PINÓQUIO / CIA PEQUOD : EXEMPLAR ALEGORIA CIRCENSE/MUSICAL DE UM PERSONAGEM CLÁSSICO. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

Pinóquio - Cia Pequod . Direção Miguel Vallinho. Tim Rescala, libreto/música. Dezembro 2021. Foto/Renato Mangolin.


Desde a criação deste personagem, precisamente em 1883, no formato folhetim, sob o titulo de La Avventure di Pinocchio, o jornalista e escritor italiano Carlo Collodi nunca imaginaria o seu potencial e significativo alcance, numa trajetória secular de sucesso, via diversas linguagens artísticas.

Em adaptações que vão dos quadrinhos ao desenho animado, estendendo-se às narrativas cinematográficas, da versão 1940 de Walt Disney à mais recente, ainda inédita no circuito comercial, por Matteo Garrone.

Além das adaptações para o palco, do teatro infantil à dança e à ópera, valendo mencionar, neste último segmento, de um olhar contemporâneo do inglês Jonathan Dove (2007) à concepção mais polêmica dos franceses Joël Pommerat/P. Boesmans, para o Festival Aix en Provence, 2017.

Fugindo à fabulação barata das reiterativas versões para o público infantil, o Pinóquio de Tim Rescala (libreto e música) para a Cia Pequod, tem um diferencial qualitativo que, muito além de seu mero caráter lúdico, é capaz de envolver, numa mesma pulsão emotiva, todas e quaisquer idades.

Na simbologia de uma narrativa dramatúrgica sobre a transformação de um menino, como boneco/fantoche de madeira, num ser humano pensante, após superar todas as suas fragilidades psico comportamentais, da teimosia e da ingratidão ao ato de só pensar em levar vantagens ou dizer mentiras, mesmo que isto leve ao crescimento exagerado de seu nariz. Ou que o faça enfrentar o desafio de inúmeras adversidades, na condição de um polichinelo títere ora metamorfoseado num burro, ora submetido a um regime servil de encarceramento.

Isto tudo através do artesanal dimensionamento estético atingido pela direção de Miguel Vellinho num substrato burlesco/circense, sob forte referencial de teatro de animação. E uma brilhante partitura que, em suas modulações camerístico/vocais, remete à conexão de uma opereta popular brasileira com o musical estilo cabaré de Kurt Weill. Na competente interpretação dúplice dos múltiplos instrumentistas Tibor Fittel e João Paulo Romeu, alternando-se com David Ganc/Rodrigo Revelles.

Pinóquio/ Cia Pequod. Mona Vilardo e Santiago Villalba. Dezembro 2021. Foto/Renato Mangolin.

No protagonismo titular, Liliane Xavier inspira força interior e dá densidade a todos as nuances de mistificador mor deste emblemático personagem. Enquanto nos papeis coadjuvantes, um craque do teatro de animação como Márcio Nascimento (Geppetto) reafirma seu temperamento dramático e sua hábil técnica de manipulador no gênero.

Em repiques de vocalize operística, no entremeio de uma textualidade recitativa, a soprano Mona Villardo e o barítono Santiago Villalba revelam unidade interpretativa, irradiantes na experiência de extensão vocal, tanto como mestres de cerimônia do Circo Collodi, como na defesa de outros papeis, da simpática Fada Madrinha ao insensato explorador de show de marionetes.

E, ainda, com perceptível apelo sensorial, há que se destacar a ironia crítica imprimida ao leitmotiv vocal, na divertida coloratura do Cri-Cri-Cri, por Marise Nogueira em seu Grilo Falante, ou a irreverencia histriônica assumida pela Raposa esperta de Maria Adélia como pelo Gato matreiro de João Lucas Romero.

O paisagismo cênico (Doris Rollemberg) é materializado nas cores e objetos de um minimalista picadeiro circense, sob mutabilidade metafórico/psicológica no seu direcionamento à diversidade de ambiências, incluído o ventre aquoso de uma baleia.

O resultado pictórico é ampliado tanto pelas tonalidades aquareladas do figurino (Kika de Medina) como pelos discricionários efeitos de sombra e luz (Renato Machado), acentuados especialmente nas mágicas aparições da Fada Madrinha e do Grilo Falante.

A atemporalidade mítica/fabular de Pinóquio pode ser medida pela ilimitada admiração que Ítalo Calvino, o grande escritor italiano, sempre atribuiu ao personagem, na transmutação reflexiva do atribulado caminho da condição humana em busca de sua auto perfeição e onde, afinal, não há como fugir desta especular identificação :

É natural pensar que Pinóquio sempre existiu; é impossível imaginar o mundo sem ele”...

                                          Wagner Corrêa de Araújo


Maria Adelia e João Lucas Romero em Pinóquio. Dezembro 2021. Foto/Renato Mangolin

Pinóquio, pela Cia Pequod, está em cartaz no Teatro III, do CCBB, Centro do Rio,  de quarta a sexta, às 19 h., e aos sábados e domingos às 16h. Até o final de Janeiro, 2022.

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