ROSSINI PASSADO A LIMPO. ARTIGO DE FREDERICO TOSCANO NO BLOG DE ÓPERA EBALLET.
Acho importante aproveitar este espaço para
esclarecer questões que acabaram se tornando, inapropriadamente, discurso
persistente de obsoletos (mas ainda presentes) formadores de opinião no meio
musical. De certa forma isso já tem sido feito aqui – lembrando, por exemplo, o
post recente dedicado ao resgate do trabalho e da
importância histórica do injustiçado Georg Philipp Telemann (1681-1767).
Dessa vez, venho levantar a bandeira, sem
intenção de esgotar o assunto, contra outra injustiça que ainda hoje é propagada
desde conversas informais até publicações tradicionais: o desdém preconceituoso
ao compositor italiano Gioacchino [ou Giovacchino, na
grafia arcaica em sua certidão de batismo, ou, ainda, Gioachino, como
era assinado] Antonio Rossini (1792-1868), gênio precoce que
vem sendo reconhecido como o grande pai da ópera italiana do século XIX. Foi o
modelo primordial de Gaetano Donizetti (1797-1848),
Vincenzo Bellini (1801-1835) e Giuseppe Verdi
(1813-1901), entre tantos outros, de forma direta e indireta, até os dias atuais
– incluindo o nosso padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830).
E qual a origem dessa atitude amarga? Tal
discurso passou por graves equívocos históricos na abordagem feita à obra
rossiniana. Particularmente me motivou nesse sentido o manifesto do crítico
musical inglês Richard Osborne na obra Rossini: His Life and Works
(2007, 2ª Ed.) – a mais rica biografia já escrita sobre o compositor. Permito-me
aqui compartilhar, ratificar e, eventualmente, complementar as valiosas
colocações de Osborne.
Inicialmente, é importante trazer o contexto
histórico. A literatura registra que o declínio na popularidade das óperas de
Rossini era percebido já na década de 1840, sendo acompanhado, após a morte do
compositor, por um triste abalo na sua reputação, bem como perda de atenção e
zelo dos músicos e críticos à sua obra.
Embora a fama de sua obra-prima por excelência,
Il Barbiere di Siviglia, continuasse a crescer, muita música
de qualidade foi abandonada e ficou desconhecida para o público em geral durante
um bom tempo. Um dos primeiros a perceber essa inaceitável situação foi o
compositor alemão Richard Wagner (1813-1883), cuja própria
produção contribuiu para construir novos pilares da estética a partir de
1870.
Tendo encontrado Rossini em Paris (1860) e mais
cedo estudado sua música com profundo interesse, Wagner percebeu com propriedade
o abismo existente entre o Rossini real e o Rossini desleixado, como foi
divulgado pelo que Wagner chamou de “rebanho de parasitas e palhaços”, que
cercava o mestre italiano nos seus últimos anos de vida. No seu belo tributo
póstumo (Eine Erinnerung an Rossini, 1868), Wagner declarou que Rossini
foi tão importante e essencial para sua época quanto os compositores Giovanni
Pierluigi da Palestrina (1525-1594), Johann Sebastian Bach (1685-1750) e
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) foram para a deles. Mesmo assim e com pesar,
Wagner admitiu que a estrela de Rossini continuaria obscurecida até que as
perspectivas históricas e musicais do início do século XIX fossem devidamente
resgatadas.
A nossa época se vangloria do progresso nas artes,
mas deixa de notar a ruína do antigo refinamento.
Richard
Wagner (1813-1883) em Eine Erinnerung an Rossini, 1868.
A fase mais crítica sobre a obra de Rossini vai
de 1880 até a Primeira Guerra Mundial. Cercado por apresentações sofríveis do
Stabat Mater rossiniano e execuções irresponsáveis das aberturas do
Cisne de Pesaro, o escritor irlandês George Bernard Shaw (1856-1950)
chegou a afirmar, por ocasião do centenário de nascimento de Rossini, que o
compositor era “um dos maiores mestres da enrolação de todos os tempos”!
A reputação de Rossini somente passou a
ressuscitar a partir de 1920, com o surgimento de um movimento neoclássico. Mas
nem tudo foi superado. Algumas questões ainda persistem em corroer injustamente
a imagem de Rossini, ecoadas por meios duvidosos ou intencionalmente nocivos, a
começar pela impiedosa acusação de auto-plágio.
Rossini já tinha sido acusado de auto-plágio nos
idos de 1814 por críticos sensacionalistas (inclusive do seu próprio ciclo de
amizade), que simplesmente confundiram (ou quiseram confundir…) seu canto e
estilo característico com mero auto-plágio. Por outro lado, a imagem pública que
Rossini acabava passando não colaborava muito para desfazer essa idéia – ele
tinha especial atração pela culinária e não era muito chegado a esforços
físicos, como se vê em seus retratos…
Alimentou-se a suposição, facilmente enraizada no
imaginário popular, de que o tal auto-plágio era um inegável sinal de “preguiça
congênita” e que, além disso, a rápida velocidade de Rossini na composição de
suas óperas implicava em superficialidade na sua música. O próprio
pronunciamento de Rossini sobre o assunto, que ele resolveu fazer mais tarde,
foi mais de cunho estético do que pragmático. Um amigo (e biógrafo) do
compositor comentou que, para Rossini, “a música era, de certo modo, a atmosfera
moral que preenchia o lugar onde os personagens do drama representavam a
ação”.
Nesse mesmo sentido, o filósofo alemão
Arthur Schopenhauer (1788-1860) atribuía à música um poder
exclusivo entre as artes: segundo ele, a música fala numa língua que a razão não
compreende… Não surpreendentemente, Schopenhauer era um ávido admirador da
música de Rossini. Disse o filósofo que “apesar de toda inveja existente, as
maravilhosas melodias de Rossini se espalharam pelo mundo inteiro, renovando
cada coração, e assim sempre será in saecula saeculorum” (Sämtliche
Werke, 1877).
Em outras palavras: para Rossini, o texto
importava, mas não era determinante. Enfim, o mestre italiano estava consciente
do fato de que, numa época em que se valorizava cada vez mais a originalidade e
a autonomia de uma obra, auto-plágio era visto como algo gravemente desonesto.
Para ele, no entanto, a verdadeira preocupação não era cometer o auto-plágio em
si, mas o efeito a ser obtido na ópera pelo resgate da estrutura musical. Cabe
aqui lembrar que a prática do auto-plágio chegou a ser generalizada e
naturalmente difundida.
Assim como os alemães Georg Friedrich
Händel (1685-1759) e Johann Sebastian Bach
(1685-1750), no passado, o italiano Rossini foi impulsionado pelo desejo de
recuperar e reutilizar estruturas musicais de relevante valor intrínseco que,
por alguma razão, tinham caído no esquecimento. Poucos “auto-plágios” de Rossini
foram feitos despropositadamente; a maioria deles demonstra bom gosto e critério
na seleção do material, bem como especial habilidade e esforço no processo de
readaptação. Osborne ressalta que refazer uma cena ou uma ária podia ser
extremamente demorado, especialmente quando – como era freqüente no caso de
Rossini – um novo libretista era contratado e o conceito inteiro era
reformulado, incluindo a orquestração.
A capacidade adaptativa de Rossini era tão vasta
quanto despretensiosa. Por outro lado, havia uma segunda razão pela qual o
compositor encarava isso legitimamente. Com uma agenda sempre lotada, tal
estratégia otimizava o seu tempo e trazia o esperado resultado. Rossini tinha
também o hábito de usar o caráter de urgência da encomenda (aspecto muito
freqüente) como pretexto para escolher o tema de um libreto que havia sido
musicado recentemente à época – no caso de L’Italiana in
Algeri, por exemplo, uma escolha feliz de um libreto eficaz. Com o texto
previamente conhecido e já colocado à prova, Rossini passava então a concentrar
sua atenção na formulação de respostas especificamente musicais para os
problemas e desafios impostos pelo enredo. Aliás, a diferença básica entre a
L’Italiana in Algeri de Rossini e a ópera de mesmo
título/libreto de seu colega conterrâneo Luigi Mosca (1775-1824) é justamente a
superior qualidade na organização musical da partitura de
Rossini.
Trabalhando sob pressão, mas de forma inteligente
e original, Rossini se comparou a Mozart ao extrair uma
nova força do estilo cômico. A atenção de Rossini à articulação
das palavras, à caracterização rítmica e à orquestração, assim como à qualidade
na organização formal – em nível jamais imaginado por Mosca – foram fundamentais
para o sucesso de L’Italiana in Algeri (um talento que os
diretores de teatro da época rapidamente identificaram e contrataram).
A técnica inconfundível de Rossini é o segredo,
enfatiza Osborne, para gerar o característico jogo de ironia na sua música –
algo que somente é interrompido numa ópera sua quando os personagens assumem
postura heróica ou sentimental. Como se afirma na obra The New Oxford
History of Music (Dean, 1982), quanto mais se aprende sobre os métodos
rossinianos, mais se abandona a injusta e velha opinião de que ele não tinha
gosto dramático e era crítico medíocre para libretos.
Sem dúvida, não houve na carreira de Rossini uma
parceria ao nível da formada entre Emanuele Conegliano (1749-1838) – mais
conhecido como Lorenzo da Ponte – e Mozart. Por outro lado, sabe-se que
o próprio Rossini escolhia, influenciava e alterava os textos que ele usava.
Osborne afirma que as evidências acessadas mostram um compositor de mente atenta
e engajada, ao contrário da figura desleixada que erradamente se construiu.
A diversidade de assuntos abordados impressiona:
são libretos baseados em Jean Baptiste Racine (1639-1699),
François Marie Arouet, “Voltaire” (1694-1778),
Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799),
Johann Christoph Friedrich von Schiller (1759-1805) e
Sir Walter Scott (1771-1832), ao lado de inteligentes
adaptações de contos de fada e passagens bíblicas. De fato, seria forçado
salientar mérito dramático na maioria dos libretistas de Rossini, mas defendo o
argumento de Osborne de que o teste decisivo para se avaliar a qualidade de um
texto operístico acaba sendo a sua concreta adequação ao cenário musical – e
neste ponto Rossini raramente deixou a desejar.
Em relação à questão dos estilos cômico e sério
na música de Rossini e seu tratamento, tido como indiscriminado sobre os dois,
um grande mal-entendido foi difundido a partir da afirmação do escritor inglês
Edward Joseph Dent (1876-1957), em sua obra The Rise of Romantic Opera
(1976), de que Rossini “não fazia nenhum esforço para diferenciar o estilo sério
do cômico” – algo francamente equivocado, além do que isso depende do que se
entende por “cômico” e “sério”. A filósofa americana Susanne Langer (1895-1985),
a propósito, em sua obra Feeling and Form (1977) definiu a experiência
cômica como o oposto à trágica: seria uma imagem de “vitalidade humana
sustentando a si mesma num mundo em meio a surpresas de coincidência
espontânea”. É também possível analisar, segundo Osborne, a perspectiva na qual
as óperas cômicas de Rossini são, em si mesmas, um jogo dentro de um jogo, entre
tantas outras dimensões.
Popular, animador e mais preocupado com a
continuidade do que com a mudança (sem a necessidade de ressaltar a vida
interior dos personagens), o espírito cômico – que envolve
tanto Guillaume Tell quanto Il Barbiere di Siviglia –
é o elemento mais consistentemente explorado por Rossini. Nesse sentido, conclui
Osborne, visualiza-se total integração na sua obra, ou seja: a
qualidade da coerência interna fica evidente quando a obra de Rossini é
analisada na sua totalidade.
A importância de Rossini para a história da
música tem sido cada vez mais reforçada, como o fazem objetivamente Alan Riding
e Leslie Dunton-Downer na sua obra Opera (2006), ressaltando que ele
rejuvenesceu a opera buffa e a opera seria e também, pelo
estilo vocal virtuosístico, conhecido como Bel Canto, tornou a pôr a
voz no centro do palco da ópera italiana. São categóricos ao afirmar que o que
logo distingue Rossini é a exuberância de sua música. Lembram que a profunda
admiração por Mozart – “meu ídolo e meu mestre”, como disse Rossini certa vez –
levou alguns dos primeiros críticos a considerá-lo “demasiado germânico”, mas
deixam claro que esse tipo de ressalva logo seria abandonado diante dos ritmos
saltitantes, da colorida orquestração, das melodias irresistíveis e das árias
floreadas. Enfim, o seu som era, definitivamente, italiano.
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