CIA DOS A DEUX : EM MAIS UM MERGULHO ABISSAL NO IMAGINÁRIO ONÍRICO. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

Enquanto Você Voava, Eu Criava Raizes. Cia Dos A Deux. Setembro/2022. Fotos/ Renato Mangolin.

A partir da solidão opressiva, mas ao mesmo tempo reflexiva, a que fomos submetidos, como se condenados fossemos a uma prisão domiciliar durante o tempo pandêmico, estabeleceu-se um interregno questionador em nossas vidas, sinalizado pelo estigma de que poderíamos ser ou não a próxima vítima fatal.

Que se refletiu especularmente em cada um de nós em dimensionamentos diferenciais, mas sempre carregados por uma dose de expectativa para entender, no entremeio de temores e sombras, o real sentido daquela instantânea situação em seu vislumbre do quão difícil é o suporte da condição humana com sua perspectiva de terminalidade.

Com esta passagem dramática em nossas trajetórias existenciais, os múltiplos artistas André Curti e Artur Luanda Ribeiro, mais uma vez acionaram sua pulsão inventiva, situados na confluência de linguagens artísticas do teatro à dança, para retomar o imaginário onírico que vem marcando suas criações, ao longo dos anos, através da Cia. Dos a Deux.

Agora, com a proposta de também mostrar sua concepção conceitual, sob introspectivos gritos de silencio expressos por visceral abordagem gestualista, em sua mais recente realização cênica, simbolicamente denominada Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes.

Em análise critica que postamos à época, sobre o último trabalho apresentado em palcos brasileiros – Irmãos de Sangue, fizemos questão de ressaltar a transmutação permanente de um principio freudiano nas criações da Cia. onde “o pensamento virtual se aproxima mais dos processos inconscientes que o pensamento verbal”.

Cia Dos a Deux/Enquanto Voce Voava, Eu Criava Raízes. Setembro 2022. Fotos/ Nana Moraes.

Na circularidade de um vocabulário  plástico/cinético capaz de remeter, ora a um formato de conotação ritualística e mais lúdico em sua estruturação caleidoscópica, propiciadora de uma sucessão psicodélica de imagens superpostas.

Ou com um referencial cenográfico ao icônico desenho o "Homem Vitruviano", de Leonardo da Vinci. Pela simétrica sugestão imagética de um corpo humano masculino desnudo, desdobrando seus braços e pernas num retrato plástico, situado entre um círculo e um quadrado, que é  a terra e também o céu.

Aqui, como se fora apenas uma a corporeidade dos dois atores/bailarinos (André Curti e Artur Luanda Ribeiro) simultaneamente, segundo a noção alquímica, no ideário do que está por cima é igual ao que está por  baixo, tocando-se nos pés e nas mãos, enquanto os braços alongados por suportes criam uma delirante visualidade, na sequencial sucessão gestual/coreográfica de um instante que conduz sensorialmente a outro.

Ressaltados por efeitos luminares (Artur Luanda Ribeiro) sob a prevalência de sombreamentos, entre tonalidades pictóricas metaforizadas, com pinceladas virtuais  por vezes abstratas ou com sotaque pontilhista, na cena de gotas de água preenchendo o espaço cênico.  

Sempre, em alucinantes inserções visuais, a partir do uso dos elementos materiais (por Diir) e videográficos (Laura Fragoso). Alternando-se um figurativismo indumentário (Ticiana Passos) com o desnudamento corporal dos performers. Havendo que se destacar a impactante e qualificativa originalidade da partitura sonora de tessitura erudita, pelo compositor e instrumentista Federico Puppi.

Capaz de proporcionar em suas ondas sonoras graves, entre acordes melancólicos, uma envolvência emotiva levada à sua culminância em apoteótico rufar percussivo. Este jovem compositor cada vez mais surpreende com suas buscas inventivas que o aproximam dos experimentos musicais, com um minimalismo libertador, do estoniano Arvo Pärt.

Provocadora e imersiva, da enérgica fisicalidade à introspectiva proposta, a escritura gestual de Enquanto Você Voava, Eu Criava Raízes, faz com que seus criadores – André Curti e Artur Luanda Ribeiro – a compartilhem com o espectador como uma obra reflexiva aberta à fruição intimista de cada um. E capaz, assim, de ecoar o emblemático mistério de Clarice Lispector – “Ouve-me, ouve o meu silencio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa”...

                                          Wagner Corrêa de Araújo

Enquanto Você Voava, Eu Criava Raizes/Cia Dos A Deux está em cartaz no Oi Futuro/Flamengo, de quinta a domingo, às 20h. Até 25 de setembro.

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