A AFORISTA/CIA. STAVIS DAMACENO : UM INSTIGANTE EXPERIMENTO PERFORMÁTICO / MUSICAL. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET:


A Aforista.Cia Stavis Damaceno. Direção e Dramaturgia/Marcos Damaceno. Fevereiro/2023. Fotos/Renato Mangolin.


A morte atravessa as indagações do escritor austríaco Thomas Bernhard nos seus escritos filosófico/literários e sinaliza especialmente suas obras Árvores Abatidas – Uma Provocação, de 1984, e O Náufrago, de 1983. Que, não por um mero acaso, acabaram por inspirar duas das melhores realizações da Cia. Stavis Damaceno, de Curitiba, em proposta a ser completada  como um tríptico cênico.

Apresentadas em formato monologal, com uma sempre instigante presença da atriz Rosana Stavis, atuando sob um ideário estético questionador sob o seguro comando concepcional de Marcos Damaceno. Acompanhada por solos instrumentais ao vivo, na inquieta inventidade da trilha musical de Gilson Fukusima, em mais uma de suas partituras direcionadas aos palcos teatrais.

O que aproxima a representação dramatúrgica, com seu fluxo narrativo ininterrupto e quase desconexo nas propositais combinações verbais aliterativas e sonoridades fragmentárias, de uma performance de música contemporânea. Inicializada e já demonstrada com Árvores Abatidas Ou para Luís Melo e claramente potencializada, agora, em A Aforista

Dimensionada, nesta última, sob uma busca provocadora sustentada na simultaneidade de injunções experimentais de acordes pianísticos aleatórios (por Sérgio Justen e Rodrigo Henrique) para uma narrativa dramatúrgica sublinhada por inusitadas vocalizações recitativas (Rosana Stavis). E, subliminarmente, remetendo a algumas das visionárias criações de John Cage ou às investigativas composições operísticas de Jocy de Oliveira.

Onde Rosana Stavis alterna, burlescamente, nervosos fluxos mentais, entre súbitas lágrimas, gritos e gargalhadas irônicas, com expressões faciais histriônicas e um gestual alucinado, despenteando os cabelos tal como uma mítica medusa ou revelando os surtos tresloucados de uma alienada qualquer.



A Aforista. Peça inspirada em Thomas Bernhard. Rosana Stavis/Protagonista. Fevereiro/2023. Fotos/Renato Mangolin.


Trajada em bizarra indumentária (Karen Brusttolin) negra, hilária como uma comediante ou soturna como uma entidade fetichista propugnadora de ritos secretos. No entremeio de luzes (Beto Bruel) sombreadas que aumentam o clima de delírio nos efeitos focais sobre as contorções do rosto angustiado ou das mãos trêmulas da atriz. 

Hieraticamente situada fixamente no centro da caixa cênica (dúplice resultado da direção de Damaceno), postada sem nunca sair dali, num plano espacial como se ocupasse uma lápide tumular, encimado ao fundo pelo sugestionamento de uma cornucópia, ladeada  pelos dois pianos de meia cauda.

Quanto à trama dramatúrgica, a partir de uma releitura que Marcos Damaceno fez tanto de Árvores Abatidas como de O Náufrago, emblemáticas obras literárias de Thomas Bernhard, há pontos identitários entre as duas e que o diretor transcende com sua própria visão autoral, em primeiro lugar na titulação que confere às duas peças.

Tanto no caso de Árvores Abatidas ou para Luís Melo como na sua concepção para a A Aforista, trata-se de uma reflexão cética e cruel sobre a vida frente à morte através de um suicídio que marca os dois enredos. Aliás, as adversidades da condição humana funcionam, aqui, como um leitmotiv em dois planos cênicos, o da representação teatral em si e o do acompanhamento musical.

Dirigindo-se a um funeral de um antigo parceiro de estudos musicais, a atriz e narradora (num reflexo especular do pensamento de T. Bernhard) reflete, com uma raiva patética, sobre as razões controversas de ter perdido dois amigos pianistas. Um deles supostamente por um enfarte fatídico, o outro pelo suicídio causado pela conscientização de que jamais alcançaria o brilho virtuosístico e a fama do colega. 

No texto original, este personagem bem sucedido tem seu referencial no celebrado pianista canadense Glenn Gould, simbolicamente transmutado nesta versão cênica para o metafórico cognome (John Marcos Martins) de conhecido intérprete brasileiro, enquanto o suicida (Wertheimer) é figurado como Polacoviski.

E é exatamente por intermédio do retrato, entre o fracasso, a inveja e a morte assumida, que a pesonagem titular, na estelar atuação de Rosana Stavis e no hipnotizante comando de Marcos Damaceno, configura o seu relato confessional, pleno de sarcasmo, frustração, amargura e desesperança, no entorno da insensatez da vida diante de sua fatal terminalidade.

Com a palavra, Thomas Bernhard : “Não há nada a louvar, nada a amaldiçoar, nada a condenar, mas muito há de ridículo; tudo é ridículo quando se pensa na morte...’’


                                        Wagner Corrêa de Araújo

 


A Aforista está em cartaz no Teatro I do CCBB, Centro/RJ, de quarta a sábado, às 19h30m; domingo, às 18h.  Até 5 de março.

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