OEDIPUS REX NO THEATRO SÃO PEDRO. ARTIGO DE FABIANA CREPALDI NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.



Saudável e louvável a ousadia com responsabilidade. Não foi menos que uma corajosa ousadia, por parte do Theatro São Pedro, a inclusão de Oedipus Rex, ou Édipo Rei, ópera em forma de oratório de Igor Stravinsky (1882-1971), com libretto original em francês de Jean Cocteau (1889-1963) e com tradução para o latim de Jean Daniélou. A obra, que estreou em forma de concerto em 1927 no Théâtre Sarah Bernhardt, em Paris, e só recebeu sua primeira montagem cênica no ano seguinte, teve sua última encenação em São Paulo em 1963. Em 2003, tanto a OSESP quanto a OER a executaram, mas em forma de concerto.
Oedipus Rex faz parte do vasto catálogo de obras neoclássicas de Stravinsky. Nas Norton Lectures (1973), Leonard Bernstein afirma que Stravinsky é um eclético e compõe sobre outras músicas. “Stravinsky com todas as suas incongruências musicais. O moderno com o primitivo, tonalidade com notas ‘erradas’, um acorde lutando com o outro, ritmo contra ritmo, as contradições de (...) formas clássicas preenchidas com estilo contemporâneos e estilo clássico em formas contemporâneas.” Aí está a essência do neoclassicismo de Stravinsky.
Não se pode enganar o destino. Não se pode considerar alguém feliz antes que seus dias se tenham consumado. Essas são as duas mensagens explícitas da história do infeliz rei Édipo, escrita por Sófocles no século V a.C.. A tragédia surgiu a partir da adaptação de histórias da antiga tradição de Tebas. Antes de se tornar, com a peça de Sófocles, o símbolo do herói trágico, Édipo era entendido como um governante que defendia sua polis.
Segundo Nietzsche em Introdução à Tragédia de Sófocles, “se de acordo com a interpretação de Aristóteles [Édipo Rei] é considerada como a tragédia-modelo, segundo a estética moderna é exatamente uma tragédia ruim, porque nela a antinomia entre destino absoluto e culpa permanece sem solução.” De fato, a Antiguidade Clássica considera a existência de um destino pré existente, que não pode ser mudado pela ação humana. Nesse sentido, a infelicidade de Édipo não pode ser encarada, ao gosto de nossa mentalidade judaico cristã, como uma punição. É, portanto, equivocada a tentativa de buscar uma culpa em Édipo anterior ao assassinato do Rei Laio -- uma vez que esse crime já é parte da suposta punição pois, sem o saber, ele matou seu próprio pai. Jean Cocteau (1889-1963) e Igor Stravinsky (1882-1971), em sua magistral adaptação da tragédia para a ópera, não caíram na tentação (ou, segundo Nietzsche, equívoco) de associar a infelicidade ao castigo, mas mantiveram o destino como senhor da trama.
Como observa Flávio Rangel em Édipo Rei -- um espelho de muitas imagens (1976),  “A maioria das frases de Édipo é de interrogação: as respostas vão formando o mosaico do intrincado enredo.” Na adaptação de Cocteau, no primeiro ato Édipo é um herói que não questiona, pois tem certeza de que vai salvar Tebas. Já no segundo ato ele faz alguns questionamentos e as revelações que culminam com sua queda vão sendo-lhe impiedosamente atiradas. Não é, porém, a técnica inquisitiva um traço marcante da adaptação de Stravinsky e Cocteau. Em lugar desse recurso, a trama é encaminhada por um narrador, criando um efeito de distanciamento à lá Brecht. Tal efeito, como se sabe, permite que o espectador reflita sobre a sua própria  realidade a partir da história apresentada pelos atores. O objetivo, portanto, não é que o espectador se sinta envolvido pela história, mas que adote uma postura crítica em relação a ela. Para tanto, é necessário um narrador com pleno conhecimento dos fatos e que os transmita com certa frieza. Stravinsky conta, na série de entrevistas que concedeu a Robert Craft (seu discípulo e célebre maestro americano que faleceu na semana passada aos 92 anos), que foi de Cocteau a ideia de introduzir um narrador de fraque “e de lhe fazer ter o papel de um conferencista (o que, na prática, muito frequentemente tem sido considerado como um mestre de cerimônias).” Tal caracterização do narrador foi convenientemente seguida no Theatro São Pedro, que teve Arrigo Barnabé no papel. Stravinsky continua e, com o distanciamento proporcionado, dessa vez, pelo tempo, faz uma surpreendente revelação: “Eu detesto essa ideia, essas interrupções perturbadoras, e eu não gosto muito também dos versos em si.”
Ainda segundo Stravinsky, seu desejo para Édipo Rei não era um drama de ação, mas uma “natureza morta” -- mas com árias e recitativos. Não foi de primeira que o libretto de Cocteau agradou Stravinsky. Segundo ele, Cocteau aceitou suas críticas “com uma paciência extrema. A obra foi reescrita duas vezes, e submetida em seguida a uma última ‘poda’.” De fato bem “podada”: conta com frases curtas e objetivas, que muitas vezes se repetem algumas vezes, reforçando o efeito obsessivo e estático (de “natureza morta”) conferido pelosostinatos presentes na música.
A estreia de A Sagração da Primavera (1913) segundo Cocteau.

   Stravinsky escolheu Cocteau como libretista por causa da grande admiração que teve por sua Antígona (1922). Cocteau, por sua vez, esteve presente à polêmica estreia da Sagração da Primavera uma década antes, em 1913. O famoso desenho reproduzido acima, Cocteau ilustra a noite da estreia da Sagração. Segundo Stravinsky afirmou em Chroniques de ma vie (1962), o texto o agradou: “Eu não poderia sonhar com texto mais perfeito ou que respondesse melhor a todos os meus desejos.” Apesar da escolha do escritor francês, o  idioma escolhido por Stravinsky para a sua obra não era o francês, mas o latim. Não por o considerar língua morta, mas clássica, “transformada em pedra e tão monumental a ponto de ter se tornado imune a qualquer risco de vulgarização.” Ao musicar a obra, Stravinsky pôde se certificar de quão apropriada foi sua escolha. “Como eu havia pressentido, os acontecimentos e as figuras da grande tragédia se encarnam maravilhosamente nessa língua e se revestem, graças a ela, de uma plástica monumental, uma aparência soberana à altura da majestosidade da lenda antiga. Que alegria compor a música sobre uma linguagem convencional, quase ritual (...)!”
Além do idioma, também é necessário que os intérpretes se petrifiquem, se comportem como monumentos. Segundo orientação da partitura, “eles precisam dar a impressão de estátuas vivas.” Para tanto, “apenas seus braços e cabeças se movem”. Eis o desafio para os diretores cênicos.
Desafio aceito. Assim foi feito -- e bem feito -- na inteligente montagem do Theatro São Pedro, que teve direção cênica e iluminação do brilhante Caetano Vilela e cenários de Roni Hirsch. Para acentuar o efeito, o coro apresentou-se quase todo o tempo sentado, estático. Solistas entrava com pesos sob os pés, que ao mesmo tempo que os deixavam fincados no chão davam a sensação de apoio de estátuas. Como pode ser visto na figura de abertura, acima, o ambiente era de bastidores: talvez de um ensaio, com o coro sentado, ensaiando; talvez o ensaio fosse nos bastidores de um museu, com estátuas sendo levadas de um lado para outro, especialmente Édipo e Jocasta, que foram posicionados em um nível mais alto, sobre escadas, e essas escadas que eram empurradas quando alguma movimentação era necessária. A escada de Jocasta era um pouco mais alta que a de Édipo.
É com a introdução do narrador odiado pelo compositor que a ópera tem início. O narrador  invoca o caráter monumental da obra para justificar sua razão de ser: “como a ópera-oratório só conserva um certo aspecto monumental das cenas, eu vos lembrarei, à medida que se desenrola, o drama de Édipo.”
Após o texto do narrador, sem qualquer introdução instrumental, e orquestra e coro masculino, remetendo aos coros ortodoxos russos, atacam, forte, com desespero: “A peste nos atinge.” Ao suplicar para Édipo que salve a cidade da peste, o tom muda para súplica, bruscamente, o forte torna-se piano. O padrão rítmico dos tímpanos, sempre presentes, muda. Fica evidente o ostinato, já apontado acima. Logo de cara já se manifesta uma importante característica de Stravinsky: o ritmo. Mais que isso, as constantes mudanças rítmicas -- “ritmo contra ritmo,” segundo Bernstein. Ecos do início de Otello, de Verdi, podem ser ouvidos.
Contrastando com o coro em estilo épico, monumental, Édipo tem canto sofisticadamente ornamentado, rígido. “Cidadãos, eu vos livrarei da peste. Eu, o ilustre Édipo (Ego clarissimus Oedipus) que vos ama.” Com estilo entre o barroco e o oriental, passando pelo romântico, a ornamentação, em maior ou menor intensidade, com saltos às vezes maiores, outras vezes mais discretos, é uma característica de sua linha, um verdadeiro desafio para os cantores. Essa ornamentação nos remete a algo transcendental e nobre e, também, a uma auto suficiência do todo poderoso que se diz “Ego clarissimus Oedipus.” Mas também há, na linha de Édipo, um tom religioso, de súplica. Algo bastante curioso a se notar nas diversas árias de Édipo é que há um padrão um tanto romântico que se repete. Leonard Bernstein demonstra, na última das Lectures Norton, que as notas e a appoggiaturas são as mesmas da linha de Amneris, no terceiro ato de Aida, na cena do julgamento, quando pede aos deuses que tenham piedade de Radamés: “Ah, pietà! Ah, lo salvate, Numi, pietà!” “Piedade e poder”, observa Bernsteim. Em Aida, a filha do Faraó implora por piedade. Aqui, Édipo, o rei, é quem implora.
O quadro que se tem -- e que foi de forma precisa transposto para a cena no São Pedro -- é, portanto, de um lado um povo em uma simplória atitude de heteronomia, confiando cegamente em seu rei, seu salvador, esperando que ele mande, resolva, e, de outro, Édipo, o rei, tentando exercer sua pretensa e falsa autonomia. Quando Édipo -- o tenor Paulo Mandarino -- começou a cantar, foi como se aí o ensaio tivesse começado de verdade. Acenderam-se luzes fluorescentes no fundo do palco, ofuscando a visão do coro, salientando o clarão da autoridade e da esperança que ter Édipo por perto trazia ao povo. Édipo portava na cabeça um ornamento, uma coroa, em forma de Sol, evidenciando sua brilho, seu poder. O povo -- o coro --, humildemente sentado.
Em uma ária de ópera quase convencional, cujo início lembra Mozart, neoclássica, despretensiosa, sem a sofisticação até então observada, Creonte (Homero Velho) traz de forma franca a mensagem do oráculo. Em estilo marcial, o canto dialoga com os sopros da orquestra, apresentando o início de uma batalha mas, também, a celebração de uma esperança. O sábio Tiresias, a seguir, muito bem interpretado por Gustavo Lassen, aluno da Academia, também ganha uma ária convencional, mas típica de baixo russo. Grave, revela: “O assassino do rei é um rei.”
É bastante conhecido o coro com o qual se encerra o primeiro ato, glorificando Jocasta, onde  Stravinsky evoca Händel, os coros de Verdi e a cena da coroação de Boris Godunov, de Mussorgsky. Foi feliz a escolha do maestro Luiz Fernando Malheiro de, após a fala do narrador, repetir o coro início do segundo ato. Essa retomada evitou a indesejável quebra entre a vibrante saudação a Jocasta e sua ária. Coro e orquestra responderam bastante bem ao desafio de mediar as lutas dos ritmos e dos acordes de Stravinsky.
“Em toda obra há um momento, uma ária, um motivo pelo qual esperamos particularmente, e nós acreditamos expressar mais que uma opinião subjetiva ao dizer que o coração dramático-musical de Oedipus Rex é o episódio D da ária  de Jocasta: ‘Oracula oracula, mentita sunt oracula.’” É o que afirma André Lischke na revista L’Avant Scène Opéra, n. 174, que trata de Oedipus Rex. A melodiosa e envolvente ária de Jocasta pode ser dividida em partes bastante distintas. e é à quarta parte, bem marcada ritmicamente, ao estilo da Quinta Sinfonia de Beethoven, que Lischke se refere. É quando ela, com um canto desafiante, que faz lembrar um ritual, afirma que os oráculos mentem. Com ária longa, complexa vocal e ritmicamente, que requer habilidade e agilidade por parte da intérprete, Jocasta foi vivida pela dama do canto lírico brasileiro, Eliane Coelho. Com postura e experiência, brindou-nos com uma Jocasta segura.    
No início do segundo ato, já feita a revelação de Tiresias, boa parte das luzes no fundo do palco foram apagadas. Foi alterado o caráter da iluminação, outros focos de luz surgiram -- com Caetano Vilela, a iluminação não é mero instrumento para que as imagens possam chegar a nossos olhos, mas parte da obra.
No fim da ópera, quando Édipo volta ao palco após a morte de Jocasta e após ter furado os próprios olhos, o coro já está de pé, em arco, segurando máscaras. Édipo já não possui a coroa, o símbolo de sua suposta luz. O “Ego clarissimus Oedipus” tornou-se “Miser Oedipus”. Édipo já não está mais imóvel, no alto, sobre a escada, mas andando, livre, no chão. O temido oráculo se cumpriu; Édipo, que desvendara o enigma da Esfinge mas não conseguiu desvendar sua própria identidade, agora sabia quem era. Infeliz, mas consciente da realidade, livre do medo e das ilusões, com os pés no chão.  
Antes de Oedipus Rex o São Pedro está apresentando O Homem dos Crocodilos, de Arrigo Barnabé, que tem como motivação O Homem do Lobos, de Freud. Com argumento e músicas interessantes, foi excelente a atuação do elenco bem como a montagem. Por opção pessoal, por total incompetência em assuntos psicanalíticos e devido à monumental importância da obra de Stravinsky, não faremos, aqui, maiores comentários a obra de Barnabé. Observamos, apenas, que também possui narrador -- narradores, aliás. Também aí se verifica o efeito do distanciamento. Recomendamos fortemente, àqueles que ainda não foram, que não percam essa oportunidade de conferir duas obras que têm muito a dizer.  
Fabiana Crepaldi

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