Villa-Lobos, compositor do Estado Novo. Artigo de Fernando Randau no Blog de Ópera e Ballet.

Sábado último foi o dia da música clássica no Brasil, data escolhida em razão do aniversário de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Como é muito duvidoso o valor de datas instituídas por lei, sugiro que falemos apenas dos 124 anos do compositor.

Não há brasileiro minimamente informado que não conheça o nome de Villa ou que não tenha ouvido alguma de suas obras. Para muitos ele é a porta de entrada na música – o que não é demérito algum, pelo contrário. Sua obra é acessível no bom sentido do termo, tanto por conter melodias e ritmos muito reconhecíveis para nós, como pelos elementos modernistas de muito apelo. Será lugar-comum repetir as virtudes dele. Sem dúvida é um dos maiores compositores brasileiros, de importância capital em nossa história, e é quase certo que tenha sido o mais prolífico. E apesar disso é curioso o quanto ainda não há uma grande biografia de sua vida e obra.


Villa-Lobos: quem diria que o malandro aí foi um dedicado funcionário público?

Claro que há muitas biografias de Villa, desde quando era ainda vivo dado seu reconhecimento. Mas, sendo realista, a maioria não passa de ode disfarçada. Com a reverência pura e simples vemos o quanto os brasileiros ainda não sabem lidar com o valor de Villa-Lobos.

Daí que não foi sem satisfação que li a dissertação de mestrado Um maestro no gabinete: música e política no tempo de Villa Lobos, de Analia Chernavsky, defendida em 2003 na Unicamp – disponível aqui. Chernavsky defrontou-se com essa fraqueza bibliográfica uma vez que pretendeu investigar a duradoura relação de Villa com o Estado Novo, quando este foi funcionário público entre 1932 e 1947. De fato, não há quase nada sobre o tema nas biografias disponíveis, todas elas seguindo os vícios de mitificação presentes desde Villa-Lobos – compositor brasileiro, de Vasco Mariz, em 1948.

Não que seja estranho que a primeira biografia de um indivíduo ainda vivo seja laudatória, sobretudo se serve para fins de divulgação do compositor no Brasil e no exterior. O problema começa quando, posteriormente, ninguém se aventura dignamente a fazer algum trabalho biográfico mais extenso e detalhado. Responsável por um plano básico da vida de Villa-Lobos, atualmente na 11° edição, o livro de Mariz fixou os clássicos clichês romanceados: desde a infância, Villa demonstra um gosto pelo cânone – Bach – ao mesmo que pela autêntica música popular – os choros, o folclore, etc. Primeiríssimo moderno entre nós, mais tarde se torna o divisor de águas da música erudita no país pela participação na Semana de Arte Moderna, e quando vai a Paris não tem nada a aprender, apenas a apresentar (e impressionar a todos, claro).

Continuamente é consolidada a imagem do primeiro grande compositor autenticamente nacional em linhas exuberantes e ridículas, como atesta essa citação de Eurico Nogueira França:

“O contato íntimo que estabelece com a musica folclórica, ao colhê-la, na fonte, impregna-lhe a obra inteira de íntima brasilidade, prodigiosamente diversificada. À vivencia extrema, na absorção complexa de materiais, que vão desde o canto urbano carioca ao indígena do Alto Purus, corresponde uma produção inesgotável, a mostrar-nos que Villa-Lobos se alimenta de brasilidade, de todas as nossas vozes folclóricas das cidades e das selvas, mas também do espetáculo dos rios, das matas e das montanhas, da realidade do homem e da paisagem – e fez desbordar a imaginação criadora movido por um insopitável impulso biológico…”

Ufa, não é pouca coisa. Nesse contexto o espaço para sua temporada no governo é, evidentemente, mínima. No máximo admite-se a associação de Villa com o Estado Novo como conseqüência da natural ingenuidade do homem devotado à arte com aspectos da vida prática.


Villa regendo um coro de quarenta mil crianças no Estádio de São Januário, em 1942.

Porém não foi bem assim. A tese central de Chernavsky é que entre Villa-Lobos e o regime de Vargas aconteceu uma dessas raras relações de troca de favores no poder com benefícios mútuos: o compositor se prestava ao governo na formação da ideologia nacionalista conveniente ao regime, enquanto que o governo se prestava ao compositor na criação do público para suas obras e na consolidação de sua imagem de grande compositor brasileiro. Assim como diversas inspirações do regime de Vargas, a idéia do canto orfeônico seguia o exemplo dos regimes totalitários europeus à época, pelo qual a educação musical era voltada para inculcar civismo, patriotismo e disciplina. Entendida como a única instância capaz de estimular e divulgar a arte nacional, o Estado se viu comprometido a elevar compositores que, por sua vez, viram a oportunidade de formar nos jovens seu público.

De fato, foi o próprio Villa quem deu o primeiro passo ao apresentar um plano de educação musical ao governo interventor do estado de São Paulo. Entre suas propostas havia o apelo pela redução de entrada de música estrangeira e prioridade ao estudo dos compositores brasileiros. Sua atuação começou, primeiramente, como superintendente do ensino musical e artístico da secretaria de educação no Rio de Janeiro até quando assumiu a direção do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e passou a dirigir a formação de professores de canto em todo o país. Nosso compositor era um ardoroso defensor da educação musical em moldes fascistas, e se arriscava a teorizar sobre a importância do canto orfeônico para a nação num ensaio intitulado Educação musical, de 1946:

“… o canto coletivo, com o seu poder de socialização, predispõe o individuo a perder no momento necessário a noção egoísta da individualidade excessiva, integrando-o na comunidade, valorizando o seu espírito à idéia da necessidade de renúncia e da disciplina ante os imperativos da coletividade social, favorecendo, em suma, essa noção de solidariedade humana, que requer da criatura uma participação anônima na construção das grandes nacionalidades”

Vargas quis conquistar a juventude e o proletariado, e, para tanto, serviu-se da música, sendo o nacionalismo de Villa-Lobos ideal para seus propósitos. Porém não sejamos ingênuos em achar que o compositor foi uma marionete governamental. Com sinceridade e devoção, este compartilhou do projeto de Getúlio de uma nação unificada autoritariamente. Não digo que a relação com o Estado Novo diminua a obra musical de Villa, porém ao menos ajuda a entender como este se tornou símbolo de nossa música por peculiaridades não menos essenciais de nossa cultura.

Fernando Randau.

Fonte:

Comentários

  1. Quem dera tivessemos de novo um Villa para incutir na juventude a boa música. O compositor na verdade foi esperto, ele USOU o Estado Novo para seus propósitos de difusão da música entre as crianças (não só elas). Quem dera pudessemos ter de novo um gênio forte como o de Villa para fortalecer o uso da música nas escolas, hoje já obrigatório, mas lei que ninguém segue, lei nova mas já esquecida. Quem dera tivessemos outros Villas em outras áreas, como a ciência, como a pintura, como a escultura, a história... Precisamos de novos Villas para nossas crianças fugirem um pouco do lugar comum da droga, violência e futebol.

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