NO SEU CENTENÁRIO, UMA AVALIAÇÃO DA MÚSICA APRESENTADA DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922. ARTIGO DE OSVALDO COLARUSSO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.



 Primeira noite (13 de fevereiro): Villa-Lobos “Cauteloso pouco-a-pouco”.

   São imensas as imprecisões do que normalmente se diz do que aconteceu nas três noites de fevereiro de 1922 (13,15 e 17) no Teatro Municipal de São Paulo, ou seja, na Semana de Arte Moderna. E é impressionante como figuras ditas notáveis do nosso jornalismo semeiam inverdades e atacam, denigrem e tentam apequenar inutilmente não só o evento, mas quem o idealizou. Tendo feito uma considerável pesquisa, pelo menos na parte musical, tentarei em três textos, um para cada noite, tornar claro o que realmente se passou.

Apesar da ideia da Semana de Arte Moderna ter nascido em São Paulo, através de ações de Di Cavalcanti (pintor), Mário de Andrade (Escritor e músico), Graça Aranha (Escritor), Menotti Del Picchia (Escritor), Paulo Prado (cafeicultor), entre outros, a parte musical foi delegada, em comum acordo, ao carioca Heitor Villa-Lobos, compositor que já se destacava como um questionador irreverente. Para tornar a Semana de Arte Moderna comercialmente mais atrativa e fazendo um certo balanço entre Rio e São Paulo, foi convidada também a pianista paulista Guiomar Novaes, que já nessa época tinha uma considerável fama mundial. Villa-Lobos na Semana tinha 34 anos de idade e Guiomar Novaes 27 (completaria 28 alguns dias depois). Villa-Lobos se interessou em participar do evento por ser esta a primeira vez que apresentaria composições suas fora do Rio de Janeiro, e em um local de grande importância. Em outubro de 1921 Mário e Oswald de Andrade foram ao Rio se reunir com escritores cariocas como Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho e aproveitaram para assistir um concerto com obras de Villa-Lobos. Ficaram tão impressionados que deram aval a Graça Aranha, o Diretor do evento, para fazer o convite oficial. Diversas obras apresentadas neste concerto seriam executadas na terceira noite da Semana de Arte Moderna.

Falando da primeira noite, a de 13 de fevereiro, ela se iniciou com uma Conferência de Graça Aranha, “A emoção estética na arte moderna”, e para tal ele solicitou a Guiomar Novaes que executasse um trecho da obra

“Embriões ressecados” de Erik Satie. Ao se deparar com uma citação irônica da Marcha Fúnebre (da Segunda Sonata) de Chopin ela se recusou terminantemente a tocar, acreditando ser um sacrilégio a brincadeira com o tema do compositor polonês. Essa citação, de um humor refinado de Sati,e é explicada na partitura com uma frase surreal: “melodia conhecida de uma Mazurka de Schubert”. Quem a executou foi o compositor e pianista Ernâni Braga. Nem a peça de Satie e nem uma suposta obra curta de Francis Poulenc constam no programa impresso. A obra de Satie, pela forte reação de Guiomar Novaes, e pela citação na conferência, não deixa dúvida de que foi executada.

Parafraseando a “Ode ao burguês” de Mário de Andrade, Villa-Lobos foi “Cauteloso pouco-a-pouco” nas primeiras obras que apresentou naquela primeira noite. Duas composições de 1916, obras imbuídas dos ensinamentos do Cours de composition musicale de Vincent D’Indy, que o compositor aprendeu de forma autodidata. Obras raramente executadas hoje em dia e que estão longe de uma linguagem nacionalista e pessoal do autor: a Segunda sonata para violoncelo e piano (28 minutos) e o Segundo trio para piano, violino e violoncelo (32 minutos). A Sonata foi executada pelo violoncelista Alfredo Gomes (sobrinho do compositor Carlos Gomes e tio de outro grande violoncelista, Iberê Gomes Grosso) e pela pianista Lucília Villa-Lobos (primeira esposa do compositor) e o Trio pela violinista Paulina d'Ambrósio (jovem expoente do violino e grande defensora do compositor), pelo violoncelista Alfredo Gomes e pelo pianista (e compositor) Fructuoso Vianna. Depois de mais uma conferência (de Ronald de Carvalho - A pintura e a escultura moderna no Brasil) Villa-Lobos passa de uma linguagem comportada, que lembra César Franck ou Massenet, para a linguagem dos compositores impressionistas, Debussy e Ravel. Ernâni Braga (compositor, pianista e maestro) executa três obras curtas: Valsa Mística e Rodante da Simples coletânea (1917 e 1919) e A fiandeira (1921). Muitas escalas de tons inteiros e pentatônicas, muitas sétimas paralelas, puro impressionismo musical. É para fechar a noite que Villa-Lobos chega mais próximo do nacionalismo brasileiro. Em versão para octeto (são originalmente escritas para piano solo) as Três danças africanas (compostas entre 1914 e 1916). Quem executou foram todos músicos vindos do Rio de Janeiro: Paulina D’Ambrósio e George Marinuzzi – Violinos. Orlando Frederico – Viola. Alfredo Gomes – Violoncelo. Pedro Vieira – Flauta. Antão Soares – Clarinete. Fructuoso

Vianna – Piano. Só Alfredo Corazza – Contrabaixo era paulista (pai do conhecido violoncelista Calixto Corazza). Pelas características da escrita da obra (muitas fermatas com saídas complexas) muito provavelmente Villa-Lobos regeu (o programa distribuído ao público nada fala a respeito), e deve ter sido neste momento que o compositor, que sofria de Gota, apareceu de chinelos, causando uma certa celeuma.

Uma boa parte do público foi a esta primeira noite disposto a vaiar, tumultuar. Fizeram isso nas Conferências, mas, com exceção de um problema na alça do vestido de Paulina D’Ambrósio, que levou a uma situação desagradável para a musicista, a Sonata e o Trio foram um balde de água fria: obras comportadas e demasiado longas. Encontrei crônicas que atestam mesmo que a última composição (as Danças africanas) foi muito aplaudida. Esta versão para octeto da obra nunca foi publicada, e é muito superior à versão original para piano e à versão orquestral. Não há dúvida: Villa-Lobos fez um bom planejamento do programa e sua participação nesta primeira noite deu um resultado positivo. Ao contrário dos poetas, que foram interrompidos aos berros, a parte musical aconteceu quase sem incidentes nesta primeira noite.

Osvaldo Colarusso


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