COM JOIA DE BRITTEN, THEATRO SÃO PEDRO TEM GRANDE NOITE DE ÓPERA. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

“A Volta do Parafuso” recebe excelente montagem em São Paulo.
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The Turn of the Screw (A Volta do Parafuso), ópera de câmara em um curto prólogo e dois atos de Edward Benjamin Britten, sobre libreto de Myfanwy Piper, com base no romance homônimo de Henry James, está em cartaz no Theatro São Pedro até o dia 22 de junho. E a produção é de encher os olhos – e também os ouvidos!
Uma jovem é contratada por um belo e charmoso preceptor que mora em Londres para cuidar de duas crianças em Bly, uma propriedade rural, sob a condição de não incomodá-lo de forma alguma, nem mesmo por carta. Encantada com o homem, ela aceita o trabalho. Quando chega a Bly, a nova Governanta, aos poucos, toma conhecimento de acontecimentos sinistros, envolvendo dois ex-empregados da mansão, já falecidos. Seus fantasmas atormentados aparecem para assombrar as duas crianças.
O libreto, próximo do enredo original de James, com algumas adaptações, mantém o clima de incerteza e mistério: há muita sugestão e pouca confirmação. A obra é aberta e, como no original, temas como pedofilia, sexualidade reprimida e homossexualidade são sugeridos ao longo da ópera. Cabe ao espectador desfazer as ambiguidades e interpretar a obra à sua maneira.
Para acompanhar a história, Britten escreveu uma música instigante, que propõe um tema, interpretado entre o prólogo e a primeira cena do primeiro ato, e quinze variações sobre este tema, que introduzem cada uma das demais cenas da ópera, criando assim um clima de constante tensão que se aprofunda conforme o decorrer do drama.
Nada disso funcionaria no palco sem uma direção musical firme, sem uma direção cênica realmente competente e sem solistas vocalmente capacitados. A concepção de Lívia Sabag para o Theatro São Pedro é de uma mestria e de uma sutileza impecáveis, e é com muita sensibilidade que a diretora trata as questões ambíguas do texto, mantendo habilmente o clima de sugestão e deixando para a imaginação do espectador a decisão final sobre o que realmente aconteceu em Bly. Some-se a isso um trabalho de direção dos solistas de altíssimo nível, que consegue extrair o melhor de cada cantor/ator e temos um resultado notável.
Este resultado não seria possível, claro, sem os cenários de Nicolás Boni, ao mesmo tempo belos e funcionais – a cena é trocada 21 vezes ao longo da trama, mantendo sempre uma ambientação condigna com cada passagem da história, seja na mansão, seja no seu exterior. Também contribuem muito para a qualidade da montagem os figurinos corretíssimos e bem executados de Veridiana Piovezan e a iluminação precisa e sensível de Wagner Pinto, que muda e se adequa perfeitamente a cada uma das várias cenas da ópera.
Não posso prosseguir com a análise musical, sem antes fazer um pequeno aparte acerca desta magnífica produção cênica. O trabalho pensado, desenvolvido e efetivamente apresentado por Lívia Sabag e sua equipe deveria ser visto obrigatoriamente por muitos diretores cênicos que pensam que sabem dirigir ópera, e também por certos diretores artísticos e administradores de teatros de ópera. Quem sabe, assim, esses pseudoencenadores não aprenderiam pelo menos pouquinho como é que se dirige uma ópera com inteligência, sem precisar apelar para invencionices vazias sem pé, nem cabeça? Quem sabe, assim também, certos administradores de teatro não desenvolveriam um pouco mais seu senso crítico para escolher o encenador certo para a ópera certa, ao invés de entregar todas as encenações líricas de seus respectivos teatros para a velha “panela” de sempre?
Na récita de 18 de junho, a Orquestra do Theatro São Pedro pareceu se transmutar sob a condução do maestro norte-americano Steven Mercurio. O regente conduziu a peça de Britten demonstrando grandes talento e conhecimento técnico. E não foi só: conseguiu inspirar nos instrumentistas sob seu comando uma musicalidade ímpar, que por sua vez levou a uma sonoridade muito bem definida e que variava conforme as necessidades da partitura. Um ou dois pequenos deslizes não prejudicaram o desempenho do conjunto. Muito boas também foram as passagens do piano, interpretadas por Paulo Henrique Almeida, especialmente a sonata que abre e integra a antepenúltima cena da ópera (13ª variação).
Dentre os solistas, Ivan Marinho e Mariana Silveira, que interpretaram as crianças Miles e Flora, respectivamente, cumpriram muito bem as suas partes, com vozes adequadas e condizentes com a idade de ambos (13 anos aproximadamente), e com uma disciplina cênica de fazer inveja a muito ator profissional…
O tenor Juremir Vieira esteve muito bem como o fantasma de Peter Quint e como “O Prólogo”, apesar de ter sentido claro desconforto nos momentos em que precisou cantar em falsete. Nada que tenha diminuído o valor de sua performance geral, cenicamente ótima e vocalmente bastante satisfatória nos momentos mais dramáticos. A soprano Céline Imbert, se pecou em algumas notas agudas com emissão um pouco estridente, foi uma Mrs. Grose de belos graves e médios e de grande presença, tanto nos momentos mais leves, quanto naqueles mais tensos.
A mezzosoprano Luciana Bueno foi uma coadjuvante de luxo e, como o fantasma de Miss Jessel, teve uma excelente atuação. Com uma voz bastante segura e musical, dividiu com a protagonista aquela que, para mim, foi a melhor cena da noite (a terceira do segundo ato): no quarto da Governanta, um efeito ilusório deu a impressão de que a personagem da mezzo cantava de dentro do espelho (um dos achados da diretora); depois o fantasma saiu de trás do espelho e o dueto que se seguiu foi de alta voltagem musical e dramática.
A soprano Luísa Kurtz viveu uma Governanta surpreendente. Se a memória não me trai, esta foi a primeira vez que a escutei, e a impressão deixada pela artista não poderia ter sido melhor: voz firme, segura, bem afinada, bem projetada na acústica amigável do São Pedro (é preciso ainda conferir sua projeção num palco maior, naturalmente), e que se manteve em excelente nível durante toda a récita – vale lembrar que a Governanta canta em quinze das dezesseis cenas da ópera. Sua atuação cênica acompanhou o desenvolvimento das angústias e das dúvidas da personagem, e o resultado final foi daqueles que ficarão grudados na memória por um longo tempo.
Obviamente, não assisti a todas as encenações de óperas no Brasil neste primeiro semestre, mas afirmo, sem qualquer receio de errar, que a produção do Theatro São Pedro para A Volta do Parafuso é a melhor da atual temporada nacional, pelo menos até este momento.
Meu amigo e colega Irineu Franco Perpétuo, que assistiu à apresentação ao meu lado, também ficou bastante satisfeito. Comentei com ele no intervalo um pensamento que tenho cá comigo, “meio à brinca, meio à vera”, segundo o qual uma das funções do crítico de ópera no Brasil (aos chatos de plantão, que não sabem ler nas entrelinhas, eu reitero: UMA DAS) é falar mal das administrações dos teatros, e a função dos administradores é calar a nossa boca, ou seja, trabalhar de tal forma que nós não possamos falar mal da maneira como projetam e montam suas temporadas. A produção assinada por Lívia Sabag, como facilmente se pode verificar tanto lendo acima, como comparecendo às demais récitas no São Pedro, só merece louvores.

Leonardo Marques

Fonte: http://www.movimento.com/

Comentários

  1. Marcelo Lopes Pereira25 de junho de 2013 às 08:37

    Assisti a última apresentação da ópera e realmente ela foi muito bacana, apesar da voz fraca da dupla infantil.
    O enredo e a história dessa ópera são geniais e instigam a inteligência do público, porém musicalmente o que mais me chamou a atenção foi o solo de piano, magnífico!

    Quero mais uma vez parabenizar o Paulo Ésper que consegue fazer muito com poucos recursos financeiros, já imaginaram ele na direção da OSESP ?

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