BACHIANAS BRASILEIRAS N. 5 : UMA VERSÃO BACHIANA. ARTIGO DE RICARDO ROCHA NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Caros amigos, dando sequência ao ‘post’ anterior, intitulado “POR QUE O BRASIL NÃO PRODUZIU UMA ESCOLA BRASILEIRA DE CANTO?” prometi nos comentários que postaria um dos tantos esforços objetivos que venho fazendo há mais de duas décadas, atrás do que poderia ser uma maneira brasileira de cantarmos o nosso cancioneiro na música de concerto. Não quero dizer que a encontrei, ou que a encontramos, mas que a acharemos se a buscarmos, em nossa oficina profissional, de maneira consciente e perseverante. A realidade já dá sinais de que pode ser mudada e o que importa agora é discutirmos o assunto com a urgência e a necessidade que o tema há muito impõe, porque deste movimento sairá uma das mais importantes contribuições para a configuração de nossa identidade cultural e da expressão comum do ‘pathos’ de nosso povo: a ESCOLA BRASILEIRA DE CANTO!
Lá se vão 12 anos, quando, em 2004, propus à Veruschka Mainhard, amiga e maravilhosa cantora e professora de dicção, uma leitura simplesmente bachiana da por tantas vezes massacrada "Bachianas Brasileiras n. 5", visto que eu não aguentava mais ouvir esta obra-prima cantada como se fosse uma ária e recitativo de ópera italiana, com a entrada na primeira nota já tremendo como vara verde de tanto vibrato, sem falar na letra da obra, que ninguém entendia nada.
Por tratar-se de uma ‘bachiana’, a proposta, para esta experiência, foi a de encontrar um caminho diferente que passasse pela emissão barroca que usamos em Bach e Händel, com a devida influência inglesa que este último recebeu na terra de Purcell, de maneira a fugir das conhecidas interpretações que vêm sendo feitas até os dias de hoje, desde Victoria de Los Angeles (sob a regência do próprio Villa-Lobos), Bidu Sayão e tantas outras, ainda que, sem dúvida, ótimas cantoras brasileiras e estrangeiras.
Lá se vão 12 anos, quando, em 2004, propus à Veruschka Mainhard, amiga e maravilhosa cantora e professora de dicção, uma leitura simplesmente bachiana da por tantas vezes massacrada "Bachianas Brasileiras n. 5", visto que eu não aguentava mais ouvir esta obra-prima cantada como se fosse uma ária e recitativo de ópera italiana, com a entrada na primeira nota já tremendo como vara verde de tanto vibrato, sem falar na letra da obra, que ninguém entendia nada.
Por tratar-se de uma ‘bachiana’, a proposta, para esta experiência, foi a de encontrar um caminho diferente que passasse pela emissão barroca que usamos em Bach e Händel, com a devida influência inglesa que este último recebeu na terra de Purcell, de maneira a fugir das conhecidas interpretações que vêm sendo feitas até os dias de hoje, desde Victoria de Los Angeles (sob a regência do próprio Villa-Lobos), Bidu Sayão e tantas outras, ainda que, sem dúvida, ótimas cantoras brasileiras e estrangeiras.
A estratégia começava pela retirada de todos os ‘vibrati’ (deixando apenas os naturais, de fim de nota), assim como os ‘glissandi’ e ‘portamenti’ (à exceção dos que foram escritos pelo compositor); seguia então pela não aceitação daquele vício repelente, quando está fora de seu contexto lírico e novecentista, que é o de ‘calar’ a afinação das notas no momento do seu ataque, alcançando só depois a sua frequência, ou seja, sua afinação. Aí, limpas as notas e seus intervalos, passamos a aplicar os "messa di voce" em todas as notas longas, a chamada "barriga barroca", a saber, efeito que as vozes, nos séculos 17 e 18 na Europa, talvez até de forma inadvertida, passaram a usar por influência da ‘performance’ dos instrumentos de cordas, os quais, por possuir apenas arcos pequenos, atacavam as cordas com o talão, gerando um ‘crescendo’ nas notas longas, logo alcançando um ponto culminante na dinâmica para contrair em ‘decrescendo’ natural, devido à rápida chegada à ponta do arco no seu movimento para baixo.
Ou seja, se nos séculos 16 e 17, quando a família de cordas nascida do violino desenvolveu-se e começou a ganhar técnica (as ‘viole da gamba’ nasceram antes), atuavam basicamente no suporte das vozes nos coros. Já no Barroco, com a chegada do virtuosismo e a produção, pela primeira vez na história, de mais música instrumental do que vocal, o que aconteceu foi que as vozes passaram a mimetizar os instrumentos, que ganharam desenvoltura e independência. (A citação desta influência leva-nos a lembrar a dos cantores de pop e rock no século 20, imitando as articulações de suas guitarras).
Realizadas estas mudanças, o foco então passou a ser a da pronúncia do nosso português nos dois poemas - a Ária e o Martelo, a qual, mais do que clara, precisaria ser atual e contemporânea. E, juntos na busca da melhor pronúncia, precisaríamos encarar também o âmago da questão, caso quiséssemos, de fato, encontrar empatia com o público maior, não afeito ao lírico: a questão era definir, estabelecer o CARÁTER da obra, nela traduzindo o jeito brasileiro de ser, no qual o vigor assertivo de Bach impor-se-ia nesta genial ‘Bachianas Brasileiras n.5’, fazendo frente ao depressivo discurso romântico, adoecido em sua impotência diante barreira invisível que seu espírito chamava de Destino.
Não foi apenas Villa-Lobos que descobriu que nossa alma é bachiana: o barroco, que significou a libertação das moderações impostas pelo racionalismo renascentista colocando a razão a serviço das paixões, representou e representa uma atitude que está na alma do brasileiro! Se olharmos atentamente o nosso Carnaval, vamos reconher este barroquismo na exuberância e na exaltação da parte e do detalhe, em detrimento do todo; na admissão do imperfeito, do torcido e do excessivo, por considerar humana a imperfeição.
O brasileiro é melancólico, mas também plástico e sensual, colocando sua esperança de salvação não num Deus incorpóreo, mas encarnado no mundo na forma de um Homem, apesar de ter sido o Criador da matéria e, por isso mesmo, passível de ser representado musical e plasticamente, já que é com este Deus que ele supera a sua melancolia, que ‘levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’.
Por tudo isso, pensei: a ária da Bachianas Brasileiras n. 5, com sua imaterial delicadeza, precisa ser cantada com este caráter imanente e plástico da religiosidade brasileira, ao passo que o Martelo... ora, este já representa, por si só, a ‘volta por cima’, descolada e matreira, de quem não se abate em transe!!!
Assim, partindo de todas estas reflexões, muitas já testadas e realizadas esteticamente numa época em que eu já possuía uma extensa prática na regência coral, buscamos, em trio de canto, violoncelo e piano, reproduzir conscientemente estes princípios com a nossa Orquestra de Violoncelos, da qual obtivemos um lindo resultado. Tenho ainda muito vivo, em minha lembrança, um dos ensaios que fizemos na casa do David Chew, nosso ‘spalla’ na Orquestra de Violoncelos; recordo com que leveza fomos conversando e marcando todas as articulações que deveriam ser feitas igualmente por todo o grupo de violoncelistas. Uma tarde amorosa e inesquecível.
Nove anos depois, em 2013, num concerto fechado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, eu remontaria, de forma mais amadurecida, esta mesma versão com Manuela Vieira, ex-aluna de Veruscka e igualmente amiga e maravilhosa cantora, vivendo atualmente na Alemanha.
Até hoje sou muito agradecido por ter podido trabalhar com amigos tão generosos e queridos, como a Veruschka, David, Manu e cada um dos nossos violoncelistas. Para mim a montagem desta gravação acabou sendo emblemática, não pelo que nela logramos alcançar ou não, mas por ter me mostrado que todos devemos, em nossa oficina profissional, buscar sempre resultados compatíveis com o que acreditamos. E prometo: na próxima, serei mais radical ainda... rs rs rs rsssssssss
Ou seja, se nos séculos 16 e 17, quando a família de cordas nascida do violino desenvolveu-se e começou a ganhar técnica (as ‘viole da gamba’ nasceram antes), atuavam basicamente no suporte das vozes nos coros. Já no Barroco, com a chegada do virtuosismo e a produção, pela primeira vez na história, de mais música instrumental do que vocal, o que aconteceu foi que as vozes passaram a mimetizar os instrumentos, que ganharam desenvoltura e independência. (A citação desta influência leva-nos a lembrar a dos cantores de pop e rock no século 20, imitando as articulações de suas guitarras).
Realizadas estas mudanças, o foco então passou a ser a da pronúncia do nosso português nos dois poemas - a Ária e o Martelo, a qual, mais do que clara, precisaria ser atual e contemporânea. E, juntos na busca da melhor pronúncia, precisaríamos encarar também o âmago da questão, caso quiséssemos, de fato, encontrar empatia com o público maior, não afeito ao lírico: a questão era definir, estabelecer o CARÁTER da obra, nela traduzindo o jeito brasileiro de ser, no qual o vigor assertivo de Bach impor-se-ia nesta genial ‘Bachianas Brasileiras n.5’, fazendo frente ao depressivo discurso romântico, adoecido em sua impotência diante barreira invisível que seu espírito chamava de Destino.
Não foi apenas Villa-Lobos que descobriu que nossa alma é bachiana: o barroco, que significou a libertação das moderações impostas pelo racionalismo renascentista colocando a razão a serviço das paixões, representou e representa uma atitude que está na alma do brasileiro! Se olharmos atentamente o nosso Carnaval, vamos reconher este barroquismo na exuberância e na exaltação da parte e do detalhe, em detrimento do todo; na admissão do imperfeito, do torcido e do excessivo, por considerar humana a imperfeição.
O brasileiro é melancólico, mas também plástico e sensual, colocando sua esperança de salvação não num Deus incorpóreo, mas encarnado no mundo na forma de um Homem, apesar de ter sido o Criador da matéria e, por isso mesmo, passível de ser representado musical e plasticamente, já que é com este Deus que ele supera a sua melancolia, que ‘levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’.
Por tudo isso, pensei: a ária da Bachianas Brasileiras n. 5, com sua imaterial delicadeza, precisa ser cantada com este caráter imanente e plástico da religiosidade brasileira, ao passo que o Martelo... ora, este já representa, por si só, a ‘volta por cima’, descolada e matreira, de quem não se abate em transe!!!
Assim, partindo de todas estas reflexões, muitas já testadas e realizadas esteticamente numa época em que eu já possuía uma extensa prática na regência coral, buscamos, em trio de canto, violoncelo e piano, reproduzir conscientemente estes princípios com a nossa Orquestra de Violoncelos, da qual obtivemos um lindo resultado. Tenho ainda muito vivo, em minha lembrança, um dos ensaios que fizemos na casa do David Chew, nosso ‘spalla’ na Orquestra de Violoncelos; recordo com que leveza fomos conversando e marcando todas as articulações que deveriam ser feitas igualmente por todo o grupo de violoncelistas. Uma tarde amorosa e inesquecível.
Nove anos depois, em 2013, num concerto fechado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, eu remontaria, de forma mais amadurecida, esta mesma versão com Manuela Vieira, ex-aluna de Veruscka e igualmente amiga e maravilhosa cantora, vivendo atualmente na Alemanha.
Até hoje sou muito agradecido por ter podido trabalhar com amigos tão generosos e queridos, como a Veruschka, David, Manu e cada um dos nossos violoncelistas. Para mim a montagem desta gravação acabou sendo emblemática, não pelo que nela logramos alcançar ou não, mas por ter me mostrado que todos devemos, em nossa oficina profissional, buscar sempre resultados compatíveis com o que acreditamos. E prometo: na próxima, serei mais radical ainda... rs rs rs rsssssssss
https://www.youtube.com/watch?v=prUJkZWwcaE
Um grande abraço,
Ricardo Rocha
Um grande abraço,
Ricardo Rocha
Foto Internet.
Escutei a gravação que a TVE do Rio fez com a Veruscka Mainhard referida acima e parabenizo o autor deste artigo e a cantora,realmente lograram o que se propuseram.Que sirva de exemplo aos outros intérpretes!O curioso é que se escutarmos gravações de cantores do início do século XX,concluímos que esse estilo ''dramático'' de cantar na verdade surgiu apenas depois da segunda guerra mundial.Escutem cantores anteriores à essa época,cito Nellie Melba cantando a Tosca como exemplo,mesmo Flagstad tinha uma voz enorme mas sempre com um timbre agradável,aos contrário de muitas sopranos que hoje cantam Wagner.O que dizer então de Luíza Tetrazini,com seus floreios vocais aparentemente sem esforço!Isaac Carneiro Victal.
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