THE CAR MAN : TRANSGRESSIVO TEATRO DE DANÇA CONTEMPORÂNEA. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

THE CAR MAN. Teatro coreográfico de Matthew Bourne. Abril /2021. Fotos/Johan Persson.


O coreógrafo inglês Matthew Bourne já afirmou convicto, mais de uma vez, que concebe a New Adventures “como uma companhia de teatro de dança contemporânea longe de qualquer referência a uma trupe de balé”.

E desde sua inicial proposta estética a partir das mais que autorais reinvenções do Lago dos Cisnes e da Bela Adormecida, seguidas por Cinderela, Quebra Nozes  e Romeu+Julieta, tornou-se uma espécie de “enfant terrible” da dança contemporânea.

Com o substrato transgressor e o espírito irreverente que vem imprimindo às suas criações de teatro coreográfico onde a narrativa original destes balés é transmutada em releitura absolutamente provocadora.

Ora através da conotação de marginalidade e violência, ora com um forte sotaque de sexualidade homoerótica,  a partir do reprimido Príncipe Siegfried encantado por um Lago de atléticos cisnes masculinos com torsos nús.

Sua reinvenção da Carmen, sob irônica titulação fonética como The Car Man, quase nada remete à narrativa de Merimée embora faça uso das melodias de Bizet segundo a transcrição, para cordas e percussão, do russo Rodion Shchedrin dedicada à sua mulher Maya Plisetskaya. E, aqui, sob novos arranjos, através da parceria de Bourne com seu maestro favorito Terry Davies.

THE CAR MAN. Chris Trenfield e Zizi Strallen. Foto / New Adventures/Johan Persson.

A fábrica de cigarros onde, na trama original da ópera, trabalhava Carmen, transmuta-se numa oficina mecânica para automóveis, numa destas ambiências provincianas decadentes e bem típicas do cinema americano anos 40/50, extensiva cenograficamente à lembrança das pinturas cotidianas de Edward Hopper.

Nesta paisagem interiorana de uma comunidade chamada de Harmony, aparece também uma lanchonete e, no segundo ato, um cabaré povoado por prostitutas, malandros e ilusionistas, além de guardas penitenciários integrados a uma cela prisional no plano superior do palco. 

No prólogo, um anúncio na oficina com duplo sentido – Procura-se Homem – atrai para a vaga o musculoso Luca (Chris Trenfield), de insinuante rusticidade e capaz de seduzir, simultaneamente, os dois sexos.

Levando a uma torrente de luxúria e sexualidade que envolvem Lana (Zizi Strallen), a insatisfeita mulher do proprietário Dino (Alan Vincent) e o jovem e tímido trabalhador Angelo (Dominic North). Este último disfarça seu lado gay cortejando Rita (Kate Lyons) a irmã de Lana.

A pitoresca concepção cênica (Lez Brotherston) lembra, sob efeitos de luzes entre sombras (Chris Davey), tomadas cinematográficas do filme noir americano, de 1946, The Postman Always Rings Twice (O Destino Bate à sua Porta). Onde Bourne assumidamente referencia Lana Turner, homonimamente na principal personagem feminina.

Aliás, não fica por aí o tratamento cinematográfico deste teatro coreográfico, mostrando jogos de câmera e o abuso de close ups em substancial versão cinético-teatral. Que também remete, nos seus recursos visuais, particularizados nos ousados pas de deux e vigorosas cenas de conjunto, a um autentico musical entre Hollywood e a Broadway.

Passagens de avançado teor erótico vão da cena de banho com operários nus, no sugestionamento de atos sexuais do casal protagonista, beijos homoeróticos e nos sequenciais sinais lúbricos do elenco masculino, entremeados por um gestual energizado, sustentando-se com rara luminosidade nos acordes melodiosos e rítmicos de Bizet/Shchedrin.

Este clima de acirradas pulsões psicofísicas,  sob doses de lascívia, ciúmes fatais, sangue e violência criminal, funciona não só como um tributo ao melhor do romance policialesco de James M. Cain e Raymond Chandler e ao cinema Noir. Não por acaso, desde sua estreia há vinte anos, é sucesso absoluto de público e de crítica.

Potencializando um teatro coreográfico carismático não só por sua busca investigativa no cruzamento da diversidade de linguagens artísticas e hipnotizante tanto para os aficionados do teatro e da dança, como por sua liberdade de exposição crua dos desejos mais puros e mais torpes que marcam a condição humana.

                                               Wagner Corrêa de Araújo

                         THE CAR MAN. Dominic North como Angelo. Foto/Johan Persson.


(Este espetáculo, reestreado em Londres no último dia 16, estará disponibilizado na íntegra, até o dia 21 de abril, no youtube.com  sob o titulo : The Car Man - Full Show -The Shows Must Go On!)

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