POR MARES NUNCA DANTES. CRÍTICA DE FABIANO GONÇALVES DA ÓPERA BILLY BUDD NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Billy Budd, ópera de Britten em cartaz no Theatro Municipal do Rio, tem montagem impecável.

No ano em que se comemora o centenário do compositor Benjamin Britten (1913-1976), responsável pelo ressurgimento da ópera inglesa, eis que atraca no Theatro Municipal do Rio de Janeiro uma obra sua nunca dantes apresentada por estas praias: a ópera Billy Budd, com libreto do escritor Edward Morgan Forster (autor de clássicos como Passagem para Índia e Howards End) e Eric Crozier, com base em novela de Herman Melville (o mesmo autor de Moby Dick). A estreia mundial se deu em 1951, no Covent Garden, em Londres, e valeu a pena esperar essas seis décadas para vê-la encenada aqui.
A montagem em cartaz (com récitas até 25/11 – confira aqui), oriunda de uma encenação no Teatro Municipal de Santiago do Chile, é irretocável. Capitaneados pelo diretor de cena argentino Marcelo Lombardero, todos os elementos – elenco, luz (de José Luis Fiorruccio), figurinos (Luciana Gutman), cenários e vídeos (Diego Siliano) –, bem como os aspectos musicais (a ópera é apresentada na versão de 1961, com dois atos), com a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal regida pelo maestro Isaac Karabtchevsky, sopram as velas do espetáculo em direção a uma completude artística sem arestas e de grande envergadura.
A luz se apaga. Tem início uma melodia insidiosa, dúbia. Um senhor de cabelos brancos levanta-se na primeira fila da plateia: é o velho Capitão Vere (o tenor canadense Roger Honeywell). Com voz brilhante e de grande tensão dramática, ele relembra, não sem angústia, uma decisão tomada no passado com relação ao marinheiro Billy Budd, que integrava a tripulação do navio Indomitable, sob seu comando durante a guerra anglo-francesa em 1797. A cortina se abre e o tombadilho da embarcação se revela.
Navio negreiro
‘Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm… cansam
Como turba de infantes inquieta.
Os célebres versos de Castro Alves poderiam embalar a cena que surge no palco. Marujos trabalham como escravos sob as ordens impiedosas do Sr. Flint (Daniel Soren), enquanto cantam uma melodia sinuosa que remete ao balanço (às vezes perigoso) do mar. Logo surge uma amostra do tema da opressão, que dominará a trama: um Novato (Ivan Jorgensen) é mandado para o açoite por ter esbarrado, sem querer, em um superior. Cria-se um clima de tensão, que só aumenta com a chegada de três marinheiros forçadamente recrutados no navio Rights O’ Man (Direitos do Homem) – entre os quais está o jovem e belo Billy Budd (Leonardo Neiva), que canta, com alegria e inocência, que o mar é sua vida. Mesmo gago, o vigoroso Billy é o recruta perfeito. Mas o entusiasmo dos comandantes cessa quando o jovem, num arroubo, canta, dirigindo-se ao seu antigo barco, Farewell Rights O’ Man!. Basta para que os oficiais – em particular, Sr. Redburn (Homero Velho) –, já temerosos de motins (em função de fatos ocorridos em outras embarcações, não muito tempo antes), creiam haver ali um ideal revolucionário. John Claggart (o argentino Hector Guedes), chefe de disciplina, encarrega seu auxiliar, o cabo Squeak (Weber Duarte), de espionar Budd e, se possível, encontrar um jeito de incriminá-lo e dar fim àquela alegria. Está armada a arapuca de perfídia.
Iago em alto-mar
A vilania de Claggart, brilhantemente expressa, de modo contido porém inequívoco, na atuação do barítono Guedes, é a mola propulsora de toda a trama. Entre outras, uma chave possível para o entendimento de tamanho amargor reside nas alusões homossexuais da trama. Britten e Forster eram gays, e, segundo o diretor Lombardero, “Britten sempre falou em suas obras sobre a estigmatização do diferente” [no caso, Billy]. Há pistas discretas em toda a obra, como as menções a Budd como belo, jovem e adorável, ou mesmo o subtexto contido no ato de Claggart “ficar de olho” no marujo. O desejo, na impossibilidade da concretização, pode tornar-se ódio destrutivo – vide personagens que vão de Iago (“Mas eu também a amo, não por simples concupiscência, muito embora eu seja também passível dessa grande falta”, como diz referindo-se à Desdêmona na tragédia Otelo, de William Shakespeare) a Leôncio (eternizado no frio olhar azul de Rubens de Falco na telenovela Escrava Isaura, escrita por Gilberto Braga em 1976, a partir de romance de Bernardo Guimarães). “Yet each man kills the thing he loves” (“O homem mata aquilo que ama”, em tradução livre), já escreveu Oscar Wilde – ou cantou Jeanne Moureau no filme Querelle, de Rainer Werner Fassbinder, roteirizado a partir de Querelle de Brest, romance de Jean Genet escrito em 1947.
Pairando acima de questões de ordem sexual, contudo, está a maldade, que se esgueira por sobre o Indomitable como uma névoa espessa. A dualidade trevas x luz, como metáfora das questões ódio x amor, opressão x liberdade (especialmente no que diz respeito aos direitos humanos) e crueldade x bondade levantadas pela trama, é a opção escolhida para a expressão artística. Elementos contidos na narrativa são como migalhas de pão na floresta de possíveis significados: o brilho das moedas de ouro e o rosto irreconhecível do Novato na escuridão; o Capitão que suplica por luz dos céus para discernir bem e mal, entre outros. Sob a direção de Lombardero, todos os elementos refletem essas discussões.
foto billy budd 07a Por mares nunca dantes
Montagem de “Billy Budd” no Municipal do RJ
Cinemascope
Os figurinos de Luciana Gutman, majoritariamente em tons de cinza a azul, somam-se à luz lindamente desenhada por Fiorruccio: um tanto sombria e, em determinados momentos, com recortes e contraluzes acentuados, que ressaltam a bonita funcionalidade dos cenários de Siliano. Mas este profissional acrescenta ainda mais beleza à produção com as projeções – reflexos marinhos na boca de cena nos momentos de passagem e os sensacionais fundos que ilustram o mar em movimento e uma noite estrelada. Com uma palheta que remete ao pintor inglês William Turner (1775-1851), trazem o espectador imediatamente ao universo marítimo da obra, como um mergulho de cabeça em uma tela de Cinemascope. “As projeções são usadas como um elemento cenográfico e não onírico. Optei por este olhar quase cinematográfico, que tem um ar dos filmes dos anos 1960, por ser uma ópera que será apresentada pela primeira vez ao público. (…) Acho que uma abordagem abstrata não seria o melhor caminho”, explica o diretor. É na penumbra, dúbia e sedutora, onde ocorre a inexorável tragédia de trevas e luz. Ou, nas palavras do próprio Claggart, “A luz brilha na escuridão, e a escuridão, compreendendo, sofre”.
Coro dos mil
Todas essas questões estão contidas na música sinuosa e sinistra de Britten, que encontra expressão perfeita na regência de Karabtchevsky à frente da Sinfônica do TMRJ. Estão lá todas as nuances, semitons e possibilidades interpretativas. Com profissionalismo e talento, o Coro do TMRJ, com formação exclusivamente masculina, preparado pelo maestro Jésus Figueiredo, encanta e esbanja potência e dramaticidade. A belíssima cena que abre o segundo ato, na qual toda a tripulação aguarda febrilmente o momento de atacar um navio francês, alcança tensão quase insuportável graças à execução absolutamente harmônica de coro, solistas e orquestra. Com graça especial, destaque-se a participação na ópera do Coral Infantil da UFRJ, preparado pela regente Maria José Chevitarese.
Dos menores aos maiores papéis, todo o elenco consegue, de maneira equilibrada, contribuir para a exuberância do espetáculo: Rafael Thomas (Mr. Ratcliffe), Ciro D’Araújo (Donald), Marcio Marangon (um ótimo Dansker), Carlos Frederico de Assis (Amigo do Novato), Ricardo Tuttmann (Red Whiskers), Patrick Oliveira (Arthur Jones e Artilheiro), Marcelo Coutinho (Contramestre), Allan Souza e Emerson Lima (Primeiro e Segundo Marinheiros), Geilson Santos (Vigia) e Cícero Pires (Marinheiro). Contudo, merecem destaque especial, por conseguirem imprimir brilho extra em suas participações, os tenores Weber Duarte (que apresenta, com uma ligeira inflexão de voz, o quanto Squeak é vil e desprezível) e Ivan Jorgensen, com ótima performance, particularmente, na pungente cena após o açoite do Novato. Homero Velho e Daniel Soren executam com competência e verdade suas partes, respectivamente, Sr. Redburn e Sr. Flint.
Além das irretocáveis e sensíveis atuações de Honeywell e Guedes, soma-se à excelência do elenco principal a atuação do barítono brasiliense Leonardo Neiva. Seu Billy Budd tem vigor, jovialidade e trágica inocência, emanadas por uma voz educadíssima e de primeira grandeza. Um dos pontos altos de sua interpretação é a doce, melancólica e resignada balada final Look! Through the port comes the moon-shine astray, em meio a um hipnótico céu estrelado.
A luz das estrelas se apaga para Billy e para Claggart, mas a ópera termina com Vere, novamente envelhecido e na plateia, ainda no lusco-fusco da dúvida – “Eu poderia tê-lo salvo… Oh, que fiz eu?”. O que o senhor fez, Capitão Vere, foi participar de um momento memorável na cena lírica do Rio de Janeiro, que se embrenha nas nossas lembranças como um doce perfume de maresia e vai permanecer por muitos anos, como uma concha guardada no fundo da gaveta que, ao ser redescoberta, faz reviver tantas sensações.

Fabiano Gonçalves

Comentários

Postagens mais visitadas