"ANDREA CHÉRNIER" EM NOVA YORQUE. CRÍTICA DE GILBERTO CHAVES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.



Das gravações modernas, somente dou alguma atenção à de Domingo, sempre muito inteligente, com entrega e com sombreados escuros que ele fabrica com muita competência.
Neste ano de 2014, minha primeira ópera no Met (no sábado, 12 de abril) foi Andrea Chénier, de Giordano, ópera da qual quase todos os aficionados gostam por suas árias e duetos que se tornaram hits. Lendo o programa, deparei-me com um comentário do especialista da noite, dizendo serem Giordano, Ciléa, Mascagni e Leoncavallo músicos famosos de um só título e que até o fim de suas vidas perseguiram inutilmente outros além da CavalleriaPagliacciAdriana Lecouvreur e o próprio Chénier, afirmando que todos giravam à sombra de Puccini. Até certo ponto isso é verdadeiro, mas considero que Mascagni e Leoncavallo conseguiram duas obras-primas, e querer compará-las a duas óperas desequilibradas, no caso Chénier e Adriana, não me parece correto. É evidente que a genialidade de Puccini é muito maior do que a de qualquer outro membro da escola realista italiana, mas a ressalva está feita. Com referência a Leoncavallo, é uma pena não haver um sério revival de sua também obra-prima Zaza, que, ao contrário de sua irregular Bohème, tem música mais avançada e um argumento fascinantemente moderno: o preconceito.
Fora a entrada magnífica de Gérard no ato II, que dura, infelizmente, pouquíssimos minutos – quando Giordano mostra apaixonadamente o sentimento da Revolução Francesa, primeiro com os metais eloquentes e depois com as cordas redentoras – e, é óbvio, as duas grandes árias do tenor, nos I e IV atos, a do barítono e a da soprano no ato III, e ainda os duetos que encerram os II e IV atos, o trabalho é eivado de música rotineira, às vezes medíocre. Só mesmo o nome de grandes cantantes, ávidos de interpretar os belos momentos que citei, justifica (além do fato de o autor ser italiano) a fama exagerada desse título. Pobre Carlos Gomes! Se fosse italiano, teria pelo menos, como os dessa turma, uma ou duas óperas internacionalmente célebres, provavelmenteIl Guarany e Lo Schiavo.
Perdoem-me os melômanos fanáticos pelas árias e pela emoção que elas despertam, mas, para mim, uma ópera não se restringe apenas a esses momentos extraordinários. Hoje com 71 anos, tendo começado a descobrir as óperas aos onze anos, ouvindo-as com paixão e, paulatinamente, estudando cada uma delas, não posso me permitir deixar de analisar suas estruturas, seu perfeito senso dramático, principalmente a arquitetura musical que tantas vezes tem salvado libretos sem valor. Não vou aqui me dar ares de dissecar o Chénier, mas, só pra citar alguns exemplos, o primeiro ato, excetuando a pequena ária de Gérard – Son setent’anni, o vecchio, che tu servi –, iria todo para a lixeira se não existisse a fantástica ária do tenor – Un dì all’azzuro spazio. O desequilíbrio continua no segundo ato – que, tirante a referida entrada de Gérard, se encerra no mais belo dueto da ópera – e em todo o resto da ópera. No terceiro ato, as duas grandes árias – La mamma morta Nemico della Patria – e a de valor menor –Si, fui soldato – novamente não são suficientes para sustentar o conteúdo de fraco valor musical. O curtíssimo quarto ato possui mais unidade, com a poética romanza Come un bel dì di maggio e, embora o dueto final seja inspirado, o pequeno trecho orquestral que nos conduz ao fim do ato é medíocre e me incomoda.
Aprofundando um pouco mais esse pensamento, é óbvio que sei, por exemplo, que, na música do primeiro ato, Giordano quer mostrar a frivolidade da aristocracia francesa. Isso, entretanto, não é motivo para que melodias, acordes e, enfim, harmonias tenham um baixo calibre. Vejamos como Verdi procede, ao contrário, em seu Rigoletto: também no primeiro ato, a música perpassa celeremente toda a primeira cena para que, atrás das intervenções de Rigoletto, dos cortesãos e do Duque, se mostre a futilidade da corte. Mas quanta percepção de conteúdo descritivo! Quanta qualidade na essência musical! Dá, de novo, o mestre de Roncole outra lição do que estou dizendo no terceiro ato da mesma ópera, na celebérrima cançoneta La donna è mobile, para retratar a fatuidade do caráter ducal. Mas que, se cantada com graça e acerto, é uma pequena peça de ourivesaria que em rápidos minutos caracteriza um personagem, sem que baixe o nível da criação. Outros exemplos se sucederiam se assim eu quisesse, mas, sem pretender criar polêmica, é isso que queria demonstrar.
Finalmente vamos à performance em si. O espetáculo esteve longe de alcançar a qualidade que a fama e a tradição do maior palco nova-iorquino podem apresentar. O Met é um dos teatros que mais produziu ouro em pó na lírica do século XX e, portanto, vejo que parte das suas insatisfatórias performances atuais são consequências um pouco da não competitividade das vozes modernas, se comparadas com as de ontem.
No papel título, Marcelo Alvarez foi um Chénier comportado, com bom fraseado, mas sem a voz própria para o papel. Hoje, pelo fato de haver pouquíssimos e verdadeiros tenores spinto em carreira, abriu-se uma imensa oportunidade (que perturba meus ouvidos) preenchida, para aqueles papéis, por tenores líricos, que deveriam estar nas vestes de Rodolfo, Lenski, Werther etc… Além do mais, na ária principal de Chénier, do primeiro ato, a torrente sonora, para que se atinja o tema central, deve ser conseguida em frase ligada, sem espaço para tomada de respiração – erro sério e imperdoável em um artista dito de primeira linha. Amor divino tuo deve vir ligado à frase anterior para se obter o arrebatamento devido.
Patricia Racette é um equívoco para estar na condição de estrela, no palco do Met. Outras iguais a ela já conseguiram isso, em outras épocas, sabe lá Deus como… Ela é uma cantora cuja coluna sonora se ressente profundamente de uma sustentação de apoio diafragmático que faz sua voz oscilar desagradavelmente nas frases em legatto. Fora isso, seu timbre não a favorece e, quando isso acontece, é preciso que a cantante supere sua falta de dote natural (timbre de voz não se compra em farmácia!) e é necessário que a artista se supere em qualidades técnicas, o que não é o seu caso. Para compensar, tivemos a excelente presença cênica e vocal da mezzo-soprano de São Petersburgo, Olesya Petrova, interpretando magnificamente a pequena parte da velha Madelon. Sua voz ampla e generosa encheu a enorme sala do Met. O público parece que não lhe prestou muita atenção, mas esse público nova-iorquino de hoje não é nem um pouco confiável.
Relevante é falar do barítono da Servia/Montenegro Zelejko Lucic, pois ele salvou a noite e eu me senti feliz de ter pagado trezentos dólares, só para ouvi-lo. Já o conhecia de DVDs – TraviataRigoletto e Macbeth –, mas, quando o cantor triunfa ao vivo e em um espaço de acústica íngreme como é a do atual Met, aí, sim, pode-se ter uma noção exata do valor do artista. Voz escura e maciça em todo registro, com um notável controle de volume e um veludo que lembra, vaga e saudosamente, aquele que foi, para mim, o maior barítono verdiano do século passado: Leonardo Warren. Lucic cantou seuNemico della Patria com emoção, rigorosamente dentro da cena teatral, com um volume pouco comum (ao vivo tem quase o dobro de volume dos seus companheiros de espetáculo) e teve, merecidamente, a maior ovação da noite. Aqui fica a sugestão: por que privar os brasileiros de ouvir um dos poucos verdadeiros barítonos verdianos dos tempos atuais? Os teatros principais do Rio de Janeiro e de São Paulo, nossos centros líricos de referência, poderiam, se o apresentassem, nos fazer crer que estaríamos voltando aos velhos tempos. Se isso acontecer, meus amigos, fiquem certos, tomarei um avião de Belém do Pará, onde moro, e estarei lá para aplaudir um artista de exceção.
Com todos esses altos e baixos, deve-se registrar ainda a competência e a personalidade do maestro italiano Gianandrea Noseda, que tira o máximo partido dos bons momentos que a partitura oferece.
Para completar essa abordagem sobre Andrea Chénier, que foi verdadeiramente o único grande poeta pré-romântico francês, gostaria de opinar, sucintamente, a respeito da discografia dessa ópera. Do Chénier existem boas gravações de referência, tomando-se como base apenas as de estúdio. Duas se equivalem em brilho, emoção, perfeição de estilo de seus intérpretes e, notadamente, sua adequação vocal aos personagens. Refiro-me aos eletrizantes trios Mario Del Monaco, RenataTebaldi e Ettore Bastianini e, no mesmo nível, Franco Corelli, Antonietta Stella e Mario Sereni. Del Monaco e Corelli são duas forças da natureza que tive a chance de ouvir ao vivo e não mais encontradas hoje no mundo da ópera – o primeiro, autenticamente dramático em toda a extensão da gama, e o segundo, também com centro baritonal, mas com agudos com o brilho de um trompete de ouro. Se Del Monaco é mais sério no fraseado do que as quebradas de meios soluços de Corelli, é inegável que este último mantém uma maior e mais variada definição nas cores do fraseado. Tebaldi é a melhor de todas as Madeleine que eu ouvi, mas a postura viva e elegante de Stella não deixa nada a desejar no papel. Bastianini, que começou a carreira como baixo, foi um barítono de exceção, e sua morte, com pouco mais de quarenta anos, deixou uma lacuna imensa, porque não houve depois dele um barítono tão escuro e tão único no bronze de seu timbre e, decerto, é superior a Sereni. Entretanto, este último teve a seu favor ser uma das vozes mais fonogênicas da história do disco e, acrescente-se a isso, um dos mais belos timbres italianos dos anos sessenta/setenta. Enfim, duas grandes versões.
Acontece que, para mim, a maior leitura da obra está na ainda mais antiga gravação de Benjamino Gigli, Maria Caniglia e Gino Bechi, que traz, nos papéis de apoio, jovens figuras à época, como Simionato e Taddei. Gigli é perfeito em tudo e seu texto não pode ser comparável ao de qualquer outro cantor, nem suas nuances e capacidade de produzir cores e sutilezas escondidas na partitura. Essa foi, inclusive, sua ópera favorita, embora, para mim, seu maior momento em ópera gravada tenha sido Un Ballo in Maschera. Maria Caniglia não tem, nem de perto, o refinamento de Tebaldi ou de Stella, mas é toda emoção e se atira às frases veristas (ela era uma cantora verista), com uma eloquência leonina. Bechi, o fantástico e carismático barítono da mesma geração do grande Gobbi, faz um Gérard único. Embora criticado, por alguns, pelo fato de ser monocórdio, eu encontro nesse artista de raríssima personalidade condições de nos tirar o fôlego, o que ele esbanja na sua ária principal. Maior que isso, só Tita Ruffo, que, após o seu único Com’era irradiato di gloria il mio cammino, lança-se oceanicamente no E in un sol baccio, colocando um parâmetro definitivo na gravação dessa ária. Aliás, o velho Tita visitou Bechi no auge, no seu camarim no Scala, e disse “Você imita o meu defeito”, observação que faz Lauri Volpi em seu livro célebre Vozes paralelas. Referia-se o barítono pisano ao excesso de pressão sobre a cavidade nasal, característica dessas duas vozes legendárias do passado.
Das gravações modernas, somente dou alguma atenção à de Domingo, sempre muito inteligente, com entrega e com sombreados escuros que ele fabrica com muita competência. A ele também não faltam emoção e eloquência próprias do papel. A versão de Carreras é apenas a de uma bela voz, aquém do que pede a partitura, embora possua um grande lirismo. A de Pavarotti perde-se totalmente por ausência da característica spinto na sua voz, necessária ao personagem.
Assim, meus amigos, é melhor ficarmos com o passado! Até a próxima.

Gilberto Chaves

Fonte: http://www.movimento.com/

Comentários

  1. adorei o texto todo! grande abraço. Richard Bauer

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  2. Muito bom!!! apenas um errinho bobo- se me permite corrigir- a frase- é "amor divino dono"- e não divino tuo-

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