MACACOS : UM TIRO INVERSO DE FUZIL - CONTRA A DISCRIMINAÇÃO DO CORPO NEGRO. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.

 

Macacos. Clayton Nascimento/Dramaturgia, direção e interpretação. Maio/2023. Fotos/Julieta Bacchin.


Ma.Ca.Co...Macacos...Num palco vazio e escuro o silêncio é quebrado por uma voz distante ecoando o apelo de  enigmático pronunciamento silábico. Prenúncio à entrada do ator/dramaturgo/diretor Clayton Nascimento para inicializar, em compasso ritualístico de um terreiro de axé, sua irreverente e alegórica desconstrução cênica de um historicista legado racista brasileiro.

Em proposta de incisiva dramaturgia e visceral performance, no entremeio de uso de sua corporeidade negra, coberta apenas por um calção destes de pelada de moleques de rua, em que deixa à vista a pele escura do peito nú, das pernas e dos pés descalços.

E onde o preenchimento de uma caixa cênica despojada de quaisquer elementos fisicos ou adereços acontece sob a plasticidade de efeitos luminares de cores entre sombras, no emotivo imaginário por Danielle Meirelles.

Ressaltando um corpo preto invadido, por vezes, pelas tonalidades de um baton sanguineo que faz o ator traçar em sua face e peitoral, um memorial dos cruéis descaminhos e as descompassadas saídas para o genocídio indígena e negro praticado, aqui quase como regra, a partir da chegada das naus de Pedro Álvares Cabral.

Acompanhadas, em anos e séculos sequenciais, pelos navios negreiros que perpetuariam o mais resistente sistema escravocrata do mundo ocidental. Terminado oficiosamente na lei imperial do 13 de Maio e metaforicamente de volta em verso do Hino da Proclamação da República : “Nós nem cremos / Que escravos outrora / Tenha havido / Em tão nobre país”...

A performance atoral Clayton Nascimento dando vazão às suas vivências como integrante da população negra sujeita à invisibilidade e ao preconceito, o que ele contextualiza não só através da secular luta para ser reconhecida pela história pátria mas também pelos percalços de sua própria trajetória como artista de cor.

Macacos. Clayton Nascimento/Dramaturgia, direção e interpretação. Maio/2023. Fotos/Julieta Bacchin.


Num espetáculo-manifesto, com um subliminar sotaque de dialetação brechtiana, que faz de seu lema a denúncia e o propósito, em caráter urgencial, de conscientização política, social e participativa do espectador, a partir do interativo recado dado por sua voz e seu corpo num palco de teatro.

Em corajosa tentativa para desconstruir um inaceitável status quo em relação a um racismo estrutural e intitucional, apenas em tese propugnado por lei, sem quaiquer perspectivas de sua transmutação em novos horizontes. E é, assim, que ele assume uma postura critica investigativa sobre o ser ou não ser deste “monólogo de uma pessoa preta”.

Veja-se, a propósito, o fato inspirador da textualidade dramatúrgica de Macacos – o brutal e insensato assassinato de uma criança de 9 anos, com um tiro de fuzil na cabeça, enquanto brincava inocentemente à porta de casa, no Complexo do Alemão. Já lá se vão oito anos e nada aconteceu para justicializar-se uma mãe que chegou a escutar do policial assassino uma fala comum, de inconsequente dolência para ela e tantas outras mães - “um filho de bandido”...

Numa representação dramática híbrida, marcada esteticamente pelo gestualismo que remete ora a um teatro coreográfico, ora a uma palestra cenográfica, Clayton Nascimento demonstra não só a sua potencialidade como ator (numa experiência inicializada ainda na infância e complementada em estudos na Escola de Arte Dramática de São Paulo e posteriores especializações universitárias).

Extensiva ao seu convicto manuseio didático de conhecimento de causa aliado ao provocador jogo cênico, no seu substrato referencial que percorre a historiografia e as instigantes contradições de um perverso racismo capaz de esconder até os traços da negritude em Machado de Assis.

Passando pela missão conscientizadora do Teatro Experimental do Negro para desembocar em nomes populares lendários, obscurecidos no paralelo anonimato das vitimações dos que tem epiderme de cor, dos mulatos e de todos aqueles que, sarcasticamente, a sociedade branca titula de macacos.  

Na réplica irônica a outro verso do Hino da Proclamação da República (“Somos todos iguais, ao futuro”) eis, afinal,  a emblemática contestação que Clayton Nascimento, enfaticamente, deixa como questionamento reflexivo para cada um de nós : “Nós não somos todos iguais perante o futuro”...


                                       Wagner Corrêa de Araújo


Macacos está em cartaz no Teatro Ipanema, sexta e sábado, às 20h;domingo, às 19hs. Até 07 de maio.

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