UMA BUTTERFLY NO JARDIM. CRÍTICA DE LEONARDO STEFFANO NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Ópera ao ar livre é proposta consagrada no mundo inteiro, seja como canal de popularização do gênero ou apenas pela oportunidade de nova experiência estética.
Sob tais premissas, a Fundação Clóvis Salgado iniciou sua temporada operística em solo mineiro com uma proposta ousada: encenar Madame Butterfly, de G. Puccini, no Jardim Japonês do Jardim Zoológico, que adorna a famosa região da Pampulha, em Belo Horizonte.
A ópera, com seus meios-tons e intimista que só, foi retumbante fracasso em sua estreia em Milão, em 1904. Puccini persistiu e com alguns ajustes levou-a novamente ao palco quatro anos depois, desta vez coroado. No eixo, a trágica história de amor de uma gueixa (Cio-Cio-San) por um oficial da marinha estadunidense (Pinkerton). Mais do que isso, a própria (in)compreensão cultural do amor e das instituições, como o casamento e a religião. Arte atemporal num mundo volátil de (des)encontros e (des)caminhos, a que Puccini expressou ser sua ópera “mais sentida”. Em Butterfly, o melodismo indefectível do compositor é sublinhado por motivos tipicamente orientais, silêncios e tensões que iluminam delicadamente os espectros dramáticos. Na aurora do século 20, a sublimação mais profunda do verismo italiano, libreto eternamente comunicável, posto que humano, demasiadamente humano.
Uma história com tamanhas sutilezas, refinamentos, pausas visuais e sonoras requer, sobretudo, concentração para ser admirada em sua plenitude. Despojado de qualquer “pré-conceito” nos apoderamos do bonito jardim, com suas lanternas, pontes, lago, flora, casa de chá, pedras… a expectativa era que esse conjunto visual criasse um estado de espírito específico que nem mesmo o frio, a plateia deseducada, a música amplificada e outros mil ruídos e distrações seriam capazes de melar a experiência.
Tendo ouvido pessoas que assistiram às récitas anteriores reclamarem de vários pontos cegos no cenário e dificuldades para se ler as legendas, tentei me posicionar à frente. Mas ainda assim, a geografia do jardim (árvores, pedras…) impede o acompanhamento de vários detalhes. É de se imaginar que a diretora Lívia Sabag deva ter tido um grande desafio para solucionar o espaço cênico. Ainda que a trama não permita distanciar-se muito do centro de gravidade (a casa), particularmente, esperava que os elementos do jardim fossem melhor aproveitados, a fim de enriquecer o diálogo entre o espaço e a ação musical. Não sei, contudo, se isso se deveu à escolha da diretora ou – o que mais provável – a alguma inviabilidade técnica ou até mesmo ambiental. Cenas bonitas ocorreram, como na apresentação de Pinkerton a Cio-Cio- San, no ato I. Mas tudo poderia ter sido mais valorizado fosse a iluminação de Wagner Pinto mais criativa. Melhor comunicação tiveram os figurinos de Veridiana Piovezan, elegantes, sóbrios, sem aqueles rococós carnavalescos que muitas vezes se costumam aplicar nos trajes orientais.
OS SOLISTAS
O Pinkerton de Fernando Portari não é o aventureiro frívolo que pode incorrer nas interpretações mais rasteiramente maniqueístas; tampouco, é a antítese perfeita da ingênua gueixa apaixonadinha. Portari desvela uma alma finamente mais complexa, que também sofre e se compadece em frêmitos de remorso, amor e medo. Essa abordagem psicológica do personagem refletiu-se em sua linha de canto, bastante atenta às nuances. Tecnicamente, impecável. Impressiona o alto padrão de sonoridade nos diferentes registros, imprimindo aquela coerência que permite ao cantor abusar dos recursos de expressão – nunca como simples efeito. Assim foi no Viene la sera, o dueto de amor do ato I, e no Addio, fiorito asil, do ato III.
A minha Cio-Cio-San “de-partir-o-coração” tem aquele fraseado macio com os agudos redondos, um timbre esmaltado e uniforme, capaz de matizar desde a delicadeza (dueto Scuoti quella fronda di ciliegio) até os temperamentos mais pungentes (atos II e III). É desafiadora a escrita de Puccini para a protagonista – demanda-se um soprano versátil para expressar maior leque de emoções, com trânsito fluente tanto nas passagens da região média/grave, quanto na região mais aguda. Eiko Senda é uma das intérpretes mais requisitadas para o papel de Cio-Cio-San no Brasil. Ainda que ela não seja a minha idealização técnica perfeita para o personagem, é justo dizer que conseguiu evoluir ao longo do espetáculo. Eiko foi se adaptando às exigências mais dramáticas da partitura na medida em que a desventura de sua heroína se projetava fatal. Sua Un bel dì vedremo foi correta e, a partir daí, cantou mais desenvolta. Minha percepção: seus momentos sublimes se impuseram mais pelo conjunto da dramaticidade cênico-vocal do que propriamente pelo acabamento exclusivamente sonoro. Se por um lado tivemos uma carência aí, por outro tivemos um desempenho plenamente funcional ao espetáculo, e que não foge à integridade daqueles que, mais do que vocalistas, conseguem dimensionar-se artistas.
Luciana Monteiro de Castro, que é meio-soprano e professora em Belo Horizonte, cantou bem a sua Suzuki, com a implícita mistura de altivez e doçura que o papel é capaz de ofertar. Douglas Hahn valeu-se de sua bela pasta de barítono para dar autoridade consular ao seu Sharpless, se bem que cenicamente poderia ter sido mais perspicaz.
Um elenco jovem ornamentou a noite: Cristiano Rocha, como Bonzo; André Fernando, como Yamadori; Rogério Miúra, como Comissário; Daiana Melo, como Kate. Quase todos desempenharam bem os seus papéis. Gostei especialmente do Goro de Wagner Moreira. E que bonito timbre mostrou Daiana, em seu curto papel. Bom essa turma ganhar experiência de cena! Já o Coral Lírico de Minas Gerais, em uma formação camerística, fez um ato I com alguns desencontros, melhorando no bonito coro “a bocca chiusa”.
Mas foi a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais a catalisadora das maiores dificuldades de se montar uma ópera ao ar livre, ainda mais em um jardim. Diz o programa – muito bem feito, por sinal – que “a posição da orquestra e seu tamanho convencional precisaram se adaptados ao espaço”. Até aí, sem problemas. Mas é válido questionarmos até que ponto essas adaptações influenciam ou não a plenitude estética da obra. No desafio de equilibrar-se sonoramente com os cantores, também microfonados, infelizmente a orquestra não conseguiu inserir-se ativamente como elemento dramático, nem potencializar os personagens com os belos leitmotive. Mesmo com o som amplificado, mesmo admitindo o tom intimista dessa versão, é difícil sustentar Puccini com um naipe de cordas de apenas 4 primeiros-violinos, 3 segundos-violinos, 3 violas, 2 cellos e 2 baixos, como informaram os créditos. Essa lacuna sonora era mais evidente quando a música demandava um pathos mais intenso (no Piccolo Adio, por exemplo). Uma pena, pois isso acabou empalidecendo as possibilidades de nuances e contrastes dinâmicos que, imprescindíveis, teriam sido melhor captados em condições acústicas mais naturais e com o staff orquestral completo.
Um “bravo” ao maestro Gabriel Rhein-Schirato, que regeu com muita clareza rítmica. Fez o que pode para vencer a distância que separava seus músicos dos solistas, conseguindo coordenar o espetáculo com eficiência. Dadas as condições, isso já é muito. Registre-se que o naipe de cordas, pelo menos da forma como se apresentou, possui significativas oportunidades de melhoria do padrão de sonoridade. Um desafio vital a ser encarado, e que nunca tem (ou pode) ter fim.
No final, por tudo o que se viu e ouviu, teve-se a impressão de um espetáculo com poucas chances de se afirmar memorável. É, todavia, artisticamente digno, válido e em nenhum momento de mau gosto. Esperamos que a Fundação Clóvis Salgado programe mais títulos interessantes para o ano, dessa vez contemplando o Palácio das Artes. Quanto maiores forem as intenções artísticas (e principalmente os resultados), mais saberemos sentir o nosso tradicional teatro como um espaço florido de emoção, tal como se estivéssemos, por exemplo… em um jardim.
Leonardo Steffano
Fonte: http://www.movimento.com/
Sob tais premissas, a Fundação Clóvis Salgado iniciou sua temporada operística em solo mineiro com uma proposta ousada: encenar Madame Butterfly, de G. Puccini, no Jardim Japonês do Jardim Zoológico, que adorna a famosa região da Pampulha, em Belo Horizonte.
A ópera, com seus meios-tons e intimista que só, foi retumbante fracasso em sua estreia em Milão, em 1904. Puccini persistiu e com alguns ajustes levou-a novamente ao palco quatro anos depois, desta vez coroado. No eixo, a trágica história de amor de uma gueixa (Cio-Cio-San) por um oficial da marinha estadunidense (Pinkerton). Mais do que isso, a própria (in)compreensão cultural do amor e das instituições, como o casamento e a religião. Arte atemporal num mundo volátil de (des)encontros e (des)caminhos, a que Puccini expressou ser sua ópera “mais sentida”. Em Butterfly, o melodismo indefectível do compositor é sublinhado por motivos tipicamente orientais, silêncios e tensões que iluminam delicadamente os espectros dramáticos. Na aurora do século 20, a sublimação mais profunda do verismo italiano, libreto eternamente comunicável, posto que humano, demasiadamente humano.
Uma história com tamanhas sutilezas, refinamentos, pausas visuais e sonoras requer, sobretudo, concentração para ser admirada em sua plenitude. Despojado de qualquer “pré-conceito” nos apoderamos do bonito jardim, com suas lanternas, pontes, lago, flora, casa de chá, pedras… a expectativa era que esse conjunto visual criasse um estado de espírito específico que nem mesmo o frio, a plateia deseducada, a música amplificada e outros mil ruídos e distrações seriam capazes de melar a experiência.
Tendo ouvido pessoas que assistiram às récitas anteriores reclamarem de vários pontos cegos no cenário e dificuldades para se ler as legendas, tentei me posicionar à frente. Mas ainda assim, a geografia do jardim (árvores, pedras…) impede o acompanhamento de vários detalhes. É de se imaginar que a diretora Lívia Sabag deva ter tido um grande desafio para solucionar o espaço cênico. Ainda que a trama não permita distanciar-se muito do centro de gravidade (a casa), particularmente, esperava que os elementos do jardim fossem melhor aproveitados, a fim de enriquecer o diálogo entre o espaço e a ação musical. Não sei, contudo, se isso se deveu à escolha da diretora ou – o que mais provável – a alguma inviabilidade técnica ou até mesmo ambiental. Cenas bonitas ocorreram, como na apresentação de Pinkerton a Cio-Cio- San, no ato I. Mas tudo poderia ter sido mais valorizado fosse a iluminação de Wagner Pinto mais criativa. Melhor comunicação tiveram os figurinos de Veridiana Piovezan, elegantes, sóbrios, sem aqueles rococós carnavalescos que muitas vezes se costumam aplicar nos trajes orientais.
OS SOLISTAS
O Pinkerton de Fernando Portari não é o aventureiro frívolo que pode incorrer nas interpretações mais rasteiramente maniqueístas; tampouco, é a antítese perfeita da ingênua gueixa apaixonadinha. Portari desvela uma alma finamente mais complexa, que também sofre e se compadece em frêmitos de remorso, amor e medo. Essa abordagem psicológica do personagem refletiu-se em sua linha de canto, bastante atenta às nuances. Tecnicamente, impecável. Impressiona o alto padrão de sonoridade nos diferentes registros, imprimindo aquela coerência que permite ao cantor abusar dos recursos de expressão – nunca como simples efeito. Assim foi no Viene la sera, o dueto de amor do ato I, e no Addio, fiorito asil, do ato III.
A minha Cio-Cio-San “de-partir-o-coração” tem aquele fraseado macio com os agudos redondos, um timbre esmaltado e uniforme, capaz de matizar desde a delicadeza (dueto Scuoti quella fronda di ciliegio) até os temperamentos mais pungentes (atos II e III). É desafiadora a escrita de Puccini para a protagonista – demanda-se um soprano versátil para expressar maior leque de emoções, com trânsito fluente tanto nas passagens da região média/grave, quanto na região mais aguda. Eiko Senda é uma das intérpretes mais requisitadas para o papel de Cio-Cio-San no Brasil. Ainda que ela não seja a minha idealização técnica perfeita para o personagem, é justo dizer que conseguiu evoluir ao longo do espetáculo. Eiko foi se adaptando às exigências mais dramáticas da partitura na medida em que a desventura de sua heroína se projetava fatal. Sua Un bel dì vedremo foi correta e, a partir daí, cantou mais desenvolta. Minha percepção: seus momentos sublimes se impuseram mais pelo conjunto da dramaticidade cênico-vocal do que propriamente pelo acabamento exclusivamente sonoro. Se por um lado tivemos uma carência aí, por outro tivemos um desempenho plenamente funcional ao espetáculo, e que não foge à integridade daqueles que, mais do que vocalistas, conseguem dimensionar-se artistas.
Luciana Monteiro de Castro, que é meio-soprano e professora em Belo Horizonte, cantou bem a sua Suzuki, com a implícita mistura de altivez e doçura que o papel é capaz de ofertar. Douglas Hahn valeu-se de sua bela pasta de barítono para dar autoridade consular ao seu Sharpless, se bem que cenicamente poderia ter sido mais perspicaz.
Um elenco jovem ornamentou a noite: Cristiano Rocha, como Bonzo; André Fernando, como Yamadori; Rogério Miúra, como Comissário; Daiana Melo, como Kate. Quase todos desempenharam bem os seus papéis. Gostei especialmente do Goro de Wagner Moreira. E que bonito timbre mostrou Daiana, em seu curto papel. Bom essa turma ganhar experiência de cena! Já o Coral Lírico de Minas Gerais, em uma formação camerística, fez um ato I com alguns desencontros, melhorando no bonito coro “a bocca chiusa”.
Mas foi a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais a catalisadora das maiores dificuldades de se montar uma ópera ao ar livre, ainda mais em um jardim. Diz o programa – muito bem feito, por sinal – que “a posição da orquestra e seu tamanho convencional precisaram se adaptados ao espaço”. Até aí, sem problemas. Mas é válido questionarmos até que ponto essas adaptações influenciam ou não a plenitude estética da obra. No desafio de equilibrar-se sonoramente com os cantores, também microfonados, infelizmente a orquestra não conseguiu inserir-se ativamente como elemento dramático, nem potencializar os personagens com os belos leitmotive. Mesmo com o som amplificado, mesmo admitindo o tom intimista dessa versão, é difícil sustentar Puccini com um naipe de cordas de apenas 4 primeiros-violinos, 3 segundos-violinos, 3 violas, 2 cellos e 2 baixos, como informaram os créditos. Essa lacuna sonora era mais evidente quando a música demandava um pathos mais intenso (no Piccolo Adio, por exemplo). Uma pena, pois isso acabou empalidecendo as possibilidades de nuances e contrastes dinâmicos que, imprescindíveis, teriam sido melhor captados em condições acústicas mais naturais e com o staff orquestral completo.
Um “bravo” ao maestro Gabriel Rhein-Schirato, que regeu com muita clareza rítmica. Fez o que pode para vencer a distância que separava seus músicos dos solistas, conseguindo coordenar o espetáculo com eficiência. Dadas as condições, isso já é muito. Registre-se que o naipe de cordas, pelo menos da forma como se apresentou, possui significativas oportunidades de melhoria do padrão de sonoridade. Um desafio vital a ser encarado, e que nunca tem (ou pode) ter fim.
No final, por tudo o que se viu e ouviu, teve-se a impressão de um espetáculo com poucas chances de se afirmar memorável. É, todavia, artisticamente digno, válido e em nenhum momento de mau gosto. Esperamos que a Fundação Clóvis Salgado programe mais títulos interessantes para o ano, dessa vez contemplando o Palácio das Artes. Quanto maiores forem as intenções artísticas (e principalmente os resultados), mais saberemos sentir o nosso tradicional teatro como um espaço florido de emoção, tal como se estivéssemos, por exemplo… em um jardim.
Leonardo Steffano
Fonte: http://www.movimento.com/
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