GAVESTON & EDUARDO / RENATO VIEIRA CIA DE DANÇA : RELEITURA DE UM TEMA MEDIEVAL COM O OLHAR ARMADO NA CONTEMPORANEIDADE. CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DA ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
Gaveston & Eduardo/Renato Vieira Cia de Dança. Renato Vieira/Coreografia/Direção Concepcional. Novembro/2024. Robert Schwenk / Fotos. |
O poeta e dramaturgo inglês Christopher Marlowe abordou em sua peça Eduardo II, no ano 1590 da era elizabetana, o polêmico relacionamento amoroso entre o rei Eduardo e Piers Gaveston, um conde tornado o favorito de sua corte londrina medieval, desafiando todos os preconceitos religiosos e morais da época relativos às ligações homoeróticas.
Mas só no século XX a peça despertou novamente a atenção, desde a versão teatral, imprimida por Bertold Brecht, à transposição cinematográfica de Derek Jarman, em 1991, seguida da primeira adaptação para a cena coreográfica por David Bintley, atendendo a uma solicitação de Márcia Haydée para o repertório do Stuttgart Ballet, em 1995.
Tendo sido possivel, depois de tempos difíceis, tanto o filme como o balé, graças à onda libertária no entorno da livre identificação sexual nos anos 70/80 embora, na década seguinte, já se sentisse o enfrentamento da avassaladora epidemia da AIDS, o que acabou, inclusive, vitimando o cineasta inglês e reativando a pulsão homofóbica.
Tanto o enredo do filme como o do balé, na busca do alcance de uma linguagem comprometida com a atualidade, equilibrando-se entre duas épocas para focalizar uma resistência quase milenar contra os desejos homoeróticos e também para ecoar os anseios de uma acirrada luta continuada, nos dias de hoje, pelo esforço e tomada de posição da comunidade LGBTQIA contra este fluxo repressor.
Gaveston & Eduardo / Renato Vieira Cia de Dança. Eduardo (Higor Campagnaro) e Gaveston ( Bruno Cezário). Novembro/2024. Robert Schwenk/Fotos. |
Nos palcos cariocas, o diretor Moacyr Goes chegou a encenar a peça com fidelização ao texto dramatúrgico original, pela tradução de Barbara Heliodora, sendo a concepção da Renato Vieira Cia de Dança mais ousada em sua formatação como um teatro coreográfico, sabendo como conectar-se com uma temporalidade ancestral, sempre retomada à luz de uma presencial contemporaneidade.
Sob este direcionamento inventivo, o empenho do coreógrafo Renato Vieira sugestionando em paralelo, na sua livre concepção textual e direcional (com pareceria de Bruno Cezario), os conflitos da corte medieval presidida por Edward II e a rainha Isabel, de origem francesa, diante da prevalência de sua irrestrita paixão por Gaveston.
Com destaques performáticos na protagonização do rei (Higor Campagnaro) como do cortesão alçado a conde (Bruno Cezário), além da rainha (Monica Burity) e seu comparsa/conspirador General Mortimer (Felipe Padilha), mais o Bispo (Rafael Gomes) e a alternância de outros personagens por Hugo Lopes.
Num elenco sustentado por uma coesiva potencialidade no desempenho energizado e qualitativo como atores/bailarinos, dando vazão a uma corporeidade gestual que estabelece uma imediata conexão emotiva espaço arena-platéia, ampliada pelos vibrantes solos autorais (cello e guitarra) de Rafael Kalil e Daniel Drummond.
Que se completam por citações de antológicos temas roqueiros, indo dos Rolling Stones, Pink Floyd e AC/DC às sonoridades pop/dançantes de Tracy Chapman. O que traz um diferencial da versão de David Bintley para o Stutttgart Ballet, mais à base de canticos medievais e música sinfônica contemporânea.
E se estende também a um atemporal sustento cenográfico (Adriana Lima) usando um decor com sutil sotaque gótico na cortina frontal de apliques dourados, na coroa e nos tronos reais. Confrontando-se com figurinos (Bruno Cezario) marcados por tonalidades cotidianas ao lado de sensualizados corpos desnudos, acentuados por vazados ou focais efeitos luminares (Eduardo Dantas Careca).
Onde, diante de um ascendente retrocesso conservador promovido pelo nosso último (des) governo, tanto na cultura como no comportamento político/social, fica ressaltada a importância de criações coreográficas com este teor denunciativo e questionador como é o caso de Gaveston & Eduardo, incluindo-se, aqui, algumas instantâneas e oportunas verbalizações dramatúrgicas.
Em mais uma luminosa iniciativa da Renato Vieira Cia de Dança que, após um longo período sem apresentar um espetáculo inédito completo, com sentida ausência a partir do surto da Covid 19, está de volta, abrindo novas perspectivas estético/temáticas na dança contemporânea para deleite lúdico-reflexivo do universo coreográfico brasileiro...
Wagner Corrêa de Araújo
Gaveston & Eduardo, com a Renato Vieira Cia de Dança, está em cartaz no Espaço Sesc/Arena, de quinta a domingo, às 20hs. Até 17 de novembro.
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