"AIDA" VOLTA AO RIO, MAS SE EU FOSSE O TENOR FICAVA COM AMNERIS. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Boa montagem encanta o público, mas soprano italiana decepciona.
Um tradicional triângulo amoroso, temperado com um ciúme doentio e em meio à guerra entre o poderoso Egito dos faraós e a Etiópia, é o mote de Aida, obra-prima em quatro atos e sete cenas de Giuseppe Verdi, sobre libreto de Antonio Ghislanzoni, com base num argumento original de François Auguste Mariette Bey. A antepenúltima ópera do grande mestre italiano acaba de abrir a temporada lírica 2013 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro – aquela que, ao final do ano, todos esperamos poder realmente chamar de temporada.
A trama da ópera pode ser consultada na matéria de divulgação da produção, publicada aqui no www.movimento.com. Creio ser mais interessante fazer agora um resumo da gênese da obra, que nem todos conhecem.
A encomenda e o libreto
Em 1869, Verdi foi sondado pela primeira vez, a mando do quediva (uma espécie de vice-rei) do Egito, Ismail Pachá, sobre a possibilidade de compor uma ópera para o Cairo, cujo drama se passasse no Egito antigo. Mantendo um de seus hábitos peculiares, Verdi relutou bastante até se decidir a aceitar a encomenda – o que, aliás, só aconteceu depois que ele soube que, se continuasse relutante, a composição da ópera poderia ser oferecida a Gounod, ou até mesmo a Wagner.
Um famoso egiptólogo francês, François Auguste Mariette (que depois recebeu o título honorífico de Bey, o qual anexou a seu sobrenome, como era o costume da época), foi quem sugeriu o tema da ópera, escrevendo o libreto em prosa. Mariette começara sua carreira como funcionário do Departamento de Antiguidades Egípcias do Louvre e depois chefiou importantes escavações no país africano. Essa versão em prosa, depois de adaptada pelo próprio Verdi e por Camille Du Locle (libretista francês que colaborara com o compositor em Don Carlos e estava fazendo a intermediação entre Verdi e Meriette), foi confiada ao poeta Antonio Ghislanzoni, que a versificou sob a estreita orientação de Verdi.
Vale dizer que, como era seu costume, Verdi infernizou Ghislanzoni com uma série de exigências sobre o libreto, chegando a dar incontáveis e tão detalhadas instruções, todas seguidas à risca pelo ajuizado libretista, que seria incorreto não atribuir o libreto de Aida também ao próprio compositor. Nos libretos de suas óperas, Verdi buscava sempre o que ele chamava de parola scenica, que pode ser definida como uma frase de grande efeito dramático.
Aida está repleta dessas frases por todos os lados, dentre as quais destaco, em tradução livre: “Você não é minha filha, é a escrava dos faraós”, proferida por Amonasro no terceiro ato, quando ele tortura psicologicamente sua própria filha; “Nem de sangue nunca estão saciados, e se dizem ministros do céu”, com que Amneris se refere aos sacerdotes no quarto ato; e, para não me alongar muito, “Ímpia raça, (que uma) maldição (recaia) sobre vocês”, com que a princesa do Egito exacerba seu ódio aos sacerdotes por terem condenado Radamés a ser enterrado vivo.
Tanta influência Verdi exerceu sobre o libreto, que este lhe proporcionou trabalhar sobre alguns temas que lhe eram muito caros, dentre os quais o nacionalismo e, sobretudo, a oposição entre os interesses individuais (aqueles de Aida, Radamés e Amneris) e os coletivos (aqui representados pelos sacerdotes que buscam manter o statu quo; pelo rei etíope que procura defender seu povo; e, especialmente, pela representatividade máxima da coletividade, expressa pelo coro nesta magnífica ópera coral). Além disso, estão lá o magnífico dueto entre pai e filha, que aparece várias vezes nas óperas de Verdi, e uma crítica ferrenha aos sacerdotes (raça realmente desprezada pelo compositor, seja ela de que religião fosse).
A história de Aida, como todos sabemos, se passa no Egito dos faraós, uma sociedade extremamente patriarcal e dominada por sacerdotes implacáveis. Tal característica era odiosa para o maior compositor da Itália, que passou a vida declarando-se ateu. Para Verdi, sacerdotes não passavam de hipócritas, que viviam proferindo em público opiniões negativas a respeito daquilo que eles próprios faziam às escondidas. Não podemos generalizar, claro, mas esse lixo humano que são os pedófilos de hoje, muitos dos quais vestindo batina ou escondidos atrás de falsas atitudes religiosas, só dão razão ao grande mestre.
A música
Falar sobre a música de Aida levaria boas horas de dissertação. Vou me restringir então a algumas pequenas observações. Verdi musicou o libreto de Ghislanzoni aproximadamente entre julho de 1870 e fevereiro de 1871. Entre o ponto final da partitura e a primeira apresentação europeia no Teatro alla Scala, em fevereiro de 1872, passando pela estreia mundial de 24 de dezembro de 1871, no Cairo (adiada em virtude da guerra franco-prussiana, uma vez que os cenários e figurinos estavam sendo confeccionados em Paris), o compositor empreendeu algumas mudanças na obra, dentre as quais se destaca a inclusão da segunda ária da protagonista, O patria mia.
Nesta época, aos 57 anos, e completamente senhor de sua arte, Giuseppe Verdi compôs aquela que, até ali, era sem dúvida sua obra máxima – depois de um longo silêncio, o compositor conseguiria se superar com Otello e Falstaff. Na música de Aida, destacam-se, nos dois primeiros atos, o sublime prelúdio, desenvolvido basicamente sobre dois temas (aquele de Aida e outro atribuído aos sacerdotes); a apaixonante romanza de Radamés, Celeste Aida, cantada logo no começo da representação; a primeira ária da protagonista, Ritorna vincitor; a delicada linha melódica da sacerdotisa, acompanhada pela harpa; as grandes cenas de conjunto, dentre as quais a chamada cena triunfal do segundo ato é insuperável dentre todas as cenas do tipo em todas as óperas, por sua beleza musical e sua força e eficácia dramática.
O terceiro ato é um dos atos mais perfeitos, se não o melhor, de toda a história da ópera. Ambientado às margens do Nilo, começa com uma atmosfera exótica, expressa especialmente pelo solo de flauta. Depois da segunda ária de Aida, vem o terrível dueto entre a protagonista e seu pai, de enorme efeito dramático. Outro dueto se segue, agora entre Aida e Radamés, pontuado por algumas das divinas melodias verdianas. A cena que encerra o ato é bem ao estilo de Verdi, e lembra a conclusão de O Trovador: em poucos compassos, a situação dramática é resolvida, com Radamés se entregando a Ramfis.
A primeira cena do quarto ato é dominada por Amneris, e a mezzosoprano tem o seu maior momento na ópera. Vale dizer que a princesa egípcia era personagem tão cara ao compositor quanto a protagonista. Nesta cena, habilmente musicada pelo grande mestre, vemos uma mulher mais humana, e percebemos o quanto ela realmente ama Radamés, mesmo que o ciúme ainda a corroa. A escrita de Verdi para a solista é bastante precisa e sofisticada, e, na voz de uma intérprete à altura, pode levar o público à loucura – o que, diga-se, aconteceu no Municipal, como se verá mais à frente. Na cena final da ópera, Verdi incluiu um dueto doce, um “adeus à vida”, de atmosfera “vaporosa”, como ele mesmo se referiu à peça (O terra, addio). A maneira como o compositor conjuga este dueto com a litania dos sacerdotes é de uma beleza sem igual.
A montagem do Municipal
A produção assinada por Iacov Hillel para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em cartaz até 1° de maio, é no geral de muito bom nível, e poderia certamente ser guardada para posteriores remontagens. No que tange à direção de cena propriamente dita, Hillel trabalha bem a movimentação e a atuação dos solistas, mas, em alguns momentos, não demonstra a mesma preocupação em relação ao coro. Talvez por isso fique a sensação de que a sua cena triunfal seja um tanto “parada”, com movimentação apenas numa espécie de corredor central.
Hillel faz algumas opções não convencionais, como posicionar a Sacerdotisa no palco durante a segunda cena do primeiro ato, quando o libreto determina sua participação dos bastidores. O mesmo ocorre com o julgamento de Radamés na primeira cena do quarto ato, realizado no palco, enquanto o libreto prevê que o mesmo se dê numa câmara subterrânea, fora da visão do público. A pequena ousadia com a Sacerdotisa funciona muito bem, mas a do julgamento nem tanto. Na verdade, o que acaba prejudicando esta cena é a movimentação de Radamés, que, sem muito sentido, só se volta aos sacerdotes nas três vezes em que seu nome é chamado, depois girando o corpo novamente para frente. Esse “vira-vira” parece muito forçado e de baixo apelo dramático.
O cenário único de Hélio Eichbauer em nada lembra uma grande produção – coisa que parece não ter mais vez nos teatros brasileiros. Por outro lado, é preciso reconhecer que a cenografia é bastante funcional e, auxiliada pela luz sensível do próprio Iacov Hillel e pelas belas projeções de Laís Rodrigues, causa impressão satisfatória. Muito bonitos são os efeitos referentes às águas do Nilo e à areia. Funciona muito bem também a cena derradeira, com a utilização de um elevador do palco.
Os figurinos do acervo do Palácio das Artes, criados por Raul Belém Machado, com alguns acréscimos do acervo do próprio Municipal, são belos e adequados. Machado faleceu em setembro de 2012, uma lástima para os amantes das artes. Já as coreografias de João Wlamir se mostram irregulares. São adequadas a das sacerdotisas (1° ato, 2ª cena) e a das bailarinas da cena triunfal. Nesta mesma cena, bem menos satisfatória é a coreografia dos homens, assim como inadequada é aquela das crianças (2° ato, 1ª cena).
Na estreia de 20 de abril, foi burocrática a participação dos bailarinos da Cia. Jovem de Ballet do Rio de Janeiro e da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa. Espera-se que, com o concurso que está por vir, o Ballet do Theatro Municipal possa participar das óperas que demandem bailarinos, sem a necessidade de terceirização.
A Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal esteve bem, sob a condução de Isaac Karabtchevsky. O maestro empreendeu, em vários momentos, uma rica leitura dinâmica, fazendo-nos perceber detalhes da partitura aos quais geralmente não damos atenção nas gravações. Destaque para os solos de flauta e oboé no terceiro ato. Este na introdução da ária O patria mia, e aquele na curtíssima introdução orquestral do ato. Também participou da produção a Banda Sinfônica do Corpo de Fuzileiros Navais. Creio que os músicos que tocaram a marcha triunfal no palco sejam da banda. Houve uma pequena falha perceptível em um dos trompetes em si.
O Coro do Theatro Municipal, preparado por Jésus Figueiredo, apresentou uma belíssima performance vocal, com destaque para as vozes graves masculinas, bastante expressivas. Cenicamente, seu desempenho foi burocrático. Era de se esperar mais numa ópera coral. Dois integrantes do Coro foram solistas com participações luxuosas: a soprano Lúcia Bianchini foi uma Sacerdotisa delicada e bastante musical. Já o tenor Ricardo Tuttmann, muito convincente em sua interpretação, literalmente roubou a cena como Mensageiro na sua curta intervenção.
Dentre os principais solistas, o baixo Carlos Eduardo Marcos esteve excelente como o Rei do Egito (faraó), com uma voz bastante segura e sempre bem projetada. Outro baixo, Sávio Sperândio foi convencional como Ramfis, não chegando a brilhar como em outras oportunidades.
Já o baixo-barítono Lício Bruno não repetiu vocalmente o brilho de tantas outras performances. Na pele de Amonasro, o solista apresentou, como de costume, excelente interpretação cênica, e ainda tirou o fôlego da plateia no ápice de seu dueto com Aida no terceiro ato, quando profere os já citados versos “Você não é minha filha, é a escrava dos faraós”. Mas no geral, sua performance vocal ficou devendo e não contou com o brilho de outras oportunidades. Certamente, para isso contribuiu seu estado de saúde. Um amigo em comum me informou que o artista estava adoentado (acometido por uma gripe ou virose, provavelmente). Fato que não altera o resultado de seu desempenho, mas valoriza seu profissionalismo.
A maior decepção da noite foi a personagem-título, Aida, que esteve a cargo da soprano italiana Fiorenza Cedolins. Seu único momento que me agradou foi a ária do primeiro ato, Ritorna vincitor. No resto da noite, foi assaz burocrática, com voz pequena que em momento algum furou o coro na cena triunfal. Desastre absoluto foi sua ária do terceiro ato, O patria mia, na qual a solista, ao tentar emitir em pianíssimo o famoso dó, não emitiu som algum (se emitiu, deve ter sido um fiozinho de voz absolutamente inaudível para quem estava na plateia), passando uma bela vergonha no Municipal.
O tenor, também italiano, Rubens Pellizari, começou muito bem, oferecendo uma razoável Celeste Aida, mas, além de pouco convincente cenicamente, sua performance decaiu ao longo da récita. O já citado movimento de “vira-vira” na cena do julgamento parecia coisa de teatro amador. Sua voz pareceu-me ter predicados, como por exemplo uma boa projeção, mas certamente ainda necessita de aprimoramento e melhor orientação. Talvez rendesse melhor em outra ópera.
A melhor voz da noite foi a da mezzosoprano russa Anna Smirnova, que também não foi perfeita todo o tempo. Smirnova já havia feito uma excelente Amneris no Rio de Janeiro em 2007, em forma de concerto e sob a regência de Lorin Maazel. Em 2010, na reinauguração do Municipal, fora uma magnífica Azucena, em O Trovador. Desta vez, sua performance foi menos arrebatadora, pois a solista começou devagar, mas cresceu bastante ao longo da récita, e chegou ao quarto ato, o grande ato de Amneris, como deveria, levando o público ao delírio.
Desde seu dueto com Radamés neste ato, passando pelo pequeno solo (Ohimè!… Morir mi sento!) e por sua participação durante o julgamento de seu amado, até o final da cena com as invectivas contra os sacerdotes, Smirnova exibiu grandes dotes dramáticos, domínio de palco, excelente projeção, agudos poderosos e um belo timbre de mezzosoprano. Antes, já furara o coro, como manda o manual, na cena triunfal do segundo ato. Junte-se uma excelente interpretação cênica durante toda a récita, e o resultado foi uma performance de alto nível, ainda que, desta vez, não tenha sido notável como nas duas ocasiões supracitadas.
No final, esta artista que já cantou Amneris nos principais palcos do mundo (Scala, Royal Opera, Metropolitan, Ópera Alemã, Ópera de Viena) foi merecidamente ovacionada pelo público. No mês passado, Smirnova cantou a Princesa Eboli, de Don Carlos, no Metropolitan, ao lado de Sondra Radvanovsky e Dmitri Hvorostovsky, e regida por Lorin Maazel. Ela também já está escalada para Azucena, de O Trovador, na Arena de Verona (em julho), também ao lado de Hvorostovsky; e para Abigaille, de Nabucco, na Ópera de Viena (maio de 2014), ocasião esta em que cantará ao lado de Plácido Domingo.
É por essas e outras que uma amiga, conhecedora de ópera e de vozes, durante a rápida troca de cena do último ato, cochichou brincando no meu ouvido, apontando para Smirnova: “Se eu fosse o tenor, ficava com aquela ali”. Daí, o título espirituoso desta resenha.
Apesar de alguns senões, acima relatados, sobretudo a atuação medíocre da Cedolins, esta Aida vale a visita, assim como a Smirnova vale o ingresso.
Falando de Ópera
Muito boa a iniciativa do Municipal de promover uma palestra antes de cada récita de suas óperas nesta temporada. Começa sempre uma hora e meia antes das récitas. Quem fala sobre Aida até o dia 1° de maio é Sílvio Viegas. Estive lá no sábado, e o maestro conduziu a palestra demonstrando grandes conhecimento e simpatia. Excelente pedida para conhecedores e, especialmente, iniciantes.
Ingressos à venda
Outra iniciativa inédita: desde março o Theatro Municipal do Rio está vendendo ingressos para todos os seus espetáculos próprios já anunciados (até julho). Medida que indica um grau pelo menos um pouco maior de organização dentro da instituição e também parece assegurar que não haverá cancelamento de nenhum espetáculo anunciado. Até o ano passado, os ingressos quase sempre começavam a ser vendidos poucos dias antes de cada produção. Espero para breve o anúncio do restante da temporada, bem como a imediata disponibilização dos respectivos ingressos em bilheteria.
Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/
Um tradicional triângulo amoroso, temperado com um ciúme doentio e em meio à guerra entre o poderoso Egito dos faraós e a Etiópia, é o mote de Aida, obra-prima em quatro atos e sete cenas de Giuseppe Verdi, sobre libreto de Antonio Ghislanzoni, com base num argumento original de François Auguste Mariette Bey. A antepenúltima ópera do grande mestre italiano acaba de abrir a temporada lírica 2013 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro – aquela que, ao final do ano, todos esperamos poder realmente chamar de temporada.
A trama da ópera pode ser consultada na matéria de divulgação da produção, publicada aqui no www.movimento.com. Creio ser mais interessante fazer agora um resumo da gênese da obra, que nem todos conhecem.
A encomenda e o libreto
Em 1869, Verdi foi sondado pela primeira vez, a mando do quediva (uma espécie de vice-rei) do Egito, Ismail Pachá, sobre a possibilidade de compor uma ópera para o Cairo, cujo drama se passasse no Egito antigo. Mantendo um de seus hábitos peculiares, Verdi relutou bastante até se decidir a aceitar a encomenda – o que, aliás, só aconteceu depois que ele soube que, se continuasse relutante, a composição da ópera poderia ser oferecida a Gounod, ou até mesmo a Wagner.
Um famoso egiptólogo francês, François Auguste Mariette (que depois recebeu o título honorífico de Bey, o qual anexou a seu sobrenome, como era o costume da época), foi quem sugeriu o tema da ópera, escrevendo o libreto em prosa. Mariette começara sua carreira como funcionário do Departamento de Antiguidades Egípcias do Louvre e depois chefiou importantes escavações no país africano. Essa versão em prosa, depois de adaptada pelo próprio Verdi e por Camille Du Locle (libretista francês que colaborara com o compositor em Don Carlos e estava fazendo a intermediação entre Verdi e Meriette), foi confiada ao poeta Antonio Ghislanzoni, que a versificou sob a estreita orientação de Verdi.
Vale dizer que, como era seu costume, Verdi infernizou Ghislanzoni com uma série de exigências sobre o libreto, chegando a dar incontáveis e tão detalhadas instruções, todas seguidas à risca pelo ajuizado libretista, que seria incorreto não atribuir o libreto de Aida também ao próprio compositor. Nos libretos de suas óperas, Verdi buscava sempre o que ele chamava de parola scenica, que pode ser definida como uma frase de grande efeito dramático.
Aida está repleta dessas frases por todos os lados, dentre as quais destaco, em tradução livre: “Você não é minha filha, é a escrava dos faraós”, proferida por Amonasro no terceiro ato, quando ele tortura psicologicamente sua própria filha; “Nem de sangue nunca estão saciados, e se dizem ministros do céu”, com que Amneris se refere aos sacerdotes no quarto ato; e, para não me alongar muito, “Ímpia raça, (que uma) maldição (recaia) sobre vocês”, com que a princesa do Egito exacerba seu ódio aos sacerdotes por terem condenado Radamés a ser enterrado vivo.
Tanta influência Verdi exerceu sobre o libreto, que este lhe proporcionou trabalhar sobre alguns temas que lhe eram muito caros, dentre os quais o nacionalismo e, sobretudo, a oposição entre os interesses individuais (aqueles de Aida, Radamés e Amneris) e os coletivos (aqui representados pelos sacerdotes que buscam manter o statu quo; pelo rei etíope que procura defender seu povo; e, especialmente, pela representatividade máxima da coletividade, expressa pelo coro nesta magnífica ópera coral). Além disso, estão lá o magnífico dueto entre pai e filha, que aparece várias vezes nas óperas de Verdi, e uma crítica ferrenha aos sacerdotes (raça realmente desprezada pelo compositor, seja ela de que religião fosse).
A história de Aida, como todos sabemos, se passa no Egito dos faraós, uma sociedade extremamente patriarcal e dominada por sacerdotes implacáveis. Tal característica era odiosa para o maior compositor da Itália, que passou a vida declarando-se ateu. Para Verdi, sacerdotes não passavam de hipócritas, que viviam proferindo em público opiniões negativas a respeito daquilo que eles próprios faziam às escondidas. Não podemos generalizar, claro, mas esse lixo humano que são os pedófilos de hoje, muitos dos quais vestindo batina ou escondidos atrás de falsas atitudes religiosas, só dão razão ao grande mestre.
A música
Falar sobre a música de Aida levaria boas horas de dissertação. Vou me restringir então a algumas pequenas observações. Verdi musicou o libreto de Ghislanzoni aproximadamente entre julho de 1870 e fevereiro de 1871. Entre o ponto final da partitura e a primeira apresentação europeia no Teatro alla Scala, em fevereiro de 1872, passando pela estreia mundial de 24 de dezembro de 1871, no Cairo (adiada em virtude da guerra franco-prussiana, uma vez que os cenários e figurinos estavam sendo confeccionados em Paris), o compositor empreendeu algumas mudanças na obra, dentre as quais se destaca a inclusão da segunda ária da protagonista, O patria mia.
Nesta época, aos 57 anos, e completamente senhor de sua arte, Giuseppe Verdi compôs aquela que, até ali, era sem dúvida sua obra máxima – depois de um longo silêncio, o compositor conseguiria se superar com Otello e Falstaff. Na música de Aida, destacam-se, nos dois primeiros atos, o sublime prelúdio, desenvolvido basicamente sobre dois temas (aquele de Aida e outro atribuído aos sacerdotes); a apaixonante romanza de Radamés, Celeste Aida, cantada logo no começo da representação; a primeira ária da protagonista, Ritorna vincitor; a delicada linha melódica da sacerdotisa, acompanhada pela harpa; as grandes cenas de conjunto, dentre as quais a chamada cena triunfal do segundo ato é insuperável dentre todas as cenas do tipo em todas as óperas, por sua beleza musical e sua força e eficácia dramática.
O terceiro ato é um dos atos mais perfeitos, se não o melhor, de toda a história da ópera. Ambientado às margens do Nilo, começa com uma atmosfera exótica, expressa especialmente pelo solo de flauta. Depois da segunda ária de Aida, vem o terrível dueto entre a protagonista e seu pai, de enorme efeito dramático. Outro dueto se segue, agora entre Aida e Radamés, pontuado por algumas das divinas melodias verdianas. A cena que encerra o ato é bem ao estilo de Verdi, e lembra a conclusão de O Trovador: em poucos compassos, a situação dramática é resolvida, com Radamés se entregando a Ramfis.
A primeira cena do quarto ato é dominada por Amneris, e a mezzosoprano tem o seu maior momento na ópera. Vale dizer que a princesa egípcia era personagem tão cara ao compositor quanto a protagonista. Nesta cena, habilmente musicada pelo grande mestre, vemos uma mulher mais humana, e percebemos o quanto ela realmente ama Radamés, mesmo que o ciúme ainda a corroa. A escrita de Verdi para a solista é bastante precisa e sofisticada, e, na voz de uma intérprete à altura, pode levar o público à loucura – o que, diga-se, aconteceu no Municipal, como se verá mais à frente. Na cena final da ópera, Verdi incluiu um dueto doce, um “adeus à vida”, de atmosfera “vaporosa”, como ele mesmo se referiu à peça (O terra, addio). A maneira como o compositor conjuga este dueto com a litania dos sacerdotes é de uma beleza sem igual.
A montagem do Municipal
A produção assinada por Iacov Hillel para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em cartaz até 1° de maio, é no geral de muito bom nível, e poderia certamente ser guardada para posteriores remontagens. No que tange à direção de cena propriamente dita, Hillel trabalha bem a movimentação e a atuação dos solistas, mas, em alguns momentos, não demonstra a mesma preocupação em relação ao coro. Talvez por isso fique a sensação de que a sua cena triunfal seja um tanto “parada”, com movimentação apenas numa espécie de corredor central.
Hillel faz algumas opções não convencionais, como posicionar a Sacerdotisa no palco durante a segunda cena do primeiro ato, quando o libreto determina sua participação dos bastidores. O mesmo ocorre com o julgamento de Radamés na primeira cena do quarto ato, realizado no palco, enquanto o libreto prevê que o mesmo se dê numa câmara subterrânea, fora da visão do público. A pequena ousadia com a Sacerdotisa funciona muito bem, mas a do julgamento nem tanto. Na verdade, o que acaba prejudicando esta cena é a movimentação de Radamés, que, sem muito sentido, só se volta aos sacerdotes nas três vezes em que seu nome é chamado, depois girando o corpo novamente para frente. Esse “vira-vira” parece muito forçado e de baixo apelo dramático.
O cenário único de Hélio Eichbauer em nada lembra uma grande produção – coisa que parece não ter mais vez nos teatros brasileiros. Por outro lado, é preciso reconhecer que a cenografia é bastante funcional e, auxiliada pela luz sensível do próprio Iacov Hillel e pelas belas projeções de Laís Rodrigues, causa impressão satisfatória. Muito bonitos são os efeitos referentes às águas do Nilo e à areia. Funciona muito bem também a cena derradeira, com a utilização de um elevador do palco.
Os figurinos do acervo do Palácio das Artes, criados por Raul Belém Machado, com alguns acréscimos do acervo do próprio Municipal, são belos e adequados. Machado faleceu em setembro de 2012, uma lástima para os amantes das artes. Já as coreografias de João Wlamir se mostram irregulares. São adequadas a das sacerdotisas (1° ato, 2ª cena) e a das bailarinas da cena triunfal. Nesta mesma cena, bem menos satisfatória é a coreografia dos homens, assim como inadequada é aquela das crianças (2° ato, 1ª cena).
Na estreia de 20 de abril, foi burocrática a participação dos bailarinos da Cia. Jovem de Ballet do Rio de Janeiro e da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa. Espera-se que, com o concurso que está por vir, o Ballet do Theatro Municipal possa participar das óperas que demandem bailarinos, sem a necessidade de terceirização.
A Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal esteve bem, sob a condução de Isaac Karabtchevsky. O maestro empreendeu, em vários momentos, uma rica leitura dinâmica, fazendo-nos perceber detalhes da partitura aos quais geralmente não damos atenção nas gravações. Destaque para os solos de flauta e oboé no terceiro ato. Este na introdução da ária O patria mia, e aquele na curtíssima introdução orquestral do ato. Também participou da produção a Banda Sinfônica do Corpo de Fuzileiros Navais. Creio que os músicos que tocaram a marcha triunfal no palco sejam da banda. Houve uma pequena falha perceptível em um dos trompetes em si.
O Coro do Theatro Municipal, preparado por Jésus Figueiredo, apresentou uma belíssima performance vocal, com destaque para as vozes graves masculinas, bastante expressivas. Cenicamente, seu desempenho foi burocrático. Era de se esperar mais numa ópera coral. Dois integrantes do Coro foram solistas com participações luxuosas: a soprano Lúcia Bianchini foi uma Sacerdotisa delicada e bastante musical. Já o tenor Ricardo Tuttmann, muito convincente em sua interpretação, literalmente roubou a cena como Mensageiro na sua curta intervenção.
Dentre os principais solistas, o baixo Carlos Eduardo Marcos esteve excelente como o Rei do Egito (faraó), com uma voz bastante segura e sempre bem projetada. Outro baixo, Sávio Sperândio foi convencional como Ramfis, não chegando a brilhar como em outras oportunidades.
Já o baixo-barítono Lício Bruno não repetiu vocalmente o brilho de tantas outras performances. Na pele de Amonasro, o solista apresentou, como de costume, excelente interpretação cênica, e ainda tirou o fôlego da plateia no ápice de seu dueto com Aida no terceiro ato, quando profere os já citados versos “Você não é minha filha, é a escrava dos faraós”. Mas no geral, sua performance vocal ficou devendo e não contou com o brilho de outras oportunidades. Certamente, para isso contribuiu seu estado de saúde. Um amigo em comum me informou que o artista estava adoentado (acometido por uma gripe ou virose, provavelmente). Fato que não altera o resultado de seu desempenho, mas valoriza seu profissionalismo.
A maior decepção da noite foi a personagem-título, Aida, que esteve a cargo da soprano italiana Fiorenza Cedolins. Seu único momento que me agradou foi a ária do primeiro ato, Ritorna vincitor. No resto da noite, foi assaz burocrática, com voz pequena que em momento algum furou o coro na cena triunfal. Desastre absoluto foi sua ária do terceiro ato, O patria mia, na qual a solista, ao tentar emitir em pianíssimo o famoso dó, não emitiu som algum (se emitiu, deve ter sido um fiozinho de voz absolutamente inaudível para quem estava na plateia), passando uma bela vergonha no Municipal.
O tenor, também italiano, Rubens Pellizari, começou muito bem, oferecendo uma razoável Celeste Aida, mas, além de pouco convincente cenicamente, sua performance decaiu ao longo da récita. O já citado movimento de “vira-vira” na cena do julgamento parecia coisa de teatro amador. Sua voz pareceu-me ter predicados, como por exemplo uma boa projeção, mas certamente ainda necessita de aprimoramento e melhor orientação. Talvez rendesse melhor em outra ópera.
A melhor voz da noite foi a da mezzosoprano russa Anna Smirnova, que também não foi perfeita todo o tempo. Smirnova já havia feito uma excelente Amneris no Rio de Janeiro em 2007, em forma de concerto e sob a regência de Lorin Maazel. Em 2010, na reinauguração do Municipal, fora uma magnífica Azucena, em O Trovador. Desta vez, sua performance foi menos arrebatadora, pois a solista começou devagar, mas cresceu bastante ao longo da récita, e chegou ao quarto ato, o grande ato de Amneris, como deveria, levando o público ao delírio.
Desde seu dueto com Radamés neste ato, passando pelo pequeno solo (Ohimè!… Morir mi sento!) e por sua participação durante o julgamento de seu amado, até o final da cena com as invectivas contra os sacerdotes, Smirnova exibiu grandes dotes dramáticos, domínio de palco, excelente projeção, agudos poderosos e um belo timbre de mezzosoprano. Antes, já furara o coro, como manda o manual, na cena triunfal do segundo ato. Junte-se uma excelente interpretação cênica durante toda a récita, e o resultado foi uma performance de alto nível, ainda que, desta vez, não tenha sido notável como nas duas ocasiões supracitadas.
No final, esta artista que já cantou Amneris nos principais palcos do mundo (Scala, Royal Opera, Metropolitan, Ópera Alemã, Ópera de Viena) foi merecidamente ovacionada pelo público. No mês passado, Smirnova cantou a Princesa Eboli, de Don Carlos, no Metropolitan, ao lado de Sondra Radvanovsky e Dmitri Hvorostovsky, e regida por Lorin Maazel. Ela também já está escalada para Azucena, de O Trovador, na Arena de Verona (em julho), também ao lado de Hvorostovsky; e para Abigaille, de Nabucco, na Ópera de Viena (maio de 2014), ocasião esta em que cantará ao lado de Plácido Domingo.
É por essas e outras que uma amiga, conhecedora de ópera e de vozes, durante a rápida troca de cena do último ato, cochichou brincando no meu ouvido, apontando para Smirnova: “Se eu fosse o tenor, ficava com aquela ali”. Daí, o título espirituoso desta resenha.
Apesar de alguns senões, acima relatados, sobretudo a atuação medíocre da Cedolins, esta Aida vale a visita, assim como a Smirnova vale o ingresso.
Falando de Ópera
Muito boa a iniciativa do Municipal de promover uma palestra antes de cada récita de suas óperas nesta temporada. Começa sempre uma hora e meia antes das récitas. Quem fala sobre Aida até o dia 1° de maio é Sílvio Viegas. Estive lá no sábado, e o maestro conduziu a palestra demonstrando grandes conhecimento e simpatia. Excelente pedida para conhecedores e, especialmente, iniciantes.
Ingressos à venda
Outra iniciativa inédita: desde março o Theatro Municipal do Rio está vendendo ingressos para todos os seus espetáculos próprios já anunciados (até julho). Medida que indica um grau pelo menos um pouco maior de organização dentro da instituição e também parece assegurar que não haverá cancelamento de nenhum espetáculo anunciado. Até o ano passado, os ingressos quase sempre começavam a ser vendidos poucos dias antes de cada produção. Espero para breve o anúncio do restante da temporada, bem como a imediata disponibilização dos respectivos ingressos em bilheteria.
Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/
CRÍTICA da CRÍTICA
ResponderExcluirPor Severino Jose - Feirante vendedor de tomate a mais de 30 anos com experiencia em armazenagem de frutas e legumes no Ceagesp.
O critico iniciou o seu artigo de forma tímida e contendida, foi certamente político em certos aspectos e poupou detalhes técnicos de precisão, ocultando fatos que foram nitidamente expressos no espetáculo, certamente o peso e o poder da palavra escrita podem ter-lhe afetado no principio do artigo visto que para esse critico falta-lhe bastante experiência e reconhecimento "caro sr. Critico guardadas as devidas proporções o Sr. Não deveria temer assim de inicio a responsabilidade em encarar um artigo critico dessa maneira, afinal você não esta escrevendo para o The New York Times"
Porém no decorrer do texto foi crescendo paulatinamente, mas esbarrou em certas frases, atropelando artigos, síntese gramatical e foco direto ao assunto, foi leviano citando fatos não apurados posteriormente e de teor infindável e foi friamente contestato por alguns leitores do seu artigo. Posteriormente o Sr. Critico se redimiu ao erro e explicou o porque, esse fato foi um acidente de percurso, mas nada que alguns anos de estudo e experiência possam lhe render um médio ou bom critico.