"IL GUARANY": AS REVISÕES, OS REVISORES E DEMAIS SÓCIOS DE CARLOS GOMES. ARTIGO DE MARCUS GÓES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

 


Hoje, dia 22, fui à bilheteria do Teatro Municipal comprar eu mesmo meu ingressinho e o de algumas amiguinhas que convidei para “IL GUARANY” que será executado sábado dia 26 às 20 horas. “IL GUARANY” não é coisa que se perca, e lá fui eu entrar na fila, que não aceito ingresso de favor. Triste atividade essa de crítico, que segundo o idem Charles Osborne não pode ter amigos nem receber presentes, ao contrário de quase todos os jornalistas/críticos que foram passear de graça na Europa e outros continentes por conta da OSESP e de lá voltaram louvando-a como uma Filarmônica de Viena e a seu regente titular como charmoso sucessor de Mahler e Toscanini ... 

No saguão de espera, encontro fugazmente o tenor Marcello Vannucci, o Pery da ocasião, o qual em seu sotaque paulistês de sobradinho do Itaim Bibi me disse eufórico: “olha, o Guarany vai ser executado completo"!! 

Como eu, autor de três livros sobre CARLOS GOMES e seu dedicado biógrafo, nunca consegui saber como seria IL GUARANY “completo”, já que há várias partituras diferentes espalhadas pelos arquivos, teatros, bibliotecas e museus de todo o mundo, muitas manuscritas de CARLOS GOMES, outras copiadas manuscritamente por profissionais das casas editoras de música do século XIX, outras já impressas tipograficamente. 

Muitas dessas partituras contêm emendas, cortes de ocasião, acréscimos e modificações feitos pelo próprio CG, por regentes de orquestra, por diretores de cena. Eu mesmo tenho cópia de uma partitura impressa em que alguém, exprimindo-se em italiano, riscou longo trecho, anulando-o, porque segundo ele a ópera “é troppo lunga” ... 

Ninguém sabe exatamente qual partitura o autor consideraria “completa”. E só o autor CG tinha essa primazia. Só ele podia definir o que é IL GUARANY “completo”. 

De tempos para cá tem surgido uma não pequena legião de “entendidos” que ao limpar arranhões ou borrões de tinta, ou ao transcrever claves de dó para claves de sol, se julgam no direito de intitular-se “revisores” de partituras achadas no porão da casa dos parentes de CG ou de seus amigos, muitas vezes atingidas por desgastes causados pelo tempo, pela umidade, por longos manuseios, por chuvas, trovoadas, curiosos e maus regentes ... Sim, senhores, um mau regente é capaz de transformar no papel, por um passe de mágica, uma quiáltera de seis em um grupeto ... 

Pesquisando através da história de nossos grandes teatros de ópera, desde o Provisório de 1870 no Rio de Janeiro, o São José de 1880 em São Paulo, o Dom Pedro II, também chamado Teatro Lírico no Rio em 1871, o Teatro da Paz em Belém do Pará desde 1878, os Municipais do Rio e de São Paulo já no século XX, o Teatro Amazonas em Manaus, o São João em Salvador, o Princesa Isabel no Recife, os teatros de Campinas, de Niterói, o Francisco Nunes de Belo Horizonte, até o Palácio das Artes também em Belo Horizonte, NÃO SE TEM NOTÍCIA DE UM SÓ GUARANY QUE TENHA DEIXADO DE IR À CENA PORQUE FALTOU UMA “REVISÃO”. 

Essa ópera sempre foi aos palcos para gosto do público e desgosto dos “revisores”. Eu mesmo fiz de entendido, e em 1986 sugeri à direção do Municipal do Rio que fizesse ser executado o pequeno prelúdio original da ópera, que naquela ocasião teve esse prelúdio e a célebre “protofonia”, horrendo nome que algum entendido inventou para a “sinfonia”, nome escrito pelo próprio CG no frontispício de uma partitura manuscrita. 

Essa praga de “revisores”, que nada mais são que sabidinhos a se aproveitar da inocência geral, às vezes é útil por unificar uma partitura, exonerando-a de modificações feitas através dos tempos por primadonas e tenores famosos. Dessas, a mais famosa e modificada foi certamente a de “O BARBEIRO DE SEVILHA”, de Rossini. Por longos anos, tivemos por aí o BARBEIRO da Malibran, da Patti, da Pasta, e mais recentemente da Pons, da Callas, da Horne, da Sutherland, da Bartoli. 

Os musicólogos italianos BRUNO CAGLI e ALBERTO ZEDDA levaram a cabo uma “limpeza” geral, e conduziram outra vez a obra imortal a seu brilho genuíno. Mas IL GUARANY não precisa dessa “limpeza”, pois não houve tantas primadonas famosas a adaptar sua partitura a seus próprios meios. Desde sua criação em 1870/1871, a grande obra do maior artista brasileiro do século XIX vem sendo levada aos palcos sem problemas, sem necessidade vital do “trabalho” de revisores ou outros sócios com disposição para convencer “autoridades” do meio artístico de que parte dos dinheiros públicos destinados à cultura deve ser entregue a eles, pois vão “salvar” IL GUARANY, e com disposição e tempo sobrando para ficar pulando amarelinha no quintal. 

QUIDQUID LATET APAREBIT / NIL INULTUM REMANEBIT 
MARCUS GÓES (1939-2016) – PUBLICADO EM JUNHO 2010

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