PÉLLEAS ET MÉLISANDE - ÚNICA ÓPERA ACABADA DE DEBUSSY. ARTIGO DE EMANUEL MARINEZ COM COMENTÁRIOS DE PAULO BRAGA NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
Com "Pelléas et Mélisande", Debussy abria a ópera ao século XX e à modernidade. Hoje ninguém se lembrará de representar a peça original de Maeterlinck, mas o compositor, se nele se apercebeu do potencial simbólico da obra, ainda melhor discerniu o "não dito" e as possibilidades de uma nova dramaturgia musical
Independentemente das datações mais ou menos canônicas, pode reconhecer-se que há um conceito do teatro musical moderno que começou publicamente com a estréia do Pelléas. De resto, se os mais clamorosos sinais de explosão do modernismo musical - o "Pierrot Lunaire", de Schoenberg, e "A Sagração da Primavera", de Stravinsky - são já imediatamente anteriores à Grande Guerra de 1914, não é reconhecido que em termos de pensamento formal a música do século XX se anunciara já no "Prelúdio à Sesta de Um Fauno" de Debussy, de 1894, inspirado em e solicitado por Mallarmé, composto no momento em que o autor congeminava já o projecto de um drama lírico a partir da peça de Maurice Maeterlinck. Música do indizível
Já importante autor de melodias, Debussy não deixava de aspirar a uma "música do indizível". Aspiração que tudo esclarece sobre o seu afastamento em relação à grande atração wagneriana, mesmo que em alguns aspectos (harmônicos nomeadamente, mas mesmo na técnica de encadeamentos temáticos) a sua música seja tributária do outro. Mas eram-lhe alheias a noção de "obra de arte total" e a retórica do "pathos". A sua estética era a da "impressão" e da sugestão "simbólica" - donde, por analogia com o curso pictórico da época, e no seu caso concreto sobretudo Manet, a recorrente designação de "impressionismo" para a sua música, donde o "simbolismo" que esteticamente será até mais pertinente de apor.
Maeterlinck era celebérrimo à época; hoje, sem a música de Debussy, alguém se dará ao árduo trabalho de representar o "Pelléas"? Com extraordinária acuidade, o compositor discerniu na peça a capacidade de sugestões e de símbolos. Nesse mesmo momento, Freud começava a praticar e a teorizar a psicanálise. Nem Maeterlinck, nem Debussy o poderiam conhecer ("A Interpretação dos Sonhos" é de 1900). Contudo, e sendo certamente legítimo e mesmo pertinente fazer leituras psicanalíticas do "Don Giovanni", da "Carmen" ou das óperas wagnerianas, é difícil não pensar que a primeira ópera do século XX é também a primeira ópera que, na sua própria dramaturgia, é uma "ópera do inconsciente". Por duas ordens de razões estritamente articuladas."
Já importante autor de melodias, Debussy não deixava de aspirar a uma "música do indizível". Aspiração que tudo esclarece sobre o seu afastamento em relação à grande atração wagneriana, mesmo que em alguns aspectos (harmônicos nomeadamente, mas mesmo na técnica de encadeamentos temáticos) a sua música seja tributária do outro. Mas eram-lhe alheias a noção de "obra de arte total" e a retórica do "pathos". A sua estética era a da "impressão" e da sugestão "simbólica" - donde, por analogia com o curso pictórico da época, e no seu caso concreto sobretudo Manet, a recorrente designação de "impressionismo" para a sua música, donde o "simbolismo" que esteticamente será até mais pertinente de apor.
Maeterlinck era celebérrimo à época; hoje, sem a música de Debussy, alguém se dará ao árduo trabalho de representar o "Pelléas"? Com extraordinária acuidade, o compositor discerniu na peça a capacidade de sugestões e de símbolos. Nesse mesmo momento, Freud começava a praticar e a teorizar a psicanálise. Nem Maeterlinck, nem Debussy o poderiam conhecer ("A Interpretação dos Sonhos" é de 1900). Contudo, e sendo certamente legítimo e mesmo pertinente fazer leituras psicanalíticas do "Don Giovanni", da "Carmen" ou das óperas wagnerianas, é difícil não pensar que a primeira ópera do século XX é também a primeira ópera que, na sua própria dramaturgia, é uma "ópera do inconsciente". Por duas ordens de razões estritamente articuladas."
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Comentários de Paulo Braga
Em 30 de abril de 1902 estreava em Paris Pélleas et Mélisande, a única ópera acabada de Claude Debussy, compositor francês, como ele a si se referia. No palco da Opéra-Comique, atual Salle Favart, Jean Périer, Mary Garden e Hector Dufranne nos papéis-título e como Golaud respectivamente, sob a direção de André Messager. A reação do público não foi menos tumultuosa que a reservada, anos mais tarde, para outras obras capitais como Le Sacre e Pierrot Lunaire; eram tempos em que, mesmo que demonstrando incompreensão, o sangue podia ferver por motivos estéticos...
O libreto escolhido, baseado fielmente na tragédia do belga Maurice Maeterlinck (que motivou pelo menos uma outra obra-prima absoluta, o poema sinfônico de Schoenberg), tem semelhanças com Tristan und Isolde de 1865: dois amantes que se aproximam por casualidade, circunstâncias tais que as mãos do destino mais que suas próprias os levam à infidelidade (certa em Tristan, presumida em Pélleas), a morte de um e de outro num momento de fúria, de uma e de outra mais tarde, a pena incontornável para quem fica.
Não é o único paralelo, no entanto: ainda que musicalmente em muito se afastem, elas também se refletem, como se Debussy fornecesse a seu antecessor/antípoda Wagner uma resposta, no mesmo exaltado nível, sobre como criar um comentário indelével, imortal sobre um dos grandes mitos da civilização – o do amor ideal – usando os mesmos meios: o drama lírico.
Às vezes por oposição, pois se em Wagner os protagonistas são pujantes e heróicos, em Debussy nada se afirma, sequer o entorno onde se desenrola a narrativa, em algum lugar no passado, perdido e esquecido.
Mélisande, desde sua aparição, perdida na floresta, mantém em torno de si um clima que chega a suscitar dúvida se ela é uma personagem ou uma figura de sonho, se ela está lá o se a imaginamos: em um só momento, no pungente final do terceiro ato, ela chega a emergir das brumas para o je t"aime aussi, pronunciado pouco, mas muito pouco antes da irrupção de Golaud, da morte de Pélleas, do seu retorno definitivo ao nível de quase inconsciência do seu discurso.
Outras vezes, por empréstimo, pois se pode ouvir em Debussy como que a elaboração do leitmotiv wagneriano, como também o cromatismo exacerbado, mesmo que ele evite os contrastes fortes, sejam harmônicos, sejam dinâmicos.
A ópera de Debussy se desenrola como um recitativo contínuo, em que a inteligibilidade do texto é realçada pelos intervalos melódicos muito próximos da enunciação natural, favorecendo que as personagens nunca ultrapassem a escala humana.
Diferente nas duas óperas é também a cosmogonia subjacente: se Isolde é filha de uma feiticeira e se a concomitante transfiguração e perdição dos amantes ocorre por um mediador bem explícito, o filtro do amor tomado por engano, não existem intervenções no destino de Pélleas ao encontro com Mélisande: tudo se dá com a naturalidade de uma narrativa já escrita desde sempre nas pedras, na fonte, na floresta, nas sombras em torno do castelo.
Teria havido a infidelidade de Mélisande, que justificasse o ciúme mortal de Golaud? Como na igualmente suposta infidelidade de Capitu, o que ocorre e o que não ocorre estão embebidos pela mesma suspensão das mores e quem se obstinar nesta dúvida redutora pode acabar como Golaud: diante de quem lhe aponta o infinito, olhar para o dedo.
Ao fim dos cinco atos o ouvinte terá completado uma viagem, ou melhor, pode ter iniciado uma outra: dessas névoas, dessas contenções, dessa recusa ao efeito ele terá como num paradoxo, se iluminado um pouco mais sobre as pulsões humanas, sobre o que está ainda mais fundo que o fundo do poço, escondido nos subterrâneos do castelo, mas influenciando senão o dia-a-dia, cada noite de sua vida.
Passados já cem anos, o contato com este testemunho de outra era convoca ainda outras reflexões: em meio de tanto barulho e violência, do propalado triunfo final do mercantilismo sobre tudo e sobre todos, é preciso resistir com o tipo de espírito capaz de engendrar, e capaz de fruir, um “produto” como este.
O libreto escolhido, baseado fielmente na tragédia do belga Maurice Maeterlinck (que motivou pelo menos uma outra obra-prima absoluta, o poema sinfônico de Schoenberg), tem semelhanças com Tristan und Isolde de 1865: dois amantes que se aproximam por casualidade, circunstâncias tais que as mãos do destino mais que suas próprias os levam à infidelidade (certa em Tristan, presumida em Pélleas), a morte de um e de outro num momento de fúria, de uma e de outra mais tarde, a pena incontornável para quem fica.
Não é o único paralelo, no entanto: ainda que musicalmente em muito se afastem, elas também se refletem, como se Debussy fornecesse a seu antecessor/antípoda Wagner uma resposta, no mesmo exaltado nível, sobre como criar um comentário indelével, imortal sobre um dos grandes mitos da civilização – o do amor ideal – usando os mesmos meios: o drama lírico.
Às vezes por oposição, pois se em Wagner os protagonistas são pujantes e heróicos, em Debussy nada se afirma, sequer o entorno onde se desenrola a narrativa, em algum lugar no passado, perdido e esquecido.
Mélisande, desde sua aparição, perdida na floresta, mantém em torno de si um clima que chega a suscitar dúvida se ela é uma personagem ou uma figura de sonho, se ela está lá o se a imaginamos: em um só momento, no pungente final do terceiro ato, ela chega a emergir das brumas para o je t"aime aussi, pronunciado pouco, mas muito pouco antes da irrupção de Golaud, da morte de Pélleas, do seu retorno definitivo ao nível de quase inconsciência do seu discurso.
Outras vezes, por empréstimo, pois se pode ouvir em Debussy como que a elaboração do leitmotiv wagneriano, como também o cromatismo exacerbado, mesmo que ele evite os contrastes fortes, sejam harmônicos, sejam dinâmicos.
A ópera de Debussy se desenrola como um recitativo contínuo, em que a inteligibilidade do texto é realçada pelos intervalos melódicos muito próximos da enunciação natural, favorecendo que as personagens nunca ultrapassem a escala humana.
Diferente nas duas óperas é também a cosmogonia subjacente: se Isolde é filha de uma feiticeira e se a concomitante transfiguração e perdição dos amantes ocorre por um mediador bem explícito, o filtro do amor tomado por engano, não existem intervenções no destino de Pélleas ao encontro com Mélisande: tudo se dá com a naturalidade de uma narrativa já escrita desde sempre nas pedras, na fonte, na floresta, nas sombras em torno do castelo.
Teria havido a infidelidade de Mélisande, que justificasse o ciúme mortal de Golaud? Como na igualmente suposta infidelidade de Capitu, o que ocorre e o que não ocorre estão embebidos pela mesma suspensão das mores e quem se obstinar nesta dúvida redutora pode acabar como Golaud: diante de quem lhe aponta o infinito, olhar para o dedo.
Ao fim dos cinco atos o ouvinte terá completado uma viagem, ou melhor, pode ter iniciado uma outra: dessas névoas, dessas contenções, dessa recusa ao efeito ele terá como num paradoxo, se iluminado um pouco mais sobre as pulsões humanas, sobre o que está ainda mais fundo que o fundo do poço, escondido nos subterrâneos do castelo, mas influenciando senão o dia-a-dia, cada noite de sua vida.
Passados já cem anos, o contato com este testemunho de outra era convoca ainda outras reflexões: em meio de tanto barulho e violência, do propalado triunfo final do mercantilismo sobre tudo e sobre todos, é preciso resistir com o tipo de espírito capaz de engendrar, e capaz de fruir, um “produto” como este.
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