A ESTREIA DE ARTURO TOSCANINI NO RIO DE JANEIRO. LENDA E REALIDADE. ARTIGO DE HENRIQUE MARQUES PORTO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
por Henrique Marques Porto
Em outubro de 1886 a coluna “Variazione artistica”, do periódico La Riscossa, de Parma, publicava notícia de um evento “miraculoso” ocorrido no Rio de Janeiro quatro meses antes -a estreia como regente de Arturo Toscanini, em 30 de junho no Theatro D. Pedro II, que receberia o nome “Theatro Lyrico” depois da proclamação da república, em 1889. Vale a pena transcrever um trecho da matéria publicada pelo jornal de Parma, que logo repercutiu em toda a Itália e em boa parte da Europa.
“A Rio agisce uma compagnia di canto italiano, della quale fa parte la celebre Nadina Bulicioff, il tenore Figner, il basso Roveri, eccetera. Si era dato il Faust com splendido successo. Tutti i giornali portavano al siete cieli gli artisti, ma si mostravano poco soddisfatti del diretore d’orchestra, certo Leopoldo Miguez, brasiliano, il quale a quanto pare, mostro di non avere né pratica, né capacitá per dirigere la magnífica orchestra che gli era stata affidata. Come si passarono le cose no si sa precisamente; il fato è que il signor Miguez, punto nel suo amor próprio, mentre stava per andare in scena l’Aida, scrisse una bela lettera di congedo al impresari, uno del quali il signor Superti (...) ebbe l’infelice Idea di sotituire il diretore dimissionario. Non l’avesse mai fatto!”
Theatro Lyrico (antigo D, Pedro II), onde Toscanini estreou |
È vero. Foi imprudente o empresário Carlo Superti. A reação da crítica e do público do Rio foi de revolta bem maior do que ele poderia imaginar. O maestro Leopoldo Miguez era homem muito respeitado e admirado. E não apenas nos círculos musicais. Em sua carta de demissão, o maestro Miguez denunciou que nos bastidores da companhia italiana o clima era de franca hostilidade e conspiração contra ele, que fora convidado pelo próprio Superti. A companhia já se apresentara em São Paulo sob a condução de Miguez, e a crítica especializada paulista tratou com reservas a sua regência. Contudo, a saída de Leopoldo Miguez naquelas circunstâncias irritou o público carioca, para quem não cabiam dúvidas a respeito: estava ferido o brio nacional.
O público foi para a estreia de Aida com ânimo belicoso, disposto a desagravar publicamente Leopoldo Miguez. Diga-se a propósio que Miguez era homem discreto e avesso a escândalos. Demitiu-se por carta, recolheu-se e não consta que tenha incentivado nenhum tipo de protesto a seu favor.
O empresário Superti, que também era regente, tentou assumir o posto de Leopoldo Miguez. O público não permitiu. Superti foi recebido por uma onda de vaias, protestos e assovios, “che duro la belezza de mezz’ora” –segundo o exagerado escriba de “La Riscossa”. Superti teve que abandonar o pódio e apareceu no palco um outro empresário, de nome Rossi, para dar explicações. Sequer foi ouvido. O público reagiu com maior violência, interrompendo o início da récita.
Pelas bordas da confusão insinuou-se a lenda. O jornal de Parma descreveu assim “o milagre” para seus leitores: “Subitamente abandona o seu posto na orquestra um jovem primeiro violoncelista, que dá o sinal para a orquestra”. Surpreendido pela atitude audaciosa e incomum de um jovem músico de apenas 19 anos, o público silenciou, domado pelo inusitado regente e seduzido pela música de Verdi. Era o início da lenda de Arturo Toscanini.
Mas a história real foi menos romântica. Nessa época, Arturo Toscanini, como costuma acontecer com todo jovem músico, passava por dificuldades financeiras e dependia dos minguados cachês que lhe pagavam. Para agravar a sua situação pessoal, estava com dívidas vencidas e precisava pagá-las. A excursão à América do Sul tinha chegado em boa hora, portanto. A viagem era penosa, mas ele precisava ganhar aquele dinheiro. Se a estreia de Aida fosse cancelada e a companhia desfeita por conta daquele episódio, o prejuízo seria de todos -empresários, cantores e músicos.
Em meio à confusão, toda a Companhia se reuniu no palco para tentar salvar o espetáculo. Alguns solistas, com apoio dos músicos, sugeriram que se fizesse uma tentativa com o violoncelista Toscanini. Afinal, ele conhecia bem a partitura e até ajudava os solistas ensaiando-os ao piano durante a viagem. Além do mais tinha a vantagem de não ser alvo direto dos protestos do público carioca. Arturo -provavelmente já com o semblante sério que o caracterizaria- recusou o convite inesperado. Não era regente e, diante daquela circunstância particularmente difícil, não estava disposto a assumir a arriscada função. Mas seus colegas da orquestra e os solistas insistiram. Não havia alternativa: ou ele aceitava os riscos do encargo ou a companhia seria desfeita ali mesmo.
Foi então que prevaleceu o senso prático e realista de Arturo Toscanini. Ele precisava do dinheiro que receberia e seus colegas também. Assumindo a direção da orquestra, receberia até bem mais. Foi assim que tomou a decisão e se dirigiu ao pódio, sob a pressão das circunstâncias, dos colegas e diante de uma platéia furiosa.
Conta a lenda que um segundo episódio cativou o público logo no início da ópera. O jovem Arturo repentinamente fechou a partitura e teria regido toda a ópera de cor. E teria feito isso não por capricho ou excesso de autoconfiança. É que o palco no início da Aida recebe muita iluminação -é manhã no ensolarado Egito, e Ramfis e Radamés estão no exterior do templo. A orquestra ficava muito próxima do palco e Toscanini simplesmente não conseguia ler a partitura. Fecho-a e pronto. Deve ter voltado a abri-la, mas o público, de olhos atentos no pódio desde o início, guardou com atenção e interpretou a seu modo o gesto do jovem maestro e, com sabedoria, concluiu: aquele jovem era bem mais do que um simples regente substituto improvisado na função por um incidente lamentável.
Oscar Guanabarino |
No dia seguinte, o respeitado e temido crítico Oscar Guanabarino, de “O Paiz”, tratou do episódio em sua coluna. Depois de muitos circunlóquios dedicados a explicar aos leitores seu respeito e amizade por Leopoldo Miguez, descreveu brevemente os acontecimentos que provocaram o incidente da noite anterior, mas sem dramatizá-los. E explicou que não comentaria a atuação dos solistas, dadas as circunstâncias da turbulenta estreia. Referiu-se apenas ao tenor Bertini, que não teria se saído bem no Radamés. Mas guardou palavras elogiosas para a regência de Arturo Toscanini. “Deu ele sobejas provas de habilitações, sangue frio, entusiasmo e vigor”.
Foi elegante em relação a Leopoldo Miguez: “Para nós, que desejamos ver elevado o nível da educação artística da nossa sociedade, preferimos ver o nosso amigo Leopoldo Miguez na ingloriosa tarefa de professor, transmitindo o que sabe, a vê-lo no estrado de regente de orquestra, lugar de muitas glórias, muitos louros, mas tudo efêmero”.
Segundo Guanabarino, as vaias do público duraram cerca de quinze minutos, e não a “belezza de mezz’ora”, apontada pelo repórter de La Riscossa. Depois das turbulências da estreia de Aida, Toscanini assumiu definitivamente a direção da orquestra da companhia e regeu os demais espetáculos programados. O seguinte foi La Favorita, de Donizetti. Guanabarino disse mais: que Toscanini já vinha se preparando para a regência, apenas preferia que fosse um pouco mais adiante.
Arturo Toscanini permaneceu no Rio de Janeiro por mais de dois meses. Em agosto de 1886 alguns solistas da mesma companhia se apresentaram em concerto, com acompanhamento de piano. Numa peça, decidida de improviso em substituição a uma ária de I Puritani, Toscanini acompanhou o solista com leitura à primeira vista. Guanabarino assinalou um detalhe: mesmo sendo primeira leitura, “fez a transposição de meio tom”.
Tudo pode ser “efêmero” na vida de um regente -havia escrito antes Oscar Guabarino referindo-se a Leopoldo Miguez. Não era o caso de Arturo Toscanini.
Henrique Marques Porto
Fontes:
1) Andrea Della Corte: “Toscanini, visto da um critico”; Bibliotca Storica Della ILTE; 1958.
2) Biblioteca Nacional; Hemeroteca Digital Brasileira.
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