"AFORISMOS, DESAFOROS E SUAVES INJÚRIAS". TEXTO DE RICARDO LABUTO GONDIM NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.
Sábado tive uma noite daquelas. Voltei pra casa dizendo que “foi tudo um grande erro” e acordei repetindo o mantra mais popular do hemisfério: “Nunca mais beberei”.
Tudo começou
com uma virtuosa água tônica, corrompida noventa minutos mais tarde por uma
bebida de cor azulada. Uma exótica aventura etílica que alguém aprendeu a fazer
em um vilarejo úmido, trinta milhas ao norte de Trichinópoli. Pelo que me
lembro, a mistura envolvia tudo que o barman tinha na prateleira e alguns
derivados do petróleo. Suponho ter ouvido um gato miando desesperadamente e um
liquidificador, mas não tenho certeza. Sei que durante os trabalhos houve um
princípio de incêndio, logo controlado. Como algum infeliz salvou a
coqueteleira, estou aqui ‘fechando a conta’; pondo o cargo à disposição do
Criador.
Mesmo com
neurônios irremediavelmente perdidos e algumas sinapses em estado de latência,
as seduções da fama e de uma riqueza indecente me levam a escrever. Não tenho
escolha: dividirei o mau-humor com você. Minha assistente, Miss Eleanor Ariadne Pibble digitará o texto, pois estou vendo
todas as teclas ddoobbrraaddaass. Se algo sair errado a culpa é dela.
A crítica
inglesa é a mais influente do mundo: disseram que Colin Davis e Simon Rattle
eram grandes regentes e até os alemães acreditaram.
Às vezes me
vejo pensando que não podemos perdoar aos ingleses a invenção de Andrew Lloyd
Webber (o túmulo da música no Ocidente), Colin Davis e Simon Rattle. Então me
lembro, eles também inventaram Shakespeare e Lord Byron.
Borges
escreveu que organizar a estante de livros é também um modesto exercício de
crítica. Aplicando o mesmo princípio à minha discoteca, julguei prudente omitir
qualquer vestígio de Rattle. Vai que você me visita?
Não pude
omitir Davis por sua parceria com a orquestra mais equilibrada do mundo, a
Concertgebown de Amsterdã.
Se o DVD de
Leopold Stokovsky pela EMI tem como irreparável defeito o próprio
Stokovsky, tem também Pierre Monteux como bônus, o que justifica abrir o cofre.
Monteux rege O Aprendiz de
Feiticeiro com a meticulosidade e precisão de quem estreou a Sagração da Primavera. Menina, menino,
você precisa ver isso. Rattle, eu lhe asseguro, jamais viu.
O repórter
para Toscanini: “Que imagem o senhor tem diante de si quando rege a
Heróica?”Toscanini, ignorou as possibilidades retóricas e marqueteiras da
pergunta: “Allegrocon brio”.
O repórter
para Otto Klemperer: “Por que o senhor só rege com partitura?” “Porque eu sei
ler música”.
O crítico
Omar Castellan definiu a Filarmônica de Viena em uma frase memorável: “a mais
sensual das orquestras”. O jeito inesperado como ela reage ao toque de cada
regente não deixa dúvidas: é a fêmea da espécie.
Uma garota bonita
pediu a Brahms que autografasse sua sombrinha. Ele escreveu dois ou três
compassos do Danúbio Azul e
acrescentou: “Infelizmente não é minha”.
Uma garota
não tão bonita perguntou a Schubert: “Por que você só compõe música triste?” O
pobre Franz respondeu: “E por acaso existe outra?”.
Um crítico
elegante poderia dizer que, apesar da técnica irrepreensível e do som
extraordinariamente cristalino que extrai do piano, Alfred Brendel é um músico
desprovido de imaginação. Eu, que sou desprovido de elegância, acho Brendel um
chato.
A crítica
mais fulminante que já li foi disparada pelo insuperável Mário Henrique
Simonsen, que chamou Ivo Pogorelich de “o pianista mais bonito do mundo”. Mesmo
entrando em anos, a fama do músico permanece: o público ainda confunde
velocidade com virtuosismo.
Não fique
chateado se você gosta de Davis, Rattle, Stokovsky (que Simonsen chamava de
“maestro de Hollywood”) e Brendel. Digo isso porque amo Schnabel, Solomon,
Curzon, Anda, Skoda, Mengelberg, Weingartner, Mitropoulos, Toscanini, Monteux e
muitos outros intérpretes que a maioria das pessoas não conhece porque só
existem em gravações comprometidas pelo tempo.
Em estúdio,
os melhores engenheiros de gravação conseguem fazer com que um Steinway – construído para uma sala
de concerto de dois mil lugares – se pareça com um piano. Pelo sim, pelo não,
Gulda não arriscou, e gravou as sonatas de Beethoven com o Börsendorfer. Tenho a versão em LP
guardada por dois mastins, três gansos, quatro klingonse um hamster
selvagem.
Quem assistiu
à série The Music ofman de
Yehudi Menuhin (no Brasil, A Magia da
Música), deve lembrar-se da ira do célebre violinista profissional e
maestro amador contra Glenn Gould. O episódio mostra Gould ‘regendo’ o
engenheiro durante a seção de mixagem dos cinco ou seis microfones que usou
para gravar o piano. O que Menuhin chamou de ‘falsificação’ eu chamo de
‘integridade’. Gould entendeu que uma gravação é uma gravação. Em sua busca
obsessiva pela clareza, abdicou de tudo. Até mesmo do realismo. Às vezes, da beleza
de som.
Volta e meia
alguém escreve sobre a ‘discussão pública’ entre Glenn Gould e Bernstein antes
da execução do Concerto n. 1 de Brahms em 6 de abril de 1962. Revogando meio
século de mexericos, informo que não houve discussão. Bernstein surgiu sozinho
no palco, expôs o assombro perante a dilatada interpretação do pianista e lhe
fez um elogio retórico – ainda assim, deselegante. Gould entrou na sala sem
dizer nada, sentou ao piano e tocou em câmera lenta. Há quem não tolere ouvir,
há quem reconheça uma beleza inquietante, mas não há quem permaneça
indiferente. Esse foi o primeiro toque do gênio. O segundo é que poucas vezes
no mundo da música um artista aceitou a oposição do outro com a nobreza fidalga
de Glenn Gould – que testificou a eloquência ensurdecedora do silêncio.
Não importa
se você aprova ou rejeita a leitura que Gould fez de Brahms. O que importa é o
risco. É necessário. Como desafiou Billy Wilder: “Mostre-me um homem que nunca
teve um fracasso e eu lhe mostrarei um medíocre; ele não arrisca, só trabalha
em segurança.”
Bernstein –
que foi um grande músico – aprendeu alguma coisa naquela noite. Vinte e cinco
anos mais tarde ousou gravar com a Filarmônica de Nova Iorque a mais lenta
versão da VI Sinfonia de Tchaikovsky: 58:48”. Nem mesmo Sergiu Celibidache
superou a proeza: sua versão de 1997 com Munique é um minuto e nove segundos
mais curta.
Ouvi a
última gravação da I Sinfonia de Brahms com Celibidache, que é um concerto para
tuberculose e orquestra. Concluí que no dia em que os engenheiros gravarem as
orquestras com a mesma qualidade com que gravam as tosses, a audiofilia estará
concluída.
Há muitos
anos li no jornal a entrevista de um engenheiro de gravação aposentado,
que havia trabalhado com os gigantes da regência. Ele confessou que nunca
entendeu o que os maestros – especialmente Karajan – queriam dizer quando lhe
pediam um som ‘tridimensional’: “Só conheço dois tipos de som: o alto e o
baixo. O resto eu nunca escutei”. Pessoalmente, acho que acústica e engenharia
de gravação são ciências tão refinadas e complexas, que sobre muitos dos êxitos
que conhecemos pairam as obras do Acaso e da Providência.
No Requiem de Verdi regido por Toscanini, no
Tuba Mirum você pode ouvir o maestro gritando “Piu forte! Piuforte!”. Durante a transmissão ao vivo, o coro
atendeu o comando do maestro de modo tão eficaz que derrubou as máquinas e os
engenheiros. Foi preciso usar o registro do ensaio – que um técnico muito
ajuizado teve a prudência de gravar.
Toscanini
pediu a um soprano famoso pelo dó de peito – e pelos próprios peitos – para
cantar uma dada frase assim, assim. Lá pela quarta tentativa a mulher ensaiou
um protesto. O maestro desceu do pódio e apertou vigorosamente os ‘atributos’
da dama: “Ah, madame, se isso fosse cérebro!”.
Ainda
Toscanini: uma diva agiu como diva durante todo o ensaio. Ao contrário do que
se esperava, Toscanini não explodiu – foi até suave: “Senhora, queria lhe dizer
que as estrelas estão no céu. Aqui em baixo só existem bons e maus músicos. A
senhora pertence ao grupo dos maus”.
Puccini e
Toscanini brigaram. No Natal, o compositor tinha por tradição enviar panetones
aos amigos. Esquecendo-se da cizânia, a secretária postou o acepipe para
Toscanini. Puccini mandou um telegrama: “Panetone enviado por engano”. Toscanini
respondeu: “Panetone comido por engano”.
Anos mais
tarde o maestro regeu a estréia de Turandot.
No ponto em que o manuscrito autógrafo passava da caligrafia de Puccini à de
Alfano – que completou a obra –, Toscanini calou a orquestra e voltou-se para o
público do Scala de Milão: “Aqui o maestro morreu”. O público se levantou, saiu
em respeitoso silêncio e voltou no dia seguinte para ouvir a conclusão da
ópera.
Toscanini definia a si mesmo como um “contandino”, um camponês.
Definitivamente ele não era um intelectual como Furtwängler, que vivia cercado
de literatos e filósofos, ou uma personagem do jet set como Karajan. Mas foi um homem extraordinário. Pra
você ter uma ideia, quando a Guerra acabou Toscanini enviou cerca de dez mil
pares de sapatos à Itália porque seu povo estava descalço. Pagou do próprio
bolso. E implorou – inutilmente – pelo anonimato. Sempre repito isso à multidão
dos ‘espíritos penetrantes’, que se julgam ‘superiores’ porque ouvem a música
que toca o coração teimando em chamá-la de “erudita” – coisa que, aliás, não
existe.
Além da
esfera das quiálteras, Bach, Mozart, Haydn e Beethoven eram homens muito pouco
instruídos. Os erros ortográficos nos cadernos de conversação de Beethoven
ainda desafiam os gramáticos.
Conheço
ouvintes que leem as partituras do Wozzecke
da Elektra com uma desenvoltura que
eu só alcanço nos quadrinhos do Mickey. Nenhum deles reconhece essa tal de
“música erudita”. Apurei que gostam apenas de “música”. Ou de “música escrita”.
É mais bonito.
O Danúbio Azul, que infelizmente não é de
Brahms, é “música erudita”?
Se a música
é “erudita”, que credencias devo exibir além da vaidade para me qualificar como
ouvinte?
Voltemos aos
clássicos. Voltemos à música.
Karajan foi
gravar o Don Quixote de Strauss com
Rostropovich. Quando o violoncelo entrou, um som terrível. “Slava”, perguntou o
maestro, “sente-se bem?”Rostropovich sorriu: “Sim, mas veja, é um cavalo muito
velho o que estou montando”.
Depois de
gravar o ciclo de Beethoven na década de 1970, Karajan foi descansar nos Alpes.
Ouviu as prensagens de teste do material mixado e telefonou para a DG:
“Sinto muito, senhores, mas teremos de refazer tudo desde o princípio”. Os
engenheiros e a direção da gravadora entraram em pânico, aquilo ia custar uma fortuna.
Quando o maestro voltou de férias, levaram-no ao estúdio e imploraram para que
ouvisse outra vez – e ele achou perfeito.
Karajan
decifrou o mistério: a altitude dos Alpes havia alterado sua pulsação. Segundo
ele, os tempos da música têm relação direta com o ritmo cardíaco do intérprete.
A Fundação Karajan pôs-se a estudar cientificamente o fenômeno sob o
escárnio da imprensa alemã, que chamou a pesquisa de “diletantismo”. Muito
inadvertidamente os resultados explicaram porque três maestros morreram regendo Tristão e Isolda, dois deles
praticamente no mesmo trecho do Terceiro Ato.
Muitos anos
antes,Toscanini intuitivamente havia compreendido a questão, acelerando
seus tempi na medida em que
envelhecia. Por isso, ao contrário dos demais regentes, suas gravações finais
podem ser consideravelmente mais rápidas que versões anteriores. E também por
isso é preciso avaliar com cuidado as teses de Celibidache – que criou um mito
sobre o ‘tempo na música’.
Jovem,
Celibidache era um moreno bonito sustentado no pódio pela hipertrofia do eu.
Francamente, tinha mais aparência do que valor. Mas o talento estava lá. Por
volta dos quarenta anos revelou-se um regente muito maior do que prometia a
“frívola juventude” – uma espécie de Henrique V da música. Em idade avançada,
sua perspectiva do tempo mudou – mais por efeito da velhice do que pela virtude
de uma filosofia zen-budista da regência. Seus tempi arrastados – que exaltam Bruckner, são aceitáveis em
Brahms, mas destroem Beethoven – tendem ao paroxismo. Uma linha de transição
numa partitura qualquer soa enorme, grandiosa, monolítica...
Menina,
menino, aqui há sabedoria. Algo que me escapa, que não posso compreender, mas
intuir. O que hoje entendo como um equívoco pode significar outra percepção.
Uma transcendência.
A música é a
máxima expressão do Humano. E o intérprete, a voz de Deus, da Civilização e
dessa mesma Humanidade. Mas na medida em que ele mesmo caminha para o Infinito,
tende ao monumental e ao estático. Creio que isso ocorre porque em nós existe a
centelha do Sagrado... que no ocaso da vida sente a nostalgia da Eternidade.
Não tema a
ressaca. Viva o sábado em cada dia.
Ricardo Labuto Gondim é teólogo e escritor.
Autor de “Deus no labirinto” (contos),
“B” (novela policial) e
“Corrosão (ficção científica, no prelo).
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