A HORA DA ESTRELA OU O CANTO DE MACABÉA : UMA MIGRANTE “GRÁVIDA DE FUTURO". CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa. Direção André Paes Leme. Laila Garin como Macabéa. Março/2022. Foto/Ariel Cavotti. |
“Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes” - Clarice Lispector.
Estas palavras incisivas conceituam bem a trajetória de dolorosa invisibilidade da personagem Macabéa, apenas mais uma destas jovens migrantes que sonham ser alguém, na troca de sua opressiva condição social no provincialismo alagoano por um futuro inexistente nas urbanidades cariocas ou paulistas.
Tema de uma das mais socializantes narrativas ficcionais de Clarice Lispector – A Hora da Estrela e que já concedeu a Marcélia Cartaxo a classificação de melhor atriz no Festival de Berlim, como protagonista do filme de 1985, sob similar titulação pela cineasta Suzana Amaral.
E que, há exatos dois anos, inspiraria o musical A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa, na concepção dramatúrgica/direcional de André Paes Leme, com o sempre irrestrito apoio incentivador da produtora Andréa Alves, mas que não passaria de uma instantânea temporada fissurada pelo então nascente surto pandêmico.
Num tributo ao que seria o centenário da escritora e onde, já no prólogo, uma fala da atriz/cantora acabou enunciando, por um destes emblemáticos acasos do destino, a tragédia sanitária que estava por vir : “Essa história acontece em estado de emergência e calamidade pública”...
Nesta versão cênica em compasso de musical, o narrador onisciente do original, um escritor que percebe na rua a situação da infeliz nordestina, transmuta-se em substitutiva alteridade, entre a incursão narrativa de prevalência confessional, ora como uma atriz ora como a personagem titular.
A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa. Claudia Ventura, Laila Garin e Claudio Gabriel. Março 2022. Foto/Ariel Cavotti.
Em unívoca e carismática potencialidade performática de Laila Garin, num mergulho abissal, entre o canto e a palavra, ao dimensionar a compreensão de sua miserabilidade como ser humano. “Sem resposta, sem direito ao grito”, este assumido na contundência de seu personagem, sustentando-se no contraste entre a ingenuidade e a exaltação.
Metaforizada dramaticamente em expressivo retrato, mordaz e sem poetizações, também nos personagens assumidos por Claudio Gabriel, ora como o indiferente chefe da repartição ora como o namorado Olímpico de Jesus que despreza pretensiosamente as simplórias reflexões de Macabéa, a partir das escutas da Rádio Relógio.
Ou na maturidade interpretativa com que Claudia Ventura investe nos contornos de seu dúplice papel da adequação psicofísica, com despudorada sensualidade, por intermédio do assédio que leva embora o namorado da nordestina, ao uso dos recursos histriônicos de uma cartomante no processo do convencimento de uma “grávida de futuro” mais promissor, longe do insistente “grito de horror” que cerca o canto anunciador da sua Hora de Estrela.
Havendo que se destacar a artesania da trilha sonora autoral de Chico César, a partir de uma fidelidade quase absoluta à habitual textualidade clariceana, no entremeio da invenção verbal, jogos de palavras e construções poéticas. Através dos funcionais arranjos e direção musical de Marcelo Caldi, via um afinado quarteto instrumental (Ajurinã Zwang, Fabio Luna, Pedro Aune, Pedro Franco).
Com suas sonoridades e ritmos de apelo nordestino, sem deixar de lado sensitivos acordes melódicos, capazes de incitar o público a um clima de adesão aos mistérios de Clarice ou aos desalentos na sua Hora da Estrela. Energizado na envolvência de um vocabulário gestual (Toni Rodrigues) que amplifica a experiência de uma corporeidade ancorada em experiências emotivas.
Onde o ideário da estética cênica (André Cortez) torna-se, aqui, um caso à parte com seu aparato aéreo à base da mobilidade transformadora de mesas e cadeiras suspensas, capazes de sugestionar com sua a plasticidade lúdica as mais inimagináveis ambiências cenográficas. Ressaltadas nos efeitos pictóricos alcançados pelo desenho de luz de Renato Machado e no intimismo discricionário dos figurinos em tons pastéis de Kika Lopes.
Em mágico teatro musical, sólido por seu conceitual estético/dramatúrgico sob o domínio pleno do diretor André Paes Leme, por sua oportuna denúncia crítica à continuidade viva de tantas outras Macabéas por aí e para que possa, enfim, encontrar um eco no protesto reflexivo de Clarice Lispector :
“Há os que tem. E há os que não tem. É muito simples: a moça não tinha. Não tinha o quê? É apenas isto mesmo: não tinha. Se der para me entenderem, está bem...”
Wagner Corrêa de Araújo
A Hora da Estrela ou o Canto de Macabéa está em cartaz no Teatro Sesi/Firjan, quintas e sextas, às 19hs; sábados e domingos, às 18h. Até 27 de março.
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