LA STRADA : FELLINI/ROTA EM VISCERAL RELEITURA POR GOECKE. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

LA STRADA. Gartnerplatztheater, Janeiro,16, 2021. Fotos/Marie Laure Briane.


Há três anos a cena coreográfica paulista  se surpreendia  com o inusitado e provocador tônus da obra de Marco Goecke para a São Paulo Companhia de Dança. Na época, postei a seguinte análise crítica que retomo agora diante do encantamento de ter assistido nas plataformas visuais, com estreia no último dia 16 de janeiro, a visceral envolvência de sua criação La Strada, inspirada no filme de Federico Fellini, Oscar de 1954,  a partir de uma suíte sinfônica de Nino Rota composta em 1966.

O medo me motiva... Mas o corpo permanece - é a tela sobre a qual estamos pintando”. Reflexão que remete à poesia, à solidão e ao caos, temáticas recorrentes na criação coreográfica do alemão Marco Goecke. Com uma das mais  sólidas trajetórias inventivas na dança contemporânea e que ficou, sobremaneira, marcada em suas passagens pelo Nederlands Dans Theater e o Stuttgart Ballet.

As três obras de um coreógrafo sob a prevalente marca criativa de reiterativa linguagem gestual, entre o automatismo simétrico e a mecanicidade nervosa, foram capazes de sequenciar, sem pausas, movimentos milimetricamente construídos, dimensionados ora para mãos e braços, ora em bruscos arranques de tronco e ombros.

Construindo gesto a gesto, numa linguagem sincopada e num feeling enérgico que, ao mesmo tempo, induzem a uma expressiva exteriorização do conflitante suporte da condição humana. Tornando-se perceptível, por este aspecto, num mergulho quase ritualístico da corporeidade dos bailarinos, traçada como espectros ou silhuetas numa luz entre sombras o que, segundo Goecke, representaria “tentativas de libertação”, transmutadas em solos, duos, trios e conjuntos”.

Nesta releitura de obra criada em 2018 - La Strada, agora nas plataformas digitais com disponibilização liberada, via Live-Stream ( youtube.com ),  para quem não conhece o inovador gestual coreográfico reiterativamente mecanicista/robótico de Marco Goecke é uma chance, mais que rara e especial, para conferi-lo na incursão quase dança-teatro que ele faz pelo celebrado enredo felliniano sob a potencial atração da trilha de Nino Rota. 

   Ressaltando que, na ausência de elementos cenográficos, a plasticidade do imaginário está no funcional despojamento dos figurinos de Michaela Springer (cumulativo à concepção coreográfica de Marco Goecke), enquanto o desenho de luz torna-se fundamental às climatizações da performance, mostrando uma aproximada similaridade com os elementos tecnoartísticos destinados à sua obra Supernova, para a SPCD em 2018, e adequadamente referencial para La Strada, também da mesma época.      

Se, em princípio, a um espectador não acostumado a uma mobilidade de assumido gestual robotizado possa assustar, talvez, esta simulação de metafórico jogo com corpos/marionetes manipulados por fios invisíveis, é preciso saber resistir para, assim, melhor absorver este diferencial estilo de movimento, um dos mais incisivos no panorama atual da dança contemporânea.

E que, na transposição dançante da trajetória de uma mulher (Gelsomina) submetida às pressões machistas do marido e showman (Zampanò) na estrada da vida, dá um salto revelador quando esta conhece um artista de circo (Matto) - um acrobata por quem se apaixona perdidamente - deixando de lado o status de contumaz submissão feminina ao doentio ciúme e possessividade do seu parceiro masculino.

A própria concepção do andamento coreodramtúrgico (com adaptação de Daniel C. Schindler) dá vazão aí a instantâneas motricidades corpóreas, com sutil e quase imperceptível sotaque quando torna incidentais certos retoques que conectam o contemporâneo ao neoclássico.

Sustentado por um conceitual lúdico-burlesco que privilegia o universo circense, no entremeio da energia acrobática e de um expressionismo facial que lembra máscaras e palhaçaria, em substancial performance do Ballet of the State Theatre Gärtnerplatz.

Com suas pulsões de alegria no entremeio de repiques melancólicos, numa tipicidade memorial da linguagem fílmica felliniana, e que os acordes sonoros levam a uma culminância de sonhos, delírios e paixões em múltiplo encontro da dança, do cinema, da música, do teatro e  do circo.

Tornando, afinal, obrigatória esta abordagem sob o signo de avançada invenção coreográfica, sem deixar de lado o teor poético original, para um dos maiores clássicos da história cinematográfica mundial.

                                           Wagner Corrêa de Araújo

LA STRADA. Gärtnerplatztheater. Janeiro 2021. Disponível, em versão completa, no youtube.com

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