RÚSSIA E UCRÂNIA: QUESTÕES MUSICAIS. ARTIGO DE OSVALDO COLARUSSO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 


Escrevi um texto em 2014 para o jornal Gazeta do povo, quando a Rússia anexou a península da Crimeia a seu território, mostrando o quanto a então União Soviética deixava de citar que grandes músicos do país eram originalmente ucranianos. O próprio nome que se dava à Ucrânia por um bom tempo, “Pequena Rússia”, tinha um certo tom pejorativo. Além da atual crise ser muito maior do que a de 2014, daquela época até a destruição do país que assistimos perplexos há algumas semanas, foi enorme o crescimento musical dos ucranianos. Talvez o maior fenômeno musical ucraíno, desde a independência do país em 1991, seja a maestrina Oksana Lyniw, primeira mulher a ser convidada, em 2021, a atuar no Festival (wagneriano) de Bayreuth e que será diretora musical do Teatro Comunale de Bologna a partir deste ano. Ela fundou em 2017 a Orquestra jovem da Ucrânia, considerada por muitos uma das três melhores orquestras jovens da Europa. Além desta fenomenal maestrina, que atua com frequência na Áustria e Alemanha, e que atuava muito (antes da guerra) em Odessa e Lviv, compositores ucraínos têm se destacados nos últimos anos como Valentin Silvestrov (1937-), Evgueni Stankovitch (1942-) e Vitaly Hubarenko (1934-2000). Enfim, depois de 20 anos de independência a Ucrânia deixou clara a sua independência e seu desejo de ser um país europeu e não um satélite da Rússia. Em tese o texto de 2014 permanece atual e válido.

Basicamente o texto de 2014 é o seguinte:

Nesta crise fica bem claro que uma parte expressiva da população da ex-república soviética deseja um afastamento da Rússia e uma aproximação da Europa. Findo o “império” soviético em 1990 e com sua independência ocorrida em 1991, ficou exposta para o todo o mundo fatos marcantes que feriram muito o amor próprio do povo ucraniano. Basta citar apenas um exemplo: uma das maiores chacinas étnicas da história, o assim chamado “Holodomor”, ocorrido a mando de Stalin e do comitê central do partido comunista nos anos de 1932 e 1933, através de migrações forçadas e confiscos de colheitas, provocou uma fome generalizada que causou mais de três milhões de mortos, quase todos ucranianos. Apesar de citar este dado histórico minha intenção neste texto não é de falar das atrocidades da Rússia contra a Ucrânia, mas sim gostaria de expor um detalhe bem significativo em minha área, a música, e que sem dúvida reacende um certo orgulho ferido dos ucranianos: inúmeros músicos “soviéticos” nasceram e foram educados na Ucrânia, mas foram sempre rotulados de russos. A lista é impressionante não só pela quantidade, mas também pela altíssima qualidade.

Sviatoslav Richter e Emil Gilels: pianistas soviéticos nascidos na Ucrânia

Nos tempos áureos da guerra fria a União Soviética exibia com orgulho alguns pianistas que realmente estavam entre os melhores do século XX. Os dois pianistas soviéticos que serviam como uma espécie de cartão de visitas do regime comunista no ocidente eram artistas fantásticos: Sviatoslav Richter e Emil Gilels. Não há dúvida da excelência dos dois, mas além de suas enormes qualidades artísticas os dois tinham outra coisa em comum: nasceram na Ucrânia. Richter nasceu em Zhytomyr, cidade da Ucrânia. Em 1915 e sua formação musical foi principalmente realizada em Odessa, uma das mais importantes cidades ucranianas. No entanto ele é sempre denominado um “pianista soviético”. O mesmo se passa com Gilels, que nasceu em Odessa em 1916 e que lá recebeu sua formação musical. Um terceiro pianista nascido na Ucrânia foi ignorado pelo regime soviético por décadas pois se refugiou no ocidente, tornando-se um cidadão americano: Vladimir Horowitz. Ele nasceu na capital da Ucrânia, Kiev. Será mera coincidência? Não creio.

David Oistrakh e Leonid Kogan. Grandes violinistas russos nascidos na Ucrânia

Os dois maiores violinistas ditos “soviéticos” também nasceram na Ucrânia e serviram também como uma espécie de “cartão de visitas” do governo de Moscou. O primeiro a ser citado é tido por muitos como o maior violinista do século XX: David Oistrakh. Ele nasceu em Odessa no ano de 1908, e sua formação básica foi no conservatório de sua cidade natal. Outro violinista excepcional, também rotulado como “violinista soviético” foi Leonid Kogan. Ele nasceu na cidade ucraniana de Dnipropetrovsk em 1924, e foi o único dos músicos que citei até agora que teve sua formação musical fora da Ucrânia. Ao invés de Kiev ou Odessa ele estudou em Moscou.

Prokofiev e Reinhold Glière: compositores russos ou ucranianos?

Compositores

Sergei Prokofiev nasceu na cidade ucraniana de Sontsovka em 1891. Como Leonid Kogan ele teve sua formação musical em Moscou, mas vale a pena lembrar que os ucranianos homenagearam o compositor colocando seu nome no aeroporto internacional da cidade de Donetsk. Prokofiev não foi o único compositor dito russo que nasceu na Ucrânia. Reinhold Glière, outro compositor importante, nasceu em Kiev no ano de 1875, e teve sua primeira formação musical em sua cidade natal. Só para termos ideia do altíssimo nível musical de Kiev naquela época, Gliére estudou nesta cidade com um dos maiores professores de violino de seu tempo: o tcheco Otakar Ševčík. Outro compositor que é mais lembrado hoje em dia por sua atividade como maestro, e que nasceu na Ucrânia, foi Igor Markevich, nascido em Kiev em 1912.

Somente nos dias de hoje é que compositores nascidos na Ucrânia são chamados de compositores ucranianos. Exemplo disso é o excelente compositor Valentyn Sylvestrov, nascido em Kiev no ano de 1937. Foi um dos compositores perseguidos pelos ideólogos do partido comunista nos tempos de Brejenev, e que hoje em dia se auto refere como um “compositor ucraniano”.

Considerações finais

Citei apenas uma pequena parte da imensa lista de músicos russos que na realidade eram ucranianos. Mas termino este texto com o lamentável apoio dado por músicos russos ligados ao repertório clássico às operações militares russas em território ucraniano. É claro o apoio ao governo russo do maestro Valery Gergev, do violista Yuri Bashmet (ironicamente nascido na Ucrânia), do pianista Denis Matsuev e do violinista Vladimir Spivakov além da grande estrela operística, Ana Netrebko. Lamentável.

Osvaldo Colarusso

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