e artísticos à causa do epílogo de seu relacionamento com Onassis, especialmente prejudicial também à trajetória artística final de um dos maiores mitos da história da ópera.

“É sobre morrer com o coração partido, é sobre ser morto pela pessoa que você ama”, assim Abramovic conceitualiza seu projeto que remete também à vida pessoal da performer diante do que sofreu com o súbito rompimento de seu partner amoroso - o também artista Paolo Canevari.

Onde ela tem ao seu lado o ator Willem Dafoe, personificando o elemento masculino causador das sete mortes de Callas através das heroínas do palco lírico, condenadas sempre a uma terminalidade trágica, conduzida com visceral exorbitância pela culpabilidade machista dos amantes/homens. Ainda que, por vezes, potencialize demais a irracionalidade, como Desdemona sendo estrangulada, via Otelo (W. Dafoe), por intermédio de uma serpente simbolizando o lenço da traição.

E, aqui, representadas por árias que selam os destinos fatalistas do feminino em óperas como Norma, Carmen, Traviata, Tosca, Otello, Madama Butterfly, na voz ao vivo de várias sopranos que dividem também o palco com Abramovic Dafoe em cenas dramatúrgicas, sob acordes contemporâneos do compositor sérvio Marko Nikodijevic conectando a narrativa em épocas diversas, sublinhadas por intervenções videográficas.


SETE MORTES DE MARIA CALLAS. Marina Abramovic. Bavarian State Opera House. Setembro 2020. Foto/Wilfried Höls.

Por outro lado, este espetáculo referencia também, para nós brasileiros, a única lembrança presencial da Callas, na temporada de 1951, há sete décadas, nos Municipais paulista e carioca, em Norma, Tosca e La Traviata. Plena dos conflitos de exibicionista rivalidade estabelecidos com Renata Tebaldi (então, na mesma Cia italiana) e que, entre vaias, aplausos e críticas demolidoras, fizeram a Callas jamais voltar.

O. Bevilacqua, dizia ao Globo: “A arte de Maria Callas supera um passeio a cavalo em montanhas  acidentadas. É tudo cheio de altos e baixos e seus agudos são atingidos em gritos estridentes, conquistados a trampolim”. E Andrade Muricy, no Jornal do Commércio: "Uma artista do merecimento da sra. Maria Callas não deveria arriscar-se a um desastre como o que teve no papel de Floria Tosca”.

Mas a infeliz turnê brasileira foi desmentida nos anos seguintes por vertiginosa ascensão mítica. Não só fazendo renascer óperas esquecidas de Cherubini, Bellini, Donizetti e Rossini, mas destacando-se como uma das cantoras mais exigentes em seu profissionalismo, sem nunca deixar de lado o apelo ao seu caráter energizado pelo fator temperamental.

Com um repertório trágico e cômico, romântico e verista, Callas alcançaria, assim, o rápido reconhecimento do público e da crítica pela completa harmonia de voz e corpo, pela marcante expressão facial (sendo comparada às máscaras do teatro grego clássico), pela extensão vocal que ultrapassava o dó agudo, senso teatral, disciplina musical e por sua capacidade de envolvência levando o público a uma pulsão de delírio.

Em doc/especial - Vinte Anos Sem Callas - que dirigimos para o Caderno 2 da então TVE, em 1997, inspirado por nossa preciosa coleção Callas (incluindo todas as suas óperas gravadas, os registros audiovisuais e livros biográficos), priorizamos depoimentos fundamentais  de artistas brasileiros ligados ao universo da ópera, do teatro e da música.

Onde, destacando o seu talento dramático, o ator/diretor Sérgio Britto, seguidor e fã incontestável de vida inteira, afirmava enfático ser “a única cantora que conseguiu arrebentar o limite entre a ópera e o teatro, tendo uma harmonia de voz, de gestos, de uso integral do corpo”.

Recorrendo mais uma vez ao espetáculo performático de Marina Abramovic, na sua provocativa desconstrução estética do substrato mítico de uma atriz/cantora, mergulhada em anos de amargura pela desilusão amorosa e no despontar sequencial da decadência artístico/vocal, lembramos o patético tom confessional da própria Callas :

“Quem sou? Uma máquina de cantar? Não, sou um ser humano e preciso que me ajudem. Minha vida foi muito solitária e toda construída na solidão. Não devo ter ilusões, a felicidade não foi feita para mim. Sou um peso morto. E me pergunto. E agora, o quê? Qualquer coisa para sobreviver, cheguei a este ponto”.

Para os amigos mais próximos como Franco Zeffirelli :“Maria é a sacerdotisa suprema de sua arte e, ao mesmo tempo, a mais falível das mulheres”. Enquanto, na visão de Luchino Visconti, era “um monstro sagrado, uma espécie de artista que não existe mais, para quem a última representação era tão importante e tão nova como a primeira”.

No julgamento da posteridade, mesmo num país onde a ópera ocupa difícil e limitado espaço, o nome de Maria Callas continua, com seu enorme magnetismo, a fascinar e a intrigar os que conhecem ou não os meandros da arte lírica.

Em compasso de atemporalidade sendo capaz de estabelecer polêmicas e criar atitudes comportamentais (ser temperamental ainda é equivalência de “dar uma de Callas”). Mas, afinal, quem é Callas? Enquanto Marina Abramovic polemiza seu olhar na contemporaneidade, a própria Callas, em tempo metafórico, emblematiza sua resposta:

“A personagem Callas eu a trago dentro de mim. Ser Callas é uma religião. É a minha religião”...

                                        Wagner Corrêa de Araújo

MARIA CALLAS EM LA TRAVIATA. Theatro Municipal/RJ. Setembro de 1951. Foto/Coleção particular. Comparem as duas fotos no papel de Violetta e verão como fisicamente, houve uma  radical transformação, em apenas 7 anos.

Comentários

Postagens mais visitadas