O TEATRO NUNCA SERÁ UMA DAS VÍTIMAS FATAIS DA COVID-19. ARTIGO DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
JACKSONS DO PANDEIRO. Musical/Barca dos Corações Partidos. Foto/Renato Mangolin. |
Se há mais de vinte séculos o oficio performático vem sobrevivendo como um dos ápices do saber humano, não há de ser agora que ele tombará perante o caos pânico instaurado pela Covid-19. Ao contrário, recorrendo à transcendente lição de Peter Brook, “quando o teatro é necessário, nada mais é necessário”.
Em ano quase sem fim, considerando-se o início do flagelo em terras brasileiras a partir de março/17/2020, com a interdição de palcos e plateias, numa possível especular simbologia literária, filosófica e política da narrativa de Albert Camus, incisivamente titulada como A Peste.
Tão aplicável, sobretudo, à desgovernança sanitária e política que assola o País. Afinal temos ainda, mais do que nunca, a obrigação e o dever moral como cidadãos de nos empenharmos na luta erradicadora deste dúplice surto virótico.
Diante das limitações impostas para evitar maior disseminação do trágico contágio, surgiu o que poderíamos talvez denominar como Teatro Pandêmico. Uma representação atoral fissurada em seus elementos básicos - o fator presencial e o face a face - impedida, assim, de ser compartilhada, numa comum emoção coletiva palco/plateia, ator/espectador.
Se o processo criador interativo do encontro e da corporeidade é suspenso, como fazer valer a força telúrica, no entremeio do sensorial e da provocação reflexiva, razão de ser e sustento estético da própria representação teatral, metaforizando-se em performático ato artístico e político?
Confrontados, os realizadores do espetáculo diante do lockdown cênico se aventuraram numa incessante busca de soluções emergenciais para ultrapassagem deste tempo do novo normal. Claro que a resposta, talvez a única possível, estaria na imediata utilização dos recursos digitais.
Onde, apesar de tudo, o contato espectador/ator ficaria submisso à não presença, ao vivo e a cores, ora através da plataforma digital pelo Zoom ora por intermédio de registros cinéticos. Ambos, evidentemente, privilegiando o distanciamento físico e fazendo prevalecer o isolamento solitário das duas partes.
Quebrado apenas pelos chats e lives pós-espetáculo, via registros e inscrições pagas ou franqueadas. Mas que, apesar dos pesares, pelo menos teve um fator, de certa maneira positivo, ao possibilitar uma interatividade da proposta em termos nacionais e até mesmo globais com espectadores dos mais distantes recantos. Quem sabe experimentando, pela primeira vez, o encantamento de um espetáculo teatral, ainda que sob formato virtual.
PARECE LOUCURA MAS HÁ MÉTODO. Grupo Armazém de Teatro. Foto/Divulgação. |
O resultado imediato foram as temáticas decorrentes do isolamento social que se tornariam insistentemente reiterativas. No confinamento do ator, na maioria das vezes em sua própria ambiência residencial, falando das agruras de um cotidiano de comportamental solitário, sob o compasso de um antidoto com tônus de risco próximo. Sem qualquer conectividade, física/emotiva/comunitária, no parâmetro habitual do processo cênico criador.
Saindo de cena praticamente, à causa da quarentena exigida, a caixa preta, os bastidores e suportes técnicos, pela quase total ausência, forçada pelas difíceis circunstancias, de elementos cenográficos, indumentários, luminares e sonoros. Em suma, restando o ator, empenhado num misto de performance documental/confessional, em conflitante status ao submergir nesta realidade de total exclusão da convivência psicofísica com o público, sob narrativa transmidiática que vai dele ao imaginário espectador.
Proliferaram, então, as propostas sob o signo do experimentalismo em inúmeros solos monologais ou em painéis que conectam na tela a dialetação dos atores, na diversidade de espaços domiciliares e com espetáculos absolutamente minimalistas.
Por vezes orientados por um comando cênico diretorial na manipulação dos efeitos computadorizados, de outras - concebidos espontaneamente por seus mentores/atores. Mas sempre sob a égide prevalente de uma proposta audiovisual onde, por exemplo, os solos coreográficos na linhagem dança-teatro tiveram melhores resultados.
Entre tantas realizações, de maior ou menor teor qualitativo, exatamente por não conseguirem ultrapassar os tramites classificatórios do espetáculo simplesmente cinético, ou de má captação fílmica, há que se destacar as desanuviadoras incursões realizadas pelo grupo paulista Os Satyros, com especial referência para A Arte de Encarar o Medo, na direção segura e, antes de tudo, antenada com a problemática do momento, por Rodolfo Garcia Vázquez.
E, aqui, no Rio, a surpresa inicial de uma das mais marcantes concepções do teatro digital sob o signo inspiratório em personagens shakespearianos, num duelo cênico de caráter lúdico entre atores com participação virtual dos espectadores - Parece Loucura Mas Há Método, com o Grupo Armazém de Teatro, sob provocativa condução de Paulo de Moraes.
No formato de musicais pré-gravados, o bonito esforço de enfrentamento do perigo pandêmico no visceral registro cinético, com elenco integral e completo staff musical, de Jacksons do Pandeiro, pela Barca dos Corações Partidos, na sempre artesanal visão de Duda Maia.
Não podendo deixar de ser lembrado o meritório projeto de resistência - Teatro Já - de Beatriz Nogueira na ocupação realista do palco do Teatro Petra Gold, com transmissão virtual. Trazendo outra acurada direção de Rodrigo Portella, desta vez para o solilóquio confessional de Maitê Proença – O Pior de Mim.
Além, entre outros espetáculos, da oportuna amostragem de três textos inéditos de Gustavo Pinheiro - A Lista, Nesta Data Querida, Romeu & Julieta(E Rosalina) - numa das mais surpreendentes revelações redentoras de força da nova dramaturgia carioca para um ano de tantas incertezas...
Wagner Corrêa de Araújo
O PIOR DE MIM. Maitê Proença, no projeto Teatro Já. Foto/Cristina Granato.
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