RIMSKY - KORSAKOV: SCHERAZADE. ARTIGO DE AMANCIO CUETO JR. NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

Mariano Fortuny: Odalisque

Em 1888, o compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov decidiu escrever uma peça sinfônica baseada nas histórias das Mil e Uma Noites. Nascia assim uma de suas obras mais famosas, a suíte sinfônica Scheherazade Op.35.
Suíte sinfônica ou Poema sinfônico?
(Pergunta bem pertinente!) Suíte sinfônica é uma série de movimentos reunidos em torno de uma tema central, uma ideia extra-musical; já o poema sinfônico é uma obra de um movimento só que conta uma estória através da música. Quadros de uma Exposição de Mussorgsky é uma suíte sinfônica que descreve uma visita a uma exposição de dez quadros (a ideia central extra-musical); já A Bruxa do Meio-Dia de Dvorák é um poema sinfônico que conta uma estória com personagens e tem começo, meio e fim. Os dois gêneros podem ter pontos em comum, mas suas diferenças são bem relevantes ao analisarmos Scheherazade.
John Frederick Lewis: As Mil e Uma Noites (Noites Árabes)
John Frederick Lewis: As Mil e Uma Noites
A intenção de Rimsky-Korsakov era escrever uma peça que lembrasse as Mil e Uma Noites, mas não que contasse a estória do livro. Tanto que a ideia inicial era batizar os movimentos de Prelúdio, Balada, Adagio e Finale, para que o ouvinte tivesse a impressão de estar ouvindo vários contos orientais sem necessariamente relacionar a música com nenhuma estória específica. Foi ideia do amigo Anatoly Lyadov dar títulos aos movimentos, porém Rimsky-Korsakov manteve-os vagos para que o ouvinte não se apegasse demais às descrições. Posteriormente o compositor removeu os títulos, mas aí já era tarde e eles já haviam caído no gosto popular.
Então Scheherazade não conta uma estória?
Não – ou pelo menos não da forma linear como lemos nos livros. A obra soa como se, após a leitura do livro, houvéssemos sonhado com os personagens e, neste mundo onírico e exótico, todas as estórias tivessem se misturado, personagens houvessem se fundido e os relatos perdessem a ordem cronológica. Vamos conferir tudo isso na música, e então ficará mais fácil de entender por que Scheherazade é uma suíte sinfônica e não um poema sinfônico.
Rimsky-Korsakov preparou o seguinte texto para o programa de estréia da obra:
O Sultão Shahryar, convencido da falsidade e da infidelidade das mulheres, promete casar com uma nova esposa e executá-la no dia seguinte até que não existam mais candidatas. Mas a Sultana Scheherazade salva sua própria vida entretendo-o com contos que ela mesma conta durante mil e uma noites, deixando cada estória incompleta até a noite seguinte. Movido pela curiosidade, o Sultão adia constantemente a execução, e por fim abandona completamente seu plano cruel.
Muitas maravilhas Scheherazade relatou a ele, citando os versos dos poetas e as palavras das canções, tecendo conto dentro de conto e estória dentro de estória.
1. O Mar e o Navio de Simbad
A obra inicia descrevendo o personagem do Sultão obediente à sua terrível promessa:
Então Scheherazade se oferece para casar com o Sultão. Durante a noite de núpcias, ela cai no choro e diz ao marido que tem uma irmã mais nova, e que gostaria de se despedir dela. Sultão manda chamá-la, e a irmã, previamente instruída por Scheherazade, diz (assim como dirá também nas noites seguintes): “Por Deus, maninha, se não estiver dormindo, conte uma daquelas suas belas estórias”. E, após a autorização do marido, Scheherazade começa a narrar seus contos:
Ilustração de Rene Bull para o livro das Mil e Uma Noites
Ilustração de Rene Bull para o livro das Mil e Uma Noites
Uma das estórias narradas por Scheherazade foi a de Simbad, o marujo, um homem que se tornou muito rico após sete viagens marítimas que ele passa a contar em detalhes. Todas as sete viagens seguem um mesmo padrão: Simbad sai a navegar e seu navio afunda; os náufragos (ou às vezes apenas Simbad) vão parar numa terra estranha, onde vivem aventuras das mais fantásticas; ao final, Simbad descobre um grande tesouro ou é recompensado por alguém, e então retorna para casa são e salvo… e ainda mais rico.
Rimsky-Korsakov foi oficial da marinha russa por muitos anos, e assim soube como ninguém pintar o mar em sons. Violoncelos sugerem o balançar do navio, e os pizzicatos soam como respingos da água do mar:
O mar desempenha um papel de “vilão” nas estórias de Simbad, e talvez por esse motivo a nossa Scheherazade musical o descreva utilizando o mesma tema do Sultão, o vilão de sua própria história. Compare os dois temas:
A narrativa de Simbad se estende por várias noites, e por isso ouvimos de tempos em tempos a voz da Scheherazade no violino solo retomando a estória. Repare que o tema é o mesmo, ele só está acelerado:
No geral, o formato do movimento é um simples ABC-A’B'C’-A”B”C”, sem entrar nos detalhes da estória de Simbad. É dessa forma que Rimsky-Korsakov faz a música lembrar as Mil e Uma Noites, e não contar as estórias, justificando assim o título de “suíte sinfônica” ao invés de “poema sinfônico”.
2. O conto do Príncipe Kalender
Passemos para o segundo movimento onde, na noite seguinte, a irmã diz novamente: “Por Deus, maninha, se não estiver dormindo, conte uma daquelas suas belas estórias”. Ao que Scheherazade (sempre) responde, “com muito gosto e honra”:
Muitos pensam que Kalender é um nome próprio, o nome do príncipe do conto. Porém kalandar (às vezes grafado como qalandar, kalendar ou calender) é um tipo de dervixe, uma espécie de monge muçulmano que faz voto de pobreza e leva a vida como mendigo errante. Então o título ficaria mais claro para nós, ocidentais, se fosse “o conto do príncipe mendigo”.
Georges Gasté - Portrait d'homme
Georges Gasté: Portrait d’homme
Não li ainda todas as estórias das Mil e Uma Noites, mas há pelo menos três estórias de príncipes calênderes dentro de uma estória maior, “O carregador e as três jovens de Bagdad”. Os três dervixes são cegos do olho esquerdo, e cada um conta sua própria história ao serem questionados de como perderam o olho. As narrativas são complexas demais para serem resumidas aqui (e também os detalhes são irrelevantes para a análise da suíte sinfônica), mas quem tiver mais curiosidade pode ler um resumo clicando aqui (em inglês) ou, melhor, adquirindo o Livro das Mil e Uma Noites. Recomendo a recente tradução para o português (porém ainda incompleta) de Mamede Mustafa Jarouche; o conto dos três dervixes está presente já no volume 1.
Impossível saber qual das três estórias serviu de base para Rimsky-Korsakov escrever este movimento. Provavelmente não seja nenhuma delas, já que a ideia era apenas sugerir contos orientais. De qualquer forma, eis o que nós poderíamos chamar de “tema do Príncipe Kalender”:
No primeiro movimento, vimos o vilão da estória ser descrito com o tema do Sultão; aqui o tema do herói compartilha um trecho com o tema da Scheherazade, repare:
O tema é repetido quatro vezes com diferentes orquestrações, quando então os baixos, primeiro em pizzicato e depois com arco, nos apresentam a algum tipo de inimigo do príncipe; compare como seu tema é parecido com o tema do Sultão:
Trombones e trompetes parecem chamar seus exércitos para a guerra (e realmente há uma guerra na estória do primeiro príncipe calênder):
Por duas vezes o Príncipe Kalender aparece no meio da guerra, em trechos que ora parecem recitativos, ora cadências:
Selo húngaro mostrando Simbad e o pássaro Roca
Selo húngaro mostrando Simbad e o pássaro Roca
E quando começamos a encontrar um paralelo entre a estória e a música, Rimsky-Korsakov nos dá um banho de água fria. No trecho abaixo, o próprio compositor descreveu o motivo do piccolo como “um esboço do pássaro de Simbad, a Roca”:
A roca (ou roque) é um pássaro mitológico que está presente na segunda e na quinta viagem de Simbad, aquele mesmo do primeiro movimento. Mas a roca também aparece na estória do terceiro príncipe calênder. Ou seja… esqueça as estórias e curta a música! O formato geral do movimento é um ABCBA com introdução, sendo que na última seção A o tema do Príncipe Kalender é novamente repetido quatro vezes com diferentes orquestrações.
3. O jovem príncipe e a jovem princesa
Há muitas estórias de amor de príncipes e princesas nas Mil e Uma Noites. Uma das fontes consultadas diz que este movimento foi baseado no conto do príncipe Kamar al-Zanna e da princesa Budur, mas o roteiro da música é tão genérico que pode se encaixar perfeitamente em qualquer outra estória romântica. Veja: era uma vez um príncipe…
George Barbier: Sheherazade
George Barbier: Sheherazade
… que conhece uma linda princesa… (seria ela uma dançarina?)
Scheherazade faz mistério e adia o final da estória para a noite seguinte. Será que eles ficarão juntos?
Enfim os jovens se entregam à magia do amor:
Casaram e viveram felizes para sempre (pelo menos até o final do terceiro movimento). Fim.
Há algumas curiosidades musicais que precisam ser citadas. A princesa é inicialmente nos apresentada em Si bemol, mas no epílogo da estória seu tema reaparece na mesma tonalidade do tema do príncipe, Sol Maior. Fica claro que eles casaram, não?
Não ficou claro? E que tal esta passagem nos compassos finais, onde o príncipe dança com a princesa? Compare com o tema original do príncipe:
Interessante perceber, tal como o tema do Príncipe Kalender, o tema do jovem príncipe também possui um trecho derivado do tema da Scheherazade, repare:
4. Festival de Bagdad. O Mar. O navio se choca contra um rochedo encimado por um guerreiro de bronze
Depois de centenas de noites, encontramos um Sultão irritado com todas essas estórias que não tem um fim:
Scheherazade se sente desafiada e passa a contar uma enorme estória juntando todos os personagens anteriores:
E a essa estória ela dá o nome de Festival de Bagdad:
Bem, esta é a versão do compositor para o que aconteceu na milésima primeira noite. Como leitor, ainda não encontrei no livro nenhuma estória com este título, ou que contivesse todos os personagens numa estória só (o que beiraria ao impossível). Assim, Rimsky-Korsakov deixa a cargo do ouvinte imaginar um conto com todos estes personagens. Aqui, o Príncipe Kalender:
Aqui, a jovem princesa do terceiro movimento (estaria ela sendo disputada pelos dois príncipes?):
O jovem príncipe:
Até mesmo os chamados de guerra do segundo movimento foram lembrados:
Alfred Britcher: Grand Summer, Grand Manan
Alfred Britcher: Grand Summer, Grand Manan
E para encerrar o festival, Scheherazade (a musical) narra uma passagem da estória do terceiro príncipe calênder, onde este acaba perdido no mar e seu navio avista à distância uma “montanha magnética” amaldiçoada. No topo da montanha existe uma estátua de bronze retratando um cavaleiro montado sobre um cavalo, e enquanto o cavaleiro não for derrubado, todos os que avistarem a montanha se afogarão, pois o magnetismo da montanha atrai os pregos das embarcações e estas, desmontadas, são arremessadas às rochas. Por isso ouvimos novamente o tema do mar, revolto como nunca:
O navio se desmonta e é arremessado às rochas. Note aqui como o compositor descreve o navio afundando:
No livro, o terceiro príncipe calênder sobrevive ao naufrágio e derruba o cavaleiro de bronze, libertando o mundo da maldição. Na música, porém, Scheherazade encerra sua última estória por aqui mesmo:
Comovido, o Sultão chora. Após mil e uma noites de estórias, ele desiste de matar a esposa:
E viveram felizes para sempre!

Amancio Cueto Jr.

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