SACRO : EM COMPASSO EXTÁTICO, CONECTANDO O CORPO À TERRA E AO CÉU. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

Sacro. Márcio Cunha, concepção coreográfica. Agosto 2022. Fotos/Carol Pires.


Estamos vivos em 2022 e isso é muita coisa. Estamos todos conectados pelo ar, pelo chão e pelo som ao nosso redor. Vivemos em um país em que seguir fazendo dança é um ato de extrema coragem e amor”. Dando vazão a estas palavras tão necessárias a um tempo em que são cada vez mais recorrentes os ataques à necessária conexão entre a arte, o  homem e a terra, a performer, bailarina e terapeuta Micheline Torres inspirou o ideário dramatúrgico da mais nova criação coreográfica de Márcio Cunha.

Titulado simbolicamente como Sacro, este espetáculo de dança-teatro também faz eco a um vínculo sagrado entre o corpo e a natureza numa transcendência gravitacional com as energias cósmicas através de sua representação performática. Na busca da empatia coreográfica correspondente ao  que o filósofo Merleau-Ponty chama de fenomenologia da percepção capaz, assim, de possibilitar o "entrelace sinestésico" ou troca sensorial entre o artista/bailarino e o espectador.

Dando ainda eco a uma propensão coreográfica de busca inventiva do movimento natural que estabeleça um despertar psicofísico entre a ambiência da natureza e a interioridade humana. Que vem desde a sua precursora/visionária Isadora Duncan, passando por nomes da dança pós-moderna, até chegar a contemporâneos como o anglo/paquistanês, Akram Khan.

Márcio Cunha é um dos mais contumazes adeptos desta tendência, exemplarmente mostrada em suas últimas criações cênicas como Rosário (2018) e Barro (2019), além de outras de experimentalismo virtual para tempos pandêmicos e, agora, neste Sacro em sua volta ao palco presencial.


                                               Sacro. Márcio Cunha, concepção coreográfica. Agosto 2022. Fotos/Carol Pires.


   Tornando prevalente seu conceitual estético e  coreográfico no entorno do cósmico encontro do homem com os elementos orgânicos, numa dança na e pela natureza. Diferencial apenas por sua não participação, como de hábito, no papel de performer protagonista/bailarino solo.

Mas acumulando um tríplice ofício artístico por sua concepção, direção e ambientação cênica, tendo como intérpretes reconhecidas personalidades da dança contemporânea brasileira, integrantes de uma geração potencial de coreógrafos/bailarinos, a saber Denise Stutz, Frederico Paredes e Giselda Fernandes.

Situados espacialmente em envolvente concepção cenográfica (Márcio Cunha) com cadeiras formatadas como galhos de arvores, na plasticidade de uma instalação paisagística sugestionando elementos ambientais, ressaltados em variações luminares (Juca Baracho). Portando os bailarinos uma indumentária cotidiana em tonalidades de predominâncias claras, por Karlla de Luca.

Sob uma trilha incidental (Leonardo Miranda) à base de acordes fragmentários que vão de solos instrumentais, como uma original transcrição para flautim do hino nacional, a instantâneos trechos de Bach ou de cantos de terreiro. Entremeados pela prevalência de sonoridades florestais, ruídos de ventos, chuvas e cantos de pássaros.

O gestual dos bailarinos, ora expressando a vivência lúdica/sensorial de questões ecológicas ora mergulhando na interioridade do eu, numa autodescoberta palpável da conexão física e espiritual com si mesmo e com a natureza.

Do dançar inicializado em círculo tridimensional, três bailarinos como um só corpo, empenhados na abertura de portas metafísicas sob posturas meditativas ou energizadas no acionamento das tensões em movimentos mais bruscos.

Ao lado de uma mascaração facial teatralizada entre intuitivas manifestações de alegria ou de dor, no desafio dos enigmas do Sacro e diante do difícil suporte da condição humana e sua corporeidade terminal transmutada em parte orgânica do solo.

Integralizando emotivamente o que se poderia denominar de uma “biomimética” coreográfica nesta dança do Ser com a Terra.  Numa pulsão transcendente capaz de remeter ao emblemático ideário de Martha Graham no acreditar que onde quer que um bailarino pise é solo sagrado...


                                         Wagner Corrêa de Araújo

Sacro está em cartaz no Sesc-Copacabana/Mezanino, de 11 a 21 de agosto, de 5ª a domingo, às 20h.

Comentários

  1. Wagner Correa de Araujo uau querido, não tinha a dimensão desse espaço! Muito obrigado!
    Q riqueza ter aqui, agora, tornando visível a dança carioca, a minha pesquisa! Volto todo dia na sua crítica e descubro mais e mais sobre o Sacro!
    Tenho a sensação nessa crítica que fez de estar vendo o meu trabalho girando como as madeiras em espiral, iluminando cantinhos diferentes, ampliando as percepções do movimento incansável de olhar e escutar o movimento.
    Acho incrível a sua sensibilidade em enxergar processos!
    Muito axé!
    Admirável!

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