TOSCA, DE PUCCINI , NO THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO. CRÍTICA DE ÉRICO DE ALMEIDA MANGARAVITE NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Montagem transposta para a década de 1970 divide opiniões.



   Com o advento da internet e, sobretudo, das redes sociais, dificilmente se assiste a um espetáculo que já estreou sem se ter alguma noção daquilo que será visto. Afinal, temos as imagens da produção veiculadas pela imprensa; as críticas publicadas em sites, blogs e jornais; e, em um nível não menos importante, as impressões pessoais de amigos e conhecidos que assistiram às récitas anteriores. Nesse sentido, já sabíamos que a Tosca levada aos palcos do Teatro Municipal de São Paulo no último sábado, 6 de dezembro de 2014, supostamente seria encenada no contexto da cidade de Roma na década de 1970, conforme declarações do diretor cênico Marco Gandini.
Dizemos “supostamente”, pois certos detalhes da produção indicavam, sutilmente, que a trama também poderia se passar no Brasil do mesmo período. Podemos citar alguns exemplos: o retrato de um militar na parede do escritório de Scarpia lembrava a figura do presidente Artur da Costa e Silva, responsável pela decretação do AI-5 (à distância, não foi possível termos a certeza se era ou não o finado marechal). Ao lado do mencionado retrato, via-se um relógio com os ponteiros parados aproximadamente às 8h, justamente o fatídico horário em que o jornalista Vladimir Herzog se apresentou nas dependências do DOI-Codi (o que lhe aconteceu dali em diante guarda considerável semelhança com o destino de Cavaradossi).  Frise-se que tal estaticidade também poderia estar relacionada à perda da noção de tempo, comum àqueles que são torturados por horas a fio.
Outro exemplo: uma foto da produção divulgada pela imprensa mostra, nas estantes de Scarpia, a lombada de um livro em que se leem as palavras “O Brasil” (de onde estávamos não foi possível visualizar tal livro, mas na foto a inscrição é bem nítida). E mais: a aparência física de Scarpia lembrava, de modo perturbador, a de um antigo chefe do SNI no Rio Grande do Sul (coincidência ou não, houve contra esse militar um pedido de extradição justamente por parte do governo italiano em razão do desaparecimento de um cidadão daquele país durante a ditadura brasileira).  Por fim, Cavaradossi se vestia de vermelho, cor associada aos principais opositores do regime militar em nosso país.
É claro que tais exemplos são meras conjecturas da nossa parte, haja vista o teor das declarações do diretor cênico. De toda sorte, acreditamos que tal concepção, em que pese a presença de algumas lacunas (há diversas referências a acontecimentos históricos ligados a Napoleão Bonaparte, que não podem ser transpostos sem alterações no texto – algo que seria inaceitável), não prejudicou a compreensão da trama por parte dos espectadores que desconheciam a ópera. Quanto àqueles que estão habituados com o libreto de Tosca, a aprovação ou não da montagem é uma questão de gosto pessoal. Particularmente, nos agradou a concepção do diretor, por ter deixado de lado a mesmice, sem apresentar polêmicas gratuitas ou alusões de gosto duvidoso, como algumas que vimos no palco do mesmo teatro em anos anteriores.  E, em uma ópera que critica veementemente os regimes ditatoriais, nada mais democrático do que respeitar as opiniões dos que não gostaram de tal concepção.
Cenários, figurinos e iluminação estavam em harmonia com as ideias do diretor cênico: as roupas coloridas usadas por Tosca contrastavam com os trajes cinzentos e negros utilizados pelos demais indivíduos em cena, em uma possível alusão ao papel fundamental dos artistas enquanto defensores da liberdade em tempos de opressão. Em sentido oposto, cinza e preto seriam as cores dos omissos, dos apáticos e dos conformados. Tal diferença de atitude face ao Estado totalitário ficou bem clara no agir dos integrantes do coro no 1º ato, que olhavam Tosca com nítido desprezo, sendo que alguns pareciam observá-la furtivamente como se fossem informantes do governo ditatorial.
A existência de uma relação sórdida entre Estado e Igreja transparecia na ambientação do primeiro e do segundo atos: no primeiro, a ação se passava em um templo que se assemelhava a uma repartição pública, no qual os numerosos confessionários se destacavam mais do que as imagens religiosas – a “Madonna” mencionada por Angelotti era apenas uma escultura discreta. No segundo, a trama ocorria em uma espécie de escritório no qual se via uma grande cruz e um retrato de um religioso graduado (não foi possível identificá-lo de longe, mas poderia ser um papa ou um cardeal, por exemplo) sendo cumprimentado por autoridades civis. Na sala do chefe da polícia romana, havia centenas de livros e arquivos, possivelmente relacionados ao controle dos inimigos do Estado.  A câmara de tortura, situada em um nível inferior aos escritórios de Scarpia, permanecia apropriadamente na penumbra durante a maior parte do tempo – afinal, não seria necessário explicitar visualmente os sofrimentos infligidos a Cavaradossi, ricamente descritos na partitura.
No que diz respeito à parte musical, devemos dizer que os comprimários estiveram, sem exceção, bem em cena. Destaque para o sacristão de Saulo Javan, para o carcereiro de Sérgio Righini e para o Angelotti de Massimiliano Catellani. Os três protagonistas agradaram bastante. A Tosca de Ainhoa Arteta destacou-se nas passagens mais agudas, cantadas com afinação, excelente projeção e com vibrato controlado. Bem desenvolta cenicamente, Arteta em nada lembra as Toscas de aspecto matronal, que podem convencer vocalmente, mas jamais convencerão visualmente. Formou um belo par com o tenor, ambos sobressaindo nas passagens de alguma comicidade no 1º ato, coisa que nem sempre ocorre em montagens dessa ópera. Foi muito aplaudida após interpretar com comovente sensibilidade a ária “Vissi d’arte” (infelizmente, alguns espectadores mais precipitados começaram a aplaudi-la segundos antes do final da ária, atitude um tanto quanto cafona) e encerrou a noite em grande estilo ao cantar com brilhantismo sua derradeira passagem, após constatar que Cavaradossi fora executado. Nossa única ressalva diz respeito às passagens mais graves da partitura, que em alguns momentos demandaram maior esforço por parte da cantora, mas nada que venha desabonar a excelente atuação da espanhola. Uma Tosca à altura das exigências lançadas na partitura pelo compositor.
O tenor Marcelo Alvarez fez jus às expectativas que sobre ele recaíam. Considerado um dos maiores cantores líricos em atividade, o argentino comprovou que não construiu tal fama imerecidamente. Em razão de algum desconforto vocal, Alvarez ingeriu água com frequência durante a récita: no primeiro ato havia um copo e uma garrafa entre os pertences do personagem; no segundo ato o tenor permaneceu a maior parte do tempo na escuridão; no terceiro ato lhe foi entregue pelo carcereiro um pequeno cantil, daqueles usados para armazenar bebida alcoólica – soluções inteligentes para permitir a contínua hidratação do cantor sem que houvesse interferência no desenrolar da trama. Mesmo assim, brindou o público com uma apresentação de altíssimo nível. Com grande presença cênica, Alvarez é um cantor extremamente versátil, que se mostra mais confortável nas passagens líricas da obra e que enfrenta com exemplar “slancio” as passagens mais heroicas, cantadas com bravura. O argentino, de fato, incorpora o personagem e, imbuído de tal espírito, não mede esforços para agradar ao público. E, destaque-se: o faz sem cair no mau gosto ou na pieguice. Conhece os atalhos da partitura, poupando-se quando necessário e atacando as notas mais agudas com valentia. Voz de timbre diferenciado, homogênea e com excelente projeção. Um grande artista, cuja passagem pelos palcos paulistanos ficará na memória de todos que assistiram à sua performance.
No papel de Scarpia, tivemos o barítono Roberto Frontali. Pessoalmente, consideramos sua atuação ligeiramente superior à de seus colegas. Afinal, o chefe da polícia romana não foi contemplado por Puccini com uma ária somente para si, ao contrário de seus pares. Além disso, é o primeiro a sair de cena, uma vez que morre no 2º ato. Sua passagem mais célebre é justamente a que conta com o maior número de pessoas em cena (o “Te Deum” do 1º ato). Não obstante tais desafios, Frontali dominou o palco a partir de sua entrada, mostrando a que veio ao cantar a plenos pulmões a frase “un tal baccano in chiesa!” (com “grande autoridade”, conforme consta no libreto).
Daí em diante, o barítono ofereceu ao público uma aula de canto lírico. Dominou todas as nuanças (“sfumature”) do personagem: melífluo ao abordar Tosca na igreja; abjeto ao revelar seus impulsos imorais voltados à conquista, a qualquer custo, do objeto de suas atenções – a própria Tosca, demonstrando tal aspecto em diversas passagens (em especial durante o “Te Deum” e ao longo da cena da tortura e do assédio que a segue); malévolo ao afirmar-se enquanto autoridade que abusa do poder que lhe foi outorgado pelo Estado. Tudo isso é manifesto na materialização, por parte do cantor, da marcante conjunção entre texto e música brilhantemente desenvolvidos pelo compositor e pelos libretistas.
Frontali não recorreu a expedientes vulgares, ao histrionismo reprovável, mecanismos utilizados por cantores de menor talento no intuito de impressionar o público desavisado. A maldade do Scarpia de Frontali está justamente na sutileza, na discrição, na frieza que é a principal característica dos indivíduos de personalidade perversa. Justamente no único momento em que o vilão perde o controle da situação e avança em direção a Tosca, que julga “finalmente sua” (“Tosca, finalmente mia!”), é morto pela cantora.  Aliando tal inteligência cênica a uma voz de timbre baritonal clássico, com boa projeção nos registros graves e agudos, Frontali foi um Scarpia “da manuale”, paradigmático. Esperamos revê-lo noutros papeis em palcos brasileiros.
Impactante a regência do suíço Oleg Caetani, regente de reconhecido talento. Sustentou a tensão dramática do início ao fim da récita, adotando alguns andamentos peculiares (chamou-nos a atenção a sinistra lentidão propositalmente escolhida em “Orsù, Tosca, parlate”). Boa a comunicação com os cantores e com os instrumentistas. Manteve elevada a concentração do conjunto inclusive nos momentos em que o público esteve mais ruidoso do que o desejável (nos referimos ao início da ópera, quando alguns dos presentes insistiam em conversar em um volume pretensamente baixo, e aos primeiros minutos do 2º ato, quando uma criança irrompeu a chorar descontroladamente – aliás, o que leva alguém a imaginar que Tosca seria uma ópera adequada para o público infantil?). De excelente nível a atuação da Orquestra Sinfônica Municipal, em especial o solo de clarinete que precede “E lucevan le stelle”, executado com melancolia e lirismo, bem como dos coros (Coro Lírico Municipal e Coral da Gente), com boa presença no “Te Deum”.
Controvérsias cênicas a parte, uma Tosca que não será esquecida em razão de sua imensa qualidade.
Érico de Almeida Mangaravite

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