KANDINSKY E O QUARTETO N. 2 DE SCHÖNBERG. ARTIGO DE FABIANA CREPALDI NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Kandinsky: Esboço para Composição II (1910)
Nessa semana em que a exposição sobre Kandinsky ainda está no CCBB e a Osesp traz a música de Schönberg para a Sala São Paulo, aproveitamos para fazer algumas reflexões sobre as artes desses dois revolucionários e, claro, a relação entre música e artes plásticas.
Logo no primeiro programa de sua série Young People’s Concert, Leonard Bernstein questiona o significado da música – What Does Music Mean? Após mostrar que a música não pode contar uma historia nem representar uma imagem ou um quadro, Bernstein conclui que a música trata apenas de música e que o significado da música está em como nos sentimos quando a ouvimos. “Nós não temos que saber um monte de coisa sobre acordes sustenidos e bemóis para entender música; se ela nos diz algo – não uma história ou quadro, mas um sentimento – se ela nos transforma interiormente, (...) então nós a entendemos.” Sobre esses sentimentos que a música nos traz, que podem ser os mais variados e para os quais não há limites, Bernstein continua: “Alguns desses sentimentos são tão especiais e profundos que não podem ser descritos com palavras (...) e é aí que a música é tão maravilhosa, porque a música os nomeia para nós, apenas com notas em vez de palavras. Esse é o modo como a música se move – não podemos jamais nos esquecer que música é movimento (...) – e esse movimento pode nos dizer mais sobre a forma como nos sentimos que um milhão de palavras”.
A música é a mais abstrata das artes e tentar atribuir um significado pictórico a uma peça puramente musical é, no mínimo, forçado. A música programática, da qual a Sinfonia Fantástica de Berlioz é um célebre exemplo, não pode, por si só, sem a divulgação do programa, narrar a saga a que se refere. A música, nesse caso, age como o acompanhamento de uma ópera para a qual há um libretto, mas não há cantores - e sem o libretto não há como se deduzir a narrativa. A música, como observou Bernstein, atinge o nosso emocional – ou, digamos, o nosso espírito.
De modo geral, em outros ramos da arte, como pintura e literatura, a situação é um tanto diferente. Buscamos aí o palpável, imagens ou narrativas com sentido, que interajam com o nosso intelecto. Também somos atingidos no emocional por uma paisagem ou imagem de pessoas, mas por emoções conhecidas, que sabemos nominar. Kandinsky, o pai da arte abstrata, inspirou-se na música para mudar o conceito de pintura, a forma como somos atingidos por um quadro. Como já indica logo no título de seu lúcido livro, Kandinsky expôs o espiritual na arte.
Wassily Kandinsky (1866-1944) nasceu em Moscou, em uma família de boa situação financeira. Desde criança manifestou inclinação artística, aprendeu piano, violoncelo, desenho e pintura. Atendendo desejo de seu pai, estudou direito e estava prestes a seguir carreira acadêmica quando foi arrebatado pelo quadro Les Meules (Os Montes de Feno, em tradução livre) de Monet, em 1895, e, três anos mais tarde, pela ópera Lohengrin, de Wagner. Em um primeiro momento o quadro de Monet causou estranheza a Kandinsky, que julgou um defeito da obra o fato de só ser possível identificar do que se tratava após a leitura do título na etiqueta. Depois Kandinsky se deu conta de que no quadro estava representada a sensação que o monte de feno havia causado no artista, não era mera retratação do objeto. Nas palavras de Kandinsky, “o objeto, como elemento indispensável do quadro, havia sido desconsiderado”.
Monet: Meules - Effet du Soir (1884)
Sobre Lohengrin, Kandinsky surpreendeu-se com sons musicais jamais ouvidos. Via mentalmente todas as suas cores, estavam diante de seus olhos “linhas frenéticas, quase enlouquecidas desenhavam-se...” Essa reação visual provocada pela música é conhecida como sinestesia. Determinadas pessoas associam cores a sons, palavras, nomes, etc. Para algum, o efeito é tão forte que faz com que de fato vejam as cores; para outros, as cores são meras associações mentais. Embora seja um fenômeno interessante e que talvez tenha contribuído com a criação artística de Kandinsky, a sinestesia é apenas uma manifestação da relação entre música e cores, entre frequências musicais e luminosas, é um dos efeitos, e não a causa dessa relação.
Kandinsky parte para Munique, onde estuda arte, associa-se a outros artistas e, em 1909, começa a abandonar a forma e dedicar-se à pintura abstrata. Deve-se observar que não houve uma mudança brusca no estilo de Kandinsky, mas gradativa. As formas bem definidas foram se confundindo, se rareando, até passarem a formas geométricas, linhas, cores, frequências, ritmos e, como em música, começou a chamar suas obras de composições, improvisações. Em seu livro Do Espiritual na Arte(1911), Kandinsky diz que essas três denominações representam diferentes fontes de inspiração: “(1) Uma impressão direta de natureza externa, expressa em forma artística pura. Isso eu chamo uma ‘Impressão’. (2) Uma expressão em grande parte interior, inconsciente, espontânea, a natureza não material. Isso eu chamo ‘Improvisação’. (3) Uma expressão de um sentimento interno formado lentamente, que se concretiza apenas após longa maturação. Isso eu chamo uma ‘Composição’”.
Ao contrário do que se tornou senso comum, na verdade não se sabe se Kandinsky tinha ou não alguma manifestação de sinestesia. Em seus ensaios e livros, ele usava uma analogia entre cores e sons, entre a linguagem musical e a artística, mas apenas aproximando as duas artes, apontando as correspondências entre elas, e não uma relação física, direta, de um som levar a uma cor ou vice versa, como ocorre na sinestesia. Na introdução de sua tradução para o livro Do Espiritual na Arte, Michael T. H. Sadler escreve que Kandinsky pintava música: "Ele quebrou a barreira entre música e pintura, e isolou a emoção pura que, por falta de nome melhor, chamamos de emoção artística... Presumivelmente as linhas e cores [na pintura de Kandinsky] têm o mesmo efeito que as harmonias e ritmos têm em musica como puramente musicais." Kandinsky defendia que a música era a mais não material das artes e o pintor "procura aplicar os métodos da música em sua própria arte." Para Kandinsky, era possível fazer a analogia entre o pintor e o pianista. "A cor é a tecla. O olhar é o martelo. A alma é o piano com suas muitas cordas. O artista é a mão que com determinação põe a alma vibrando através desta ou daquela nota."
Em janeiro de 1911, outra obra musical exerceu grande impacto sobre Kandinsky. Dessa vez foi o Quarteto de Cordas n. 2 de Arnold Schönberg (1874-1951), o marco zero do atonalismo, que o Quarteto Osesp apresentará hoje na Sala São Paulo e na terça-feira no Masp. Schönberg dedicou o quarteto à sua primeira esposa, Mathilde, que o havia trocado pelo pintor Richard Gerstil mas depois mudou de ideia e voltou para o marido. O quarteto, porém, foi composto durante a separação. No primeiro movimento, segundo James Keller em Chamber Music: A Listener's Guide, uma pista sobre o que se passava na mente de Schönberg na época está contida no motivo rítmico do primeiro tema. Segundo ele, presume-se que esse tema "transcreve o padrão que a esposa de Schönberg, Mathilde, sempre usava quando ela queria atrair a atração do compositor à distância." No segundo movimento há, à lá Mahler, a citação de uma canção alemã: "Ach, du lieber Augustin, alles ist hin" -- "Oh, minha querida Augustine, está tudo acabado agora" (https://www.youtube.com/watch?v=NJ5yELaRGs0). Longe de ser um quarteto tradicional, nos dois últimos movimentos há a participação de um soprano que canta dois poemas de Stefan Georg: Litanei (Litania) no terceiro movimento eEntrückung (Êxtase), no quarto. Desse modo, tem-se uma prece (litania) de uma pessoa angustiada que deseja fortemente se ver livre das amarras impostas pela paixão e, no movimento seguinte, um momento de êxtase, de libertação, uma experiência da alma. A frase inicial do poema dá o clima do último movimento: “Eu sinto ar de outros planetas”. E esse ar de outros planetas trouxe o sopro do atonalismo. Os três primeiros movimentos do quarteto são tonais -- na verdade, utilizam o chamado tonalismo estendido, típico do romantismo alemão. Já com o quarto movimento, Schönberg inaugurou o atonalismo. (https://www.youtube.com/watch?v=oaMFQfVq_rE)
Kandinsky sentiu forte conexão com essa peça. Fez dois esboços e um quadro (Impressão III, Concerto,acima) sob o impacto concerto. Do primeiro esboço ao quadro, as formas foram se tornando cada vez mais abstratas. Também escreveu a Schönberg, e com essa correspondência teve início uma colaboração artística e intelectual.
Esboços para Impressão III (Concerto)
Kandinsky: Impressão III: Concerto (1911)
A música, conforme discutimos acima, já é abstrata por natureza. O que Schönberg trouxe com o atonalismo foi, porém, em certo sentido, equivalente ao que Kandinsky introduziu à pintura com o abstracionismo: da mesma forma que Kandinsky libertou a pintura das amarras de imagens naturalistas, Schönberg libertou a música das amarras de uma melodia tonal. "A música de Schönberg -- escreveu Kandinsky -- nos leva a um novo reino, onde experiências musicais não são mais acústicas, mas puramente espirituais." Essa superação das regras ditadas pelo naturalismo, porém, não significa que música e pintura sejam criadas sem qualquer critério. Schönberg afirma em seu célebre tratadoHarmonia -- e Kandinsky o cita em seu livro -- "Toda combinação de notas, toda progressão é possível. E ... há certas condições que governam se escolho esta ou aquela dissonância." Segundo Lisa Florman, em seu excelente "Concerning the Spiritual -- and the Concrete -- in Kandinsky's Art", "o que precisava ser provado era que essas 'condições' não eram dadas naturalmente e nem arbritrárias -- que elas eram, antes, o resultado necessário do desenvolvimento interior da arte até esse ponto." Ainda segundo Florman, para Kandinsky a contradição, a dissonância, era a chave tanto para a música quanto para a pintura.
É bem verdade que a dissonância, a oposição, surgiu na obra de Kandinsky antes de ele ter entrado em contato com a arte e a teoria de Schönberg, em 1911. Prova disso é sua Composição II, destruído na II Guerra Mundial, mas cujo esboço, atualmente no Guggenheim, em Nova York, pode ser visto acima, na abertura deste texto. Segundo Florman, especialistas apontam a oposição (dissonância) no esboço de Composição II entre o lado esquerdo e o direito. Ainda, embora a paisagem do lado direito seja mais paradisíaca em o posição à apocalíptica do lado esquerdo, as cores do lado direito são mais fortes e dissonantes entre si que as do lado esquerdo. "Franz Marc -- afirma Florman --, que assistiu o recital de Schönberg da noite de janeiro [de 1911] com Kandinsky, foi rápido ao reconhecer as semelhanças entre a música atonal e a paleta de Composição II. Em uma carta... ele indagou: 'Você pode imaginar uma música na qual a tonalidade (isto é, conformidade com uma dada tonalidade) é inteiramente suspensa? Quando estava ouvindo essa música, eu estava constantemente pensando na grande Composição II de Kandinsky, que nega qualquer traço de tonalidade.'"
Na exposição sobre Kandinsky no Centro Cultural Banco do Brasil, não estão presentes nem Composição II, nem Impressão III (Concerto), mas lá está a alma de Kandinsky, o desenvolvimento de sua arte e parte da alma russa. Quando ainda morava e estudava na Rússia, Kandinsky interessou-se pela cultura popular, pela arte popular, pelos íconos russos (especialmente os de São Jorge) e colecionou várias obras de arte e objetos. É justamente um São Jorge que recebe o visitante da exposição. Logo nos primeiros quadros já é possível constatar como as cores dos ícones e objetos russos foram transportadas para os quadros de Kandinsky. Isso se torna ainda mais nítido quando nos confrontamos com objetos das ibas (casas de madeira russas). Não é à toa. A citação de Kandinsky, presente no guia impresso da exposição e no áudio guia, dá a dimensão do quanto a visita às isbás de uma vila do norte o influenciou: “Lembro-me muito vivamente como eu parei diante desse espetáculo inesperado. Mesa, bancos, um enorme e altivo forno, armários e prateleiras — tudo decorado com ornamentos multicoloridos espaçados. Estampas nas paredes: um Hércules apresentado simbolicamente, batalhas, uma canção transmitida pelas cores. O canto vermelho da casa, cheio de ícones a óleo e em estampas. Pois foi nessas isbás incomuns que eu me encontrei com aquela maravilha, que posteriormente tornou-se um dos elementos de meus trabalhos. Foi aí que eu aprendi a não olhar para os quadros de fora, à distância, mas me mover dentro do quadro, viver nele…” (grifo nosso).
Dentro da cultura popular russa, o xamanismo também deixou traços marcantes nas obras de Kandinsky. Na exposição, vemos lado a lado objetos xamânicos e seus ecos nas obras, linhas curvas, lanças, etc.
Para Kandinsky a cor branca é “o símbolo de um universo de onde todas as cores como atributos materiais desapareceram. Esse mundo está tão distante e alto que seus sons não chegam até nós. De lá só provém um grande silêncio (...). Mas esse silêncio não é um silêncio morto: está repleto de possibilidades. A cor branca é o silêncio que, de repente, pode ser compreendido." E é impregnados pelo silêncio repleto de possibilidades de "No Branco" (1920), último quadro da exposição, que, após termos passado pelas cores de Kandinsky e pela música de Schönberg, nos preparamos para voltar ao mundo real, às formas e ruídos da rua.
Fabiana crepaldi
Kandinsky: No Branco (1920)
Comentários
Postar um comentário