KAFKA E A BONECA VIAJANTE : A DOR DA PERDA INFANTIL NUMA SENSITIVA VIAGEM DE TEATRO MUSICAL


Kafka e a Boneca Viajante. Rafael Primot/Dramaturgia. João Fonseca/Direção. Julho/2023. Fotos/Ale Catan.


A amargura de um homem é, com frequência, o aturdimento petrificado de uma criança” (Franz Kafka).

Esta palavras de Franz Kafka podem, quem sabe, conduzir à decifração de imaginária correspondência na qual o escritor, nos derradeiros meses de sua vida e frente à terminalidade de sua trajetória literária, teria dedicado a uma menina, vista num parque de Berlim em prantos, por ter perdido sua boneca.

Um história poética mas melancólica sinalizada, sob a  pulsão de um fantasioso ideário post mortem, por intermédio de sua viúva Dora, através da suposição de um inédito manuscrito ficcional. Sem nenhum substrato de prova realista e com relatos lendários de que até a própria menina Rita, já adulta, teria se encontrado com ela, vinte anos depois.

Episódios sobre os quais nunca se encontrou nenhuma prova por quaisquer dos mais eminentes pesquisadores do legado kafkiano. E que o autor catalão Jordi Sierra i Fabra transmuta numa narrativa ficcional plena de encantamento e capaz de tocar, a fundo, crianças e adultos.

E adaptada, agora, dramaturgicamente, com a mesma titulação do livro - Kafka e a Boneca Viajante - por uma inspirada textualidade de Rafael Primot. Tendo chegado aos palcos cariocas, sob o sempre artesanal comando de João Fonseca, dimensionado aqui numa sensitiva versão em compasso de teatro musical.

Kafka e a Boneca Viajante. Carol Garcia, a Menina, e Alessandra Maestrini, a Boneca. Julho/2023. 


Reunindo um quarteto de craques do gênero como protagonistas desta mágica aventura para todas as idades. Preenchida pela envolvência delicada dos personagens mais pueris assumidos por Alessandra Maestrini como Brígida a boneca e Carol Garcia interpretando a menina Rita, e nas personificações adultas de André Dias no papel do Sr. K e Lilian Valeska fazendo Dora sua esposa.

Numa ambiência cênica (Nello Marrese) que acentua, sob  expressivos efeitos luminares (Paulo Cesar Medeiros), o clima de fantasia e delírio na metafórica visualização de um móbile/cronômetro que marca as passagens do tempo e dos mistérios da trajetória existencial.

Entre citações simbólicas e recortes biográficos, indo das enigmáticas escrituras kafkianas às viagens da boneca por diversos países. O despontar infanto-juvenil de uma menina e a crepuscularidade de um casal, conectando-se numa singularidade metafísica das fases da vida.

Complementada por referenciais de épocas passadas, através de selos e carimbos, e dos detalhes de uma indumentária (João Pimenta) sugestionando os anos vinte na vida de Kafka. E transmutada aos nossos dias por temas musicais característicos de culturas diversas e pelas antológicas canções brasileiras, na interativa funcionalidade da trilha presencial de Tony Lucchesi.

Onde uma fluente dramaturgia da fisicalidade prevalece no movimento coreográfico imprimido por Mirna Rubim ao gestual das  palavras faladas, cantadas e dançadas. Destacando-se a potencialidade carismática de quatro atores/cantores em plena uniformidade cênica e empatia psicofísica.

Conduzidos por uma convicta direção concepcional de João Fonseca capaz, assim,  de conceder aos personagens densidade poética e coesão emotiva nos seus sensoriais avanços dramático/performáticos, dos sonhos infantis à superação do desalento provocado pelas perdas.

Na personificção de temas caros ao universo infantil através da cativante pureza e ingenuidade da menina de Carol Garcia e da espontanea envolvência lúdica provocada pela boneca de Alessandra Maestrini. Com aparições paralelas de personagens característicos como um soldadinho de chumbo e de uma gaivota, pelos dois outros atores.

No contraponto do amadurecimento geracional, da força interior de  André Dias como um escritor à beira da morte às  delicadas nuances atorais de Lilian Valeska como sua esposa, no entremeio da compaixão por uma perda infantil e do difícil suporte da finitude da condição humana.

De volta, enfim, às sábias palavras literárias de Jordi Sierra para definir sinteticamente a proposta de Kafka e a Boneca Viajante: “Tudo que você ama, você eventualmente perderá, mas, no final, o amor  retornará em uma forma diferente”...

 

                                         Wagner Corrêa de Araújo

 


Kafka e a Boneca Viajante está em cartaz no Teatro II do CCBB/RJ, de quinta a domingo, às 19h30m, até 30 de julho.

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