ST TRAGÉDIAS - PAIXÃO E TÉCNICA COREOGRÁFICA UNEM SHAKESPEARE E TCHAIKOVSKY. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DA ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
“Se a música é o alimento do amor, continue tocando/. Dá-me o excesso que, farto/ O apetite pode adoecer e assim morrer” (William Shakespeare).
O substrato poético/metafórico da palavra shakespeariana vai além da realidade fazendo com que a ação dramatúrgica se torne também gesto e dança. O que levou também a uma íntima e constante conexão estética de seu teatro com a música transmutada em coreografia.
Onde as prevalentes versões da fatídica paixão de Romeu e Julieta são seguidas pela simbologia trágica de Othello, com sua visceral abordagem do ciúme, ambição, misoginia e racismo. Sem falar nas outras adaptações frequentes de A Megera Domada e Sonhos de Uma Noite de Verão.
ST Tragédias, é um espetáculo idealizado por Ana Botafogo e Marcelo Misailidis, ambos com brilhante trajetória na dança clássica como primeiros bailarinos, tendo como enfoque reunir duas criações coreográficas de Misailidis, sob uma linguagem neoclássica em inventiva proposta cenográfica sob temas do teatro de Shakespeare ligados à música de Tchaikovsky.
Com a participação dos primeiros bailarinos do Royal Ballet – Matthew Ball e Mayara Magri – em Romeu e Julieta, na estréia da obra em 2022, e agora, em 2024, com os nomes estelares do Balé do Teatro Cólon – Federico Fernandéz e Eliana Figueroa. Além de um destacado elenco de primeiros solistas em Othello.
A saber, Márcia Jacqueline, primeira bailarina do Ballet do Theatro Municipal/RJ, como uma interiorizada Desdemona, Edifranc Alves, também primeiro solista nesta Cia clássica, atuando como um rompante Othello e Márcio Jahú, de referencial carreira independente na dança contemporânea, no papel de um ferino Iago, ao lado de mais sete competentes bailarinos da cena carioca.
O compositor russo escreveu três poemas sinfônicos a partir do bardo inglês, a saber as Aberturas Fantasia - Hamlet, A Tempestade e Romeu e Julieta. Sendo esta última, cenicamente utilizada como um pas-de-deux entre os protagonistas titulares, sintetizando a trama dramática em seus aspectos básicos.
Aqui, pelo uso da composição sinfônica em sua integridade, na inicialização do espetáculo. Na alternância de quatro carismáticos intérpretes e primeiros bailarinos do Royal Ballet e do Teatro Cólon, sabendo priorizar, com expressiva entrega emotivo-gestual, uma irrepreensível técnica no entremeio do neoclássico com um sotaque de contemporaneidade.
Sempre com o desafio de imprimir uma dramaturgia da corporeidade transmutando o significado shakespeariano através de um sensorial vocabulário do movimento e da gestualidade. O que a concepção cênico/coreográfica de Marcelo Misailidis viabiliza, com raro apuro artesanal, no seu empenho para traduzir este dimensionamento não verbal.
Direcionado ainda ao mais ousado enfrentamento da adaptação de Othello para dez bailarinos, representando a totalidade dos personagens de um intricado e extenso jogo circular de teatralidade. A ser contado nos limites temporais do outro poema sinfônico de Tchaikovsky (no caso, Francesca da Rimini, este sem ligação nominal/temática com Shakespeare).
Mas capaz de sustentar, concisamente nos seus potenciais acordes, as alternâncias emocionais das sucessivas metáforas de uma narrativa de movimento, tornando perceptíveis as palavras dançadas sem estar rigorosamente preso à literalidade textual da tragédia.
Na especular representação de personagens em compasso de um teatro coreográfico, ampliado nos recursos de uma caixa cênica preenchida com um funcional jogo de elementos móveis, de dúplice atributo inventor (Misailidis), com a valiosa colaboração de Ana Botafogo, remanejados ao
som de quatro lúdicos Estudos Pianísticos de Tchaikovsky, dando original sustento musical às mudanças cenográficas entre a primeira e a segunda obra.
Com a manipulação tonal da iluminação (Paulo Cesar Medeiros), ressaltando a elegância discricionária e sensitiva dos figurinos (Ney Madeira) de Romeu e Julieta e a prevalência de cores rubras nas indumentárias (João Paulo Bertini) com um referencial sanguíneo remetendo aos arroubos da violência em Othello.
ST Tragédias é, enfim, uma obra luminosa para tempos de crise político/cultural e referencial diante de uma crescente onda feminicida. Capaz de seduzir a plateia, além de apontar novos caminhos para a dança carioca, por sua linguagem cênico/corporal de caráter visionário, sabendo como escapar à acomodação e à carência qualitativa de algumas de nossas mais tradicionais companhias oficiais de dança...
Wagner Corrêa de Araújo
ST Tragédias. Espetáculo coreográfico de Marcelo Misailidis e Ana Botafogo. Em cartaz no Teatro Casa Grande, de 23/05 a 02/06, seguindo em tour por outras cidades.
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