TEXTOS DO PASSADO: TERCEIRA SINFONIA DE MAHLER PELA OSESP; OU, POR QUE AMAMOS MAHLER? ARTIGO DE FERNANDO RANDAU NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.


No último domingo tive a oportunidade de assistir pela primeira vez ao vivo a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob a competente regência do maestro costa-riquenho Giancarlo Guerrero. Todos os colegas aqui do blog já tiveram a chance de ver o que até então eu só vira pela televisão e através de alguns CDs. Pouco tenho a dizer sobre a atuação da orquestra, a não ser que de fato é, sem dúvida, a melhor de nosso país, dando gosto finalmente poder ouvir um naipe de metais tão bom e cordas que demonstram uma unidade digna o bastante para tocar uma sinfonia de Bruckner, digamos. Se a orquestra iniciou aparentemente cansada, já no final do primeiro movimento estava em plena forma, e minhas únicas restrições ficam com a contralto francesa Nathalie Stutzmann (bonita voz, mas não me cativou) e o coro feminino e infantil.

Com a terceira de Mahler me parece que ocorre o que Carpeaux escreveu sobre a música do Götterdämmerung: barulhenta por fora, mas serena por dentro. Nessa sinfonia que tem cara de tudo, menos de uma sinfonia – uma cantata? Uma suíte? Uma missa pagã? –, como o próprio compositor reconhecia, os momentos mais sublimes são reservados em meio aos rompantes fortíssimos dos metais. Parece-me que as passagens em pianíssimo são as características mais marcantes dessa obra – como no toque da trompa fora do palco sustentado pelos violinos no terceiro movimento – e não as explosões militares e triunfais. Não é o barulho a grande conquista de Mahler aqui, mas apenas a alusão.

Essa foi a terceira vez em que fui a um concerto de Mahler nesse ano. Dois dias antes os cariocas puderam assistir a décima sinfonia completada por Cooke sob a batuta de Mathias Bamer com a OSB, e no final de setembro ainda houve a Titã com Mehta e a Filarmônica de Munique (quem não pôde ir nessa teve a oportunidade de ver o mesmo programa pela Sinfônica de Barra Mansa por um preço mais acessível: R$ 1). Inevitável se perguntar: por que tanto Mahler?


    Mahler está em toda parte. Todo maestro que se pretenda sério rege Mahler – mesmo Norrington já gravou a Titã com instrumentos de época (?!) –; há diversas integrais das sinfonias para todos os gostos, personagens de novelas citam Mahler, Prince – sim, o cantor dos anos 80 – menciona Mahler numa música, Mahler aparece nos filmes de Woody Allen, Mahler é o compositor preferido de uma imensidão de melômanos e até mesmo uma extravagante porta de entrada para muitos, como Gilbert Kaplan que estudou regência apenas para executar a segunda sinfonia de Mahler. Tudo Mahler, Mahler, ah Mahler… Quando Mahler disse que seu tempo viria tenho dúvidas se ele achava que viria a ser centro das atenções desse tempo – o equivalente ao Zeitgeist. Enfim, “Mahler Lives, Mahler Grooves”.

   Por que tudo isso? Essa mahlermania não é recente, é claro. Deixo de lado aqui questões como as preferências dos diretores de orquestras, da conveniência dos programas sinfônicos ou de seu uso em trilhas sonoras várias, e mesmo nas peculiaridades das partituras de Mahler para me concentrar no que faz um ouvinte comum ser fascinado por Mahler, considerando sua música tão acessível quanto profunda.

Certa vez testemunhei um senhor perguntar para um adolescente a razão dele estar ali na sala de concerto para ouvir Mahler, ao que este respondeu: “porque ele é mó neurótico! (sic)”. É verdade que o espírito bipolar facilmente reconhecível nas sinfonias e lieder de nosso compositor favorecem sua apreciação por pessoas ávidas de sons neuróticos, mas isso não é o bastante.

Sei que o que direi já é praticamente clichê, porém é inescapável: por mais pura que se pretenda em cada sinfonia mahleriana somos apresentados a uma narrativa épica em forma de música com um teor metafísico imediatamente reconhecível – a segunda e a oitava são exemplares nesse sentido. Evidentemente, nem sempre a ansiedade encontra a redenção ao término – como na sexta. Mesmo na quinta e na sétima parece-me possível perceber uma trajetória latente de declínio, enfrentamento e ascensão.

No mundo de referências em que se sucedem marchas militares, canções populares da Belle Époque, folclore judaico, adágios introspectivos e finais triunfantes, percebo o quanto a música de Mahler ganha o status de busca por um senso de transcendência. Convertido sincero ao catolicismo, nosso compositor jamais fez uma exposição desorganizada de sua interioridade por meio das sinfonias. Pelo contrário: Mahler é um compositor cerebral, cujas bruscas alterações de dinâmica são calculadas e não se perdem no todo, não surpreendendo que por isso mesmo não tenha datado. Na sucessão de alta cultura e vulgaridade em uma mesma página, suas partituras oferecem um senso de plenitude que nos põem além do mundano.

Não quero dizer com isso que haja uma maneira certa de ouvir Mahler, nem que é errado sua música ganhar essa “função”. É de se destacar que esse é apenas mais um sintoma muito particular de como a fruição da arte foi cada vez mais sendo interiorizada no Ocidente. Ouve-se Mahler menos porque se deseja uma dimensão heróica, ou melhor dizendo, transcendente – um reencantamento do mundo, algo que Wagner igualmente procurou por meios imanentes e foi menos bem sucedido. É condição típica da modernidade essa consideração com a música e em posts futuros espero me estender mais a respeito.

Fernando Randau - Abril/2017

Fonte: http://euterpe.blog.br/terceira-sinfonia-de-mahler-pela-osesp-ou-por-que-amamos-mahler/

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