NO SEU CENTENÁRIO, UMA AVALIAÇÃO DA MÚSICA APRESENTADA DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922. ARTIGO DE OSVALDO COLARUSSO NO BLOG DE ÓPERA 7 BALLET.
Terceira noite (17 de fevereiro): Depois dos tumultos do dia 15 uma noite quase calma, e apenas com a música de Heitor Villa-Lobo.
A terceira noite, a mais calma das três noites da Semana de Arte Moderna, foi uma noite apenas musical (sobre a primeira noite veja aqui e sobre a segunda noite veja aqui ). O objeto da ira dos manifestantes, principalmente Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia não estavam nem na primeira fila, como no dia 13 e nem no palco como no dia 15. Estavam dispersos pelo teatro, que estava bem mais vazio do que nas noites anteriores, tanto que as pessoas que estavam na galeria e no anfiteatro foram convidadas a descer para lugares melhores, o que desarmou uma confusão iminente, pois na galeria se encontrou uma lata cheia de ovos e pedras, que felizmente não foram usadas. Os ingressos estavam bem mais baratos. No dia 15 uma cadeira de plateia custava 12.500 réis e no dia 17 apenas 5.300 réis isso é, menos da metade.
A programação musical foi muito parecida com a da primeira noite. Apenas com obras de Villa-Lobos se iniciou com uma composição de mais de quarenta minutos de duração, numa linguagem comportada, muito distante do que viria a ser o estilo próprio do compositor, distante de qualquer preocupação nacionalista: O Trio Nº 3 para Violino, violoncelo e piano (1918). Obra que se assemelha ao estilo do belga César Franck ou dos franceses Fauré e Massenet. Uma ducha de água fria mais uma vez nos possíveis manifestantes. Foi executado pelos mesmos músicos do Trio Nº 2 do dia 13: Paulina D’Ambrósio – Violino. Alfredo Gomes – Violoncelo e Lucília Villa-Lobos – Piano. Depois deste imenso trio uma obra para canto e piano. Por mais estranho que pareça numa Semana de Arte Moderna em que se buscava uma linguagem mais brasileira, depois de afrancesado Trio as canções apresentadas em seguida foram cantadas em francês!!! Com texto de um dos poetas que participaram da Semana, Ronald de Carvalho, executaram três das Historietas de 1920: “Lune d’octobre”, “Voilá la vie” e “Jouis sans retard”. Quem cantou foi o soprano Maria Emma e quem acompanhou ao piano foi a então esposa do compositor Lucília Villa-Lobos. Para completar a primeira parte do concerto (sim esta terceira noite foi mesmo um concerto) foi a vez da Sonata Nº 2 (Fantasia) para violino e piano. Obra de 1914 e com 25 minutos de duração foi executada por Paulina D’Ambrósio e Fructuoso Vianna. Julgo estranho Villa-Lobos não ter incluído a Sonata Nº 3 para violino e piano, de 1920, uma obra cheia de riquezas, muito superior a esta que foi apresentada.
Na segunda parte o pianista Ernâni Braga executou obras que aproximam muito Villa-Lobos do impressionismo musical, como as executadas na primeira noite: Num berço encantado (da Simples coletânea -1916), Camponesa Cantadeira (da Suíte Floral -1916) e Bailado infernal (de uma projetada ópera, Zoé – 1920). Para encerrar a noite foi executada a obra mais experimental que Villa-Lobos apresentou na Semana de Arte Moderna: o Quarteto simbólico, “Impressões da Vida Mundana”, obra escrita e estreada no Rio de Janeiro poucos meses antes. A originalidade maior está em sua instrumentação: Flauta, Saxofone, Celesta e Harpa com a participação de um coro feminino oculto sem texto, apenas com vocalizes. Obra muito bem escrita, seu terceiro (e último) movimento tem um nacionalismo bem evidente. Manoel Aranha Corrêa do Lago em seu livro “O círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil” levanta a hipótese de Villa-Lobos ter conhecido a curta obra de Schönberg Herzegewäsche (1912), que tem uma instrumentação parecida, quando concebeu esta obra. As vozes usadas como um naipe instrumental é encontrada em obras francesas compostas naquela época que com certeza Villa-Lobos conhecia como os “Três Noturnos” de Debussy, “A tragédia de Salomé” de Schmitt e “Daphnis et Chloé” de Ravel. Quem puder ouvir o excelente registro do CD “Villa-Lobos em Paris”, regido por Gil Jardim, poderá avaliar a qualidade excepcional desta partitura. Os sons um tanto quanto experimentais do coro feminino (glissandos, pequenos gritos) atiçaram o público como um sujeito que imitou um galo e um certo murmúrio no ar. Dois detalhes que pude aferir nas minhas pesquisas: não conseguiram achar uma harpa (ou possivelmente um harpista) e a parte da harpa foi tocada por um piano, o que com certeza levou a um enorme empobrecimento da execução. O outro detalhe é que no programa distribuído ao público não se especifica que coro cantou. Jason Tércio, em sua magnífica biografia de Mário de Andrade, explica que o autor de “Paulicéia desvairada”, que era professor do Conservatório Dramático e Musical, convenceu diversas alunas da instituição a participar da execução, e ele mesmo as preparou, o que lhe valeu uma enorme reprimenda da direção do conservatório por “expô-las” a um espetáculo de “qualidade duvidosa”. Só não foi demitido por ser um professor concursado. Creio que ele achou melhor não discriminar quem cantou. A execução esteve a cargo de Pedro Vieira – Flauta. Antão Soares – Saxofone. Ernani Braga – Celesta. Fructuoso Vianna - piano (tocando no piano a parte original de harpa). Com certeza o compositor regeu, apesar de que nada consta no programa. O flautista e o saxofonista foram os mesmos da estreia no Rio, mas na então capital federal houve harpa (quem tocou a harpa na estreia foi Rosa Ferraiol).
Conclusões e bibliografia
Nestes três textos tentei deixar bem claro o que realmente aconteceu musicalmente na Semana de Arte Moderna de 1922. Apesar de ter discriminado as conferencias e as eventuais declamações me detive de forma mais profunda na parte musical. E não posso deixar de citar as fontes principais de minha pesquisa: dois livros, excepcionais, eu já citei, os da autoria de Jason Tércio, ” Em busca da alma brasileira – biografia de Mário de Andrade” (Editora Estação Brasil), e o escrito por Manoel Aranha Corrêa do Lago “O círculo Veloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil” (Editora Reler). Tive acesso ao programa original distribuído ao público no evento e foi de extrema utilidade o livro de Neide Resende, “A Semana de Arte Moderna” (Editora Ática) e o livro “Heitor Villa-Lobos” de Paulo Renato Guérios (FGV Editora), além de diversos escritos de Luiz Heitor Correa de Azevedo. Creio ser importante citar uma entrevista que fiz com Guiomar Novaes 1972, quando se comemorava o cinquentenário da Semana. Foi um trabalho da Escola em que estudava (tinha 14 anos), e nessa conversa ficou clara a ruptura que havia entre ela e os organizadores da semana, ruptura que se originou com o pedido de que ela executasse a obra de Satie que faz uma paródia de Chopin.
Apesar de que a maioria das obras apresentadas de Villa-Lobos não terem se firmado no repertório podem ser encontradas no youtube. Vale a pena ressaltar que o que, de Villa-Lobos, se firmou no repertório foram apenas a curta peça executada por Guiomar Novaes, “O ginete do pierrozinho” e o segundo movimento da Suíte floral, “Uma camponesa cantadeira”, executada na última noite por Ernâni Braga. De lamentar que o “Quarteto simbólico” seja tão pouco conhecido: uma obra prima.
Osvaldo Colarusso
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