PRIMAVERA E CREPÚSCULO DE RICHARD STRAUSS EM DOIS CONCERTOS NA SALA SÃO PAULO. ARTIGO DE FABIANA CREPALDI NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Charge de Oscar Garvens
Tão feliz coincidência só pode ser explicada por Euterpe, a Musa da Música: com apenas um dia de intervalo, pôde-se testemunhar, na Sala São Paulo, a primavera e o crepúsculo do compositor alemão Richard Strauss. Com a Osesp, de 25 a 27 de junho a soprano Gun-Brit Barkmin encarnou Salomé na ópera que revelou o compositor; no dia 29, Miah Persson deu voz às Quatro Últimas Canções de Strauss no concerto da Orquestra do Festival de Budapeste. Se foi mera coincidência duas orquestras diferentes, em temporadas que nenhuma relação têm, terem apresentado tão grande sintonia, o fato de ambas as obras serem para soprano e orquestra não o é. A voz de soprano era a favorita do compositor que, aliás, casou-se com uma, Pauline de Ahna, e com ela viveu até seus últimos dias.
Richard Strauss (1864-1949) estreou no mundo da ópera com Guntram, em 1894, mas foi com Salomé, em 1905, que obteve sucesso e reconhecimento. Com um único ato, a ópera tem libretto do próprio compositor a partir da versão em alemão de Hedwig Lachmann para a peça que Oscar Wilde havia escrito em francês e publicado poucos anos antes, em 1891. Tendo sido composta sob o impacto causado pela peça, a ópera estreou no mesmo contexto histórico, na mesma sociedade para a qual a peça foi escrita. O libretto é bastante fiel a Wilde e usa em grande parte o texto do escritor, embora alguns diálogos e situações tenham sido suprimidos.
Na fonte bíblica da história de Salomé, o Evangelho segundo Mateus, não é citado nem o nome da princesa e nem a famosa Dança dos Sete Véus. Além disso, segundo Mateus foi Herodíades, sua mãe, quem a instruiu a pedir a cabeça de João Batista.
“Herodes tinha prendido João, e tinha-o maniatado e encerrado no cárcere, por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe;
Porque João lhe dissera: Não te é lícito possuí-la.
E, querendo matá-lo, temia o povo; porque o tinham como profeta.
Festejando-se, porém, o dia natalício de Herodes, dançou a filha de Herodias diante dele, e agradou a Herodes.
Por isso prometeu, com juramento, dar-lhe tudo o que pedisse;
E ela, instruída previamente por sua mãe, disse: Dá-me aqui, num prato, a cabeça de João o Batista.
E o rei afligiu-se, mas, por causa do juramento, e dos que estavam à mesa com ele, ordenou que se lhe desse.
E mandou degolar João no cárcere.
E a sua cabeça foi trazida num prato, e dada à jovem, e ela a levou a sua mãe.”
Mateus 14:3-11
O nome Salomé, utilizado por Wilde, tem como fonte o Livro XVIII de Antiguidades Judaicas do historiador Titus Flavius Josephus, que viveu no primeiro século da era cristã. Segundo Josephus, Herodíades era casado com um filho de Herodes, o Grande, e tinha dado a luz a uma filha, Salome. Após o nascimento de Salomé, contrariando a lei, “Herodíades se divorciou do seu marido enquanto ele estava vivo e casou-se com Herodes [Antipas], irmão de seu marido por parte de pai, ele era tetrarca da Galileia (...).” Já para a Dança dos Sete Véus, cuja primeira referência se encontra justamente na peça de Wilde, acredita-se que a inspiração tenha vindo da dança dos véus oriental. Ainda hoje, os turistas que vão à Capadócia, na Turquia, podem ver a autêntica dança dos véus, dançada por uma... brasileira!
A ideia de olhar Salomé como uma mulher cheia de luxúria é anterior à peça de Wilde mas, certamente, ele a levou ao extremo. As interpretações literárias que se tira dessa densa obra são diversas e não nos cabe explorá-las aqui com profundidade. De um modo geral, a primeira coisa que salta aos olhos em Salomé é um paralelo entre a sociedade decadente do fim do século XIX, em que Wilde viveu, com aquela da época de Herodes Antipas. Além disso, a questão de gênero também está fortemente presente, não só no que diz respeito ao feminino, à conquista do espaço da mulher, mas também ao papel de cada gênero. Salomé começa a peça como moça casta, vítima da cobiça incestuosa de Herodes. Ao longo da peça, ela vai descobrindo a paixão e a sexualidade, exige que João Batista seja levado a ela e inverte os papéis. É ela, uma mulher, que manifesta o seu desejo por um homem e tenta seduzi-lo aberta e imperativamente, e não o oposto, como era socialmente aceito. Desse modo, Salomé, paralelamente à mulher sedutora, adquire uma postura quase masculina. Sem medir esforços para alcançar o que queria, Salomé usa a luxúria de Herodes para manipulá-lo e conseguir satisfazer a sua própria. Vitoriosa, beija João Batista, mesmo depois de morto. Em Salomé, Oscar Wilde, que seria condenado à prisão em 1895 por sodomia, escandalizou, com o amor heterossexual doentio e blasfemo, uma sociedade que condenava o relacionamento homossexual. 
Repleta de dissonâncias e leitmotifs, a música de Richard Strauss para a ópera, cuja beleza não pode ser negada, recebeu críticas, à época, por ser demasiado lírica em vista de uma personagem agressiva, delirante. O crítico musical Lawrence Gilman, que não negava a genialidade de Strauss e o valor da partitura de Salomé, apontava uma fraqueza na partitura. Segundo escreveu, “ela falha na expressão do motivo governante da peça: a luxúria insaciável e destrutiva de Salomé pelo corpo branco e lábios vermelhos de João.” Ainda: “quando um personagem no drama musical diz ao outro que seu corpo é ‘como o corpo de um leproso, como uma parece caiada, por onde relampejaram as víboras ..., como um túmulo pintado de cal e repleto de coisas repugnantes’, o sentimento não pode ser expresso em música de doçura e serenidade Mendelssohniana. Porque a música é com tanta frequência vulgarmente sentimental, quando devia ser terrível e descontrolada em sua paixão, que parece a alguns que a performance é deficiente.” Exagero, Mr. Gilman! Embora não tenha, de fato, a violência do texto de Salomé, a música, intensa, pungente e muitas vezes dissonante, não tem candura Mendelssohniana. 
Aos nossos ouvidos que já tiveram um século para assimilar a obra, a música transmite a paixão e a sensualidade, os sentimentos profundos por traz da atitude. Além disso, nos coloca no período romântico, transporta-nos ao contexto em que o drama musical de Strauss e a peça de Wilde surgiram. O tema do êxtase, que faz referência ao cantabile do primeiro movimento da Sexta Sinfonia de Tchaikovsky, é uma explícita citação da música da época -- e de um compositor que supostamente foi vítima, como Wilde, do preconceito sofrido pelos homossexualismo. Adicionando imensa massa orquestral, com seus fortíssimos que oferecem constante desafio à soprano e suas longas melodias líricas, a um texto de paixão delirante levada ao extremo, Strauss gerou uma obra que é puro romantismo.  
Salomé estreou no Hofoper (hoje Semperoper) em Dresden, em dezembro de 1905, e teve no papel título a soprano alemã Marie Wittich, que, além de se queixar das dificuldades de sua parte, se recusou a dançar a Dança dos Sete Véus e a beijar a cabeça de João Batista. “Eu sou uma mulher decente”, protestou. Paralelamente ao grande sucesso, a obra também causou escândalo. Cosima Wagner considerou a ópera uma obscenidade. Em Nova York, a filha do banqueiro J. P. Morgan fez com que a produção fosse suspensa após a estreia. 

Marie Wittich como Salomé na esteia em Dresden em 1905.

A figura acima, de 1910, mostra a Hofoper, atual Semperoper, em Dresden, projetada por Gottfried Semper e inaugurada em 1878 (após incêndio de um teatro anterior). Em 1945, o prédio foi atingido pelo bombardeio a Dresden, no fim da Segunda Guerra Mundial. Foi reconstruído e reinaugurada em 1985. O Hofoper o palco da estreia de diversas óperas de Wagner e Strauss.

Infelizmente, a OSESP não fez a ópera em sua íntegra, mas optou por apresentá-la apenas a partir da Dança dos Sete Véus, quando só são necessários três cantores: Salomé (a soprano Gun-Brit Barkmin), Herodes (o tenor Stig Andersen) e Herodíades (a mezzo-soprano Denise de Freitas). Os três saíram-se bem, com intensa interpretação de seus respectivos papéis. Como Salomé, Barkmin foi especialmente convincente, tanto vocal quanto cenicamente. A primeira vitória da soprano, em seu duelo contra uma numerosa e sonora orquestra (culpa de Strauss, não do maestro), foi ter conseguido projetar e voz com brilho e fazer-se ouvir. Fantástica em cena, sua postura e expressão facial eram de alguém delirante, absorta em seu mundo, em seus desejos, alheia e impassível aos apelos de Herodes. Sob a batuta de precisão cirúrgica de Thomas Dausgaard, a OSESP transmitiu, com transparência, as nuances da partitura e soou poderosa, penetrante. Foi um concerto memorável e arrebatador, que nos deixou com gostinho de "quero mais" e com a esperança de que a orquestra volte a fazer óperas e na íntegra.


Richard Strauss

Após a estréia de Salomé, Richard Strauss se consolidou como compositor renomado. Durante os anos de nazismo, apesar dos problemas enfrentados pela família em virtude de sua nora ser judia, foi um apoiador do sistema – ou, na melhor das hipóteses, não queria ter a sua estabilidade e segurança ameaçadas por se opor ao governo. Envolveu-se em polêmicas, foi presidente do Gabinete de Música do Terceiro Reich e, mais tarde, demitido. Após o término da Segunda Guerra, o passado de Strauss foi investigado pelo tribunal de desnazificação e seus direitos autorais passaram para os Aliados, de modo que ele ficou sem rendimentos. Em 1945, Strauss e sua esposa Pauline exilaram-se na Suíça, onde permaneceram até maio de 1949, quando retornaram à Alemanha, quase um ano após ele ter sido absolvido pelo tribunal. Na bagagem, as canções que, após a morte do compositor em setembro do mesmo ano, o editor Ernest Roth agrupou sob o título de As Quatro Últimas Canções (Vier letzte Lieder).
Das quatro canções, três foram compostas sobre poemas de Hermann Hesse e uma, Im Abendrot (No Crepúsculo) tem texto do poeta Joseph Von Eichendorff. A ordem lógica, estabelecida por Ernest Roth (FrühlingSeptemberBeim Schlafengehen, Im Abendrot ou, respectivamente, Primavera, Setembro, Indo Dormir e No Crepúsculo), normalmente seguida, inclusive no concerto da Orquestra do Festival de Budapeste na Sala São Paulo, não é a ordem em que as canções foram compostas e nem a escolhida na estreia, em 1950. Strauss compôs primeiro Im Abendrot, de Eichendorff (maio de 1948) e depois as de Hesse: Frühling (julho de 1948), Beim Schlafengehen (agosto de 1948) e September (setembro de 1948). A ordem seguida na estreia foi: Beim Schlafengehen, September, Frühling e Im Abendrot. Sem tirar o encanto do conjunto de canções, essa constatação as desmistifica como revisões da vida de Strauss, as tira do papel de obras tristes e pesadas. Porém, a melodia tranquila, profunda, transparente dá o clima dos últimos dias da vida do compositor, bem diferente daquele de Salomé.
September (ou Setembro), que descreve o fim do verão, termina com um belo solo de trompa, instrumento que teve um papel importante na vida de Strauss, uma vez que seu pai era trompista em Munique, sua cidade natal. Soprano e trompa, sua esposa Pauline e seu pai, fazem-se presentes em suas últimas canções.
Para a estreia (que ocorreu após a morte de Strauss), o compositor escolheu a soprano lírico norueguesa Kristen Flagstad, que havia visto como solista da Nona Sinfonia de Beethoven em Bayreuth 15 anos antes. Em carta a ela, expressou seu desejo e escreveu que as canções estariam “à sua disposição para uma estreia mundial em um concerto com maestro e orquestra de primeira classe”. Assim foi feito. No dia 22 de maio de 1950 as canções estrearam no Royal Albert Hall, em Londres, com Kristen Flagstad e a Philharmoina Orchestra, sob a regência de Wilhelm Furtwängler. Para nosso deleite, o concerto foi gravado e pode ser ouvido, 65 anos depois, no You Tube:
Beim Schlafengehen (Indo Dormir):https://www.youtube.com/watch?v=zPmF9J3fcgA
Im Abendrot (No Crepúsculo):
https://www.youtube.com/watch?v=rmcsipQ1A74

Flagstad e Furtwängler em 1952
Ao ouvir a gravação de Flagstad e Furtwängler podemos constatar que o andamento com que a obra estreou flui e é consideravelmente mais rápido do que normalmente se faz hoje em dia. Além disso a voz de Flagstad tem corpo e se destaca mesmo nas partes mais graves. As canções são para soprano lírico e a voz de Flagstad, então com 55 anos, já estava consideravelmente mais pesada do que quando Strauss a havia ouvido em Bayreuth. Não há registro de que ela tenha voltado a cantar  Frühling, que demanda voz mais leve, após o concerto de estreia. Só incorporou as outras três ao seu repertório. 
Uma gravação de As Quatro Últimas Canções que merece destaque é a de Gundula Janowitz com Herbert von Karajan (Deutche Grammophon, 1974). O andamento de Karajan, como o de Furtwängler, dá vida e profundidade às canções e a voz de Janowitz atinge graves e agudos com brilho e precisão.  
Na apresentação da excelente Orquestra do Festival de Budapeste na Sala São Paulo, sob a regência de Iván Fischer, tivemos, como queria Strauss, maestro e orquestra de primeira linha. A soprano, Miah Persson, também o era. Porém, embora soprano lírico, a voz de Persson, em alguns momentos, soou um pouco leve para a obra, fazendo com que sua voz se diluísse na massa orquestral. Os papéis em torno dos quais ela tem construído a sua carreira justificam perfeitamente essa percepção. Porém, Miah Persson é uma grande cantora, com bela voz e ótima técnica. Isso pôde ser constatado na segunda parte do concerto, quando solou em uma execução irretocável da Quarta Sinfonia de Gustav Mahler. Foi aí que solista e orquestra levantaram o público.
Fabiana Crepaldi

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