EUGENE ONEGIN : A CELEBRAÇÃO DA POESIA DE DOIS GÊNIOS NO THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO. ARTIGO DE FABIANA CREPALDI NO BLOG DE ÓPERA E BALLET.

Ainda me lembro do forte impacto que a ópera Eugene Onegin (ou Ievgueni Oniéguin) exerceu sobre mim quando a vi pela primeira vez, em 2008, no cinema, na versão de Robert Carsen para o Metropolitan Opera. Sob a regência de Valery Gergiev, o elenco contava com Renée Fleming, Dimitri Hvostovsky e Ramón Vargas. Fui totalmente arrebatada pela música de Tchaikovsky, pela história de Pushkin, pelos personagens, pela alma russa e pela dramaticidade da cena final (à qual voltarei adiante). Essa ópera se tornou, desde então, uma das minhas favoritas e foi com grande prazer que assisti às récitas do Theatro Municipal de São Paulo com os dois elencos distintos.
Composta por Tchaikovsky entre 1877 e 1878, Eugene Onegin tem libretto baseado na obra prima de mesmo nome de Alexander Pushkin (1799-1837), o grande poeta russo. Como bem definiu Leslie Kearney, “é a história da desconexão humana em grande escala”.

Konstantin Somov – Alexander Pushkin (1899)
A forma utilizada por Pushkin difere bastante daquela utilizada pelos autores da escola realista (Dostoievski, Tolstoi, etc), anos mais tarde. Nessa forma literária, com a qual somos mais familiares, o narrador apresenta minuciosamente o ambiente (russo) em que a trama se desenrola, permitindo ao leitor total inserção no contexto, e, narrador onisciente que é, expõe e explora os aspectos psicológicos dos personagens. Anterior a esse movimento, Pushkin emprega em sua novela em versos Eugene Onegin linguagem irônica e evasiva, sugerindo julgamentos e ideias não totalmente explicitados. Publicada em partes entre 1823 e 1831, em um tempo em que a censura e a repressão estavam presentes, reflete, muitas vezes de forma velada, hábitos, dramas, vícios e preconceitos da sociedade da época. Na maior parte do tempo a palavra está com o crítico narrador. Embora não se coloque diretamente como personagem da história, o narrador refere-se a Onegin em um primeiro momento como um amigo seu e, mais tarde, como o herói por ele criado. Como narrador testemunha, ele se permite fazer julgamentos diversos. Pouco descritivo e nada detalhista, o narrador deixa uma série de lacunas a serem preenchidas pelos leitores seus amigos, que compreendem as inúmeras referências literárias, nem sempre óbvias ao leitor comum. Altamente influenciado pela literatura romântica ocidental de sua época, durante toda a novela Pushkin dialoga com vários autores, principalmente Byron.
Mais que pela história, Eugene Onegin tornou-se célebre pela maestria do narrador. Não é de se estranhar, portanto, que a decisão de Tchaikovsky de transformar a obra de Pushkin em ópera tenha causado, no mínimo, espanto. O libretto, formado em grande parte por versos do próprio Pushkin, foi feito por Tchaikovsky em parceria com seu amigo e poeta Konstantin Shilovsky.
Quando, em 1877, estava procurando tema para compor uma ópera, Tchaikovsky havia visto Carmen, de Bizet, que muito o impressionou, e Aida, de Verdi, que não o agradou por se tratar de tema grandioso e distante de seu mundo. Buscava um tema como qual se identificasse, como Carmen, e não distante e fantasioso, como Aida. “Quão feliz me sinto por estar livre de princesas etíopes, faraós, envenenamento e toda essa espécie de convenções pomposas”, escreveu Tchaikovsky a seu irmão Modest, em 18 de maio de 1877, comentando a sua escolha. “Onegin é cheio de poesia. Eu sei muito bem que não haverá efeitos cênicos ou muita movimentação nessa ópera; mas a qualidade lírica, a humanidade e a simplicidade da história, e o texto escrito por um gênio, serão mais que suficientes para compensar essas falhas.” Além do texto – ele deve ter se esquecido disto — a música também seria composta por um gênio.
Com todas essas características anti-operísticas, Tchaikovsky não chamou Eugene Onegin de ópera, mas de “cenas líricas”. É, de fato, uma denominação bastante de acordo com o caráter lírico, intimista predominante. Por isso mesmo, Tchaikovsky acreditava – e felizmente estava errado! – que sua obra jamais faria parte do repertório dos grandes teatros de ópera. A estreia se deu em março de 1879, com elenco formado por estudantes do Conservatório de Moscou, no Teatro Maly, em Moscou – nome que significa pequeno, em oposição a Bolshoi (grande). Ao ver, no Theatro Municipal de São Paulo -- cujas dimensões de palco, sala e orquestra se adéquam perfeitamente ao espírito da obra –, a produção intimista, sem grandiosidades desnecessárias, sem cenários rebuscados, sem exageros por parte dos intérpretes, senti-me diante de uma autêntica recriação da obra prima de Tchaikovsky. Marco Gandini na direção, Andrea Tocchio na cenografia e Caetano Vilela na iluminação acertaram na medida.

Teatro Maly (Moscou)
Muito se criticou -- e ainda se critica -- Tchaikovsky pela adaptação de Eugene Onegin para ópera. A tendenciosa comparação sempre busca mostrar a superficialidade do compositor em contraponto ao célebre poeta e romancista russo. Os defensores de Tchaikovsky lembram que na ópera há um elemento novo, a música, através da qual é possível transmitir algumas das sensações passadas por Pushkin. Para Richard Taruskin em seu artigo “Chaikovsky and the Literary Folk”, a ironia de Pushkin e os muitos sentidos contidos em seus versos devem ser procurados na música de Tchaikovsky. Porém, a mais significativa argumentação, e que traz uma comparação com sustância, é o de Boris Gasparov no seu brilhante texto “Eugene Onegin in the age of realism”, parte do livro “Five Operas and a Symphony: words and music in Russian culture”. Gasparov observa, antes de mais nada, que a ópera Eugene Onegin, olhada isoladamente, sem qualquer comparação com sua fonte literária, é uma obra de grande qualidade – uma obra prima, eu diria! Isso posto, se quisermos partir para uma comparação construtiva e que nos faça compreender com mais profundidade as duas obras e a alma russa, devemos lembrar que os autores da novela (Pushkin) e da ópera (Tchaikovsky) viveram em épocas e sociedades diferentes, com estéticas e pensamentos distintos. Do ponto de vista literário, Pushkin até chegou a ironizar o romantismo, embora dele tenha sido parte. Já quando Tchaikovsky escreveu a ópera, quase cinquenta anos mais tarde, o estilo realista estava no auge. “O contraste entre a linguagem evasiva da novela e direta da ópera representa mais que a impossibilidade de manter a maneira de expressão elíptica vertiginosa de Pushkin em virtude de seus personagens terem adquirido dimensão física no palco. Ele reflete a profunda diferença entre dois mundos separados por quarenta ou cinquenta anos”, resume Gasparov.
Na ópera de Tchaikovsky, as palavras do narrador são atribuídas aos personagens. Desse modo, as impressões que em Pushkin o narrador formou sobre eles são trocadas por uma exposição direta de suas características psicológicas: nos monólogos passamos a conhecer seus pensamentos em uma situação similar à criada pelo narrador onisciente do realismo. A complexidade e profundidade da música desses monólogos (como a cena da carta, a ária de Lenski, etc) contrasta com a música bem russa, doméstica, do dia-a-dia, presente nos coros e em situações diversas, que busca ambientar o ouvinte na sociedade russa camponesa da época. Desse modo, a música também exerce papel similar ao do narrador da literatura realista: expõe a complexidade psicológica dos personagens e descreve fielmente o ambiente, a sociedade. A novela de Pushkin é, assim, transportada para o realismo da época de Tchaikovsky.
Antes mesmo de a cortina se abrir, na introdução orquestral, ouve-se um tema descendente que se repete algumas vezes, como um lamento. É o tema de Tatiana. Como nos ensina Taruskin, o tema se inicia no sexto grau da escala menor e desce até a fundamental. Segundo ele, esse é o intervalo característico da música doméstica russa do início do século XIX. Esse intervalo de sexta menor, aliás, acompanhará Tatiana (e também Lenski) durante toda a ópera. Logo na primeira vez que o referido tema de Tatiana soou na estreia de Eugene Onegin no Theatro Municipal, já foi possível perceber a andamento vivo que o maestro francês Jacques Delacôte optou por empregar. Essa feliz escolha rendeu-lhe justos e calorosos aplausos.
No início da primeira cena da ópera, em um duplo dueto que às vezes passa despercebido ou é até suprimido (mas, felizmente, não em São Paulo!), é apresentada uma das discussões centrais do romance de Pushkin: a oposição entre ficção e realidade. Duas jovens, Tatiana e sua irmã Olga, repletas de sonhos, cantam, fora do palco, versos de poema da juventude de Pushkin que fazem referência ao autor romântico inglês Richardson. No palco, Madame Larina, mãe das jovens, e a ama, para as quais o romantismo deu lugar às amarguras da realidade, lembram os tempos idos em que elas também cantavam. Mas “a voz do cantor noturno do amor” dá lugar a um verso irônico e até amargo de Pushkin. Se não foi possível o romance com um Grandison, paciência, conformemo-nos e acostumemo-nos com quem nos foi imposto pela necessidade. Citando Chateaubriand, “O hábito é-nos dado pelo céu para ocupar o lugar da felicidade.” Ao cantar essa frase, de uma dança colorida e cheia de vida, a música de Tchaikovsky torna-se, nos últimos compassos, sombria e grave. Na montagem bela e inteligente do Theatro Municipal de São Paulo, que alguns momentos faz lembrar a de Carsen para o Metropolitan Opera, as duas veteranas estão imersas em uma ambientação que sugere o outono. Em ambos os elencos, mas principalmente no da estreia, nesse início já foi possível perceber a grande qualidade do quarteto feminino de cantoras.
A primeira cena segue e chega Vladimir Lenski, namorado de Olga, acompanhado por seu amigo, Eugene Onegin. No livro, Pushkin introduz longamente seus personagens, especialmente Onegin, um típico herói (ou melhor, anti-herói) byroniano, a versão pushkiniana de Don Juan. Farto de mulheres e bailes da alta sociedade de São Petersburgo, após a morte do tio Onegin foi para o campo para administrar a propriedade que havia herdado. Também no campo, onde se julgava superior à simples população, sentia-se entediado. Seu único amigo, embora de temperamento oposto, era o poeta Vladimir Lenski, seu vizinho. Ao conhecer as irmãs, Onegin questiona a escolha de Lenski e diz que se fosse ele poeta, teria escolhido Tatiana. De fato, Olga é apresentada como frívola, superficial, contentando-se com as pequenas coisas do dia a dia para se alegrar. Já Tatiana, incessante leitora do romantismo, sobretudo francês, sonhava, refletia, observava. Esse diálogo sobre a escolha é um dos indícios do tratamento dado por Pushkin a Lenski, um poeta doméstico, superficial, que se manteve na ópera. Merece destaque o dueto entre Lenski e Olga e, sobretudo, o belo arioso de Lenski, que será citado, musicalmente, em diversos momentos da ópera. Um exemplo está na próxima cena, quando Tatiana diz à ama que está apaixonada: na orquestra, ouve-se o tema cantado por Lenski.

Tatiana e Onegin. Konstantin Rudakov (1947)
Ao conhecer Onegin, aquele personagem que parecia chegar à sua casa diretamente de um romance de Byron, Tatiana mergulhou totalmente em seu sonho literário e sentiu-se apaixonada. Segue, assim, a segunda cena, a célebre cena da carta, por onde Tchaikovsky começou a compor e de onde derivou o tema de Tatiana que comentamos acima. Nas palavras do próprio Tchaikovsky: “Faltando ainda não apenas o libretto, mas também o plano geral da ópera, eu comecei a escrever a música da carta, sucumbindo a uma necessidade espiritual invencível de fazê-lo.” Sem conseguir dormir pela forte impressão que Onegin lhe causou, Tatiana, como Tchaikovsky, sucumbe a uma necessidade espiritual invencível e lhe escreve uma carta abrindo seu coração. Essa atitude, impensável para uma moça comum e submissa de sua época, revela o distanciamento de Tatiana das normas sociais e, ainda, o universo literário romântico em que vivia. Longa, com emoções e temas melódicos variados, a ária é um verdadeiro teste para a soprano. Além da técnica de canto, é necessário interpretação e inventividade para manter a atenção e a emoção do público por mais de 10 minutos de monólogo. Jovem, com voz segura e lírica, interpretação convincente, saiu-se extemamente bem a excelente soprano Svetlana Aksenova na estreia da ópera em São Paulo. No segundo dia, não há o que se reclamar de Talia Or, exceto o fato de não ter conseguido igualar o brilho de Aksenova. A ambientação dava uma impressão de delírio e a sempre ótima iluminação de Caetano Vilela foi se adaptando à música, tornou-se vermelha em momentos de maior paixão e levou, naturalmente, ao amanhecer. Em alguns momentos mais intensos, a direção posicionou a soprano à beira do abismo – em uma ponta do palco sobre a orquestra. No You Tube há uma preciosidade: o vídeo de uma das maiores Tatianas de todos os tempos, Galina Vishnevskaya, interpretando a ária da carta: https://www.youtube.com/watch?v=DdaGIuUqn04 (parte 1) ehttps://www.youtube.com/watch?v=bjw4_BpFa5U (parte 2).
Onegin era o anti-herói, não um personagem do romantismo francês. Ao ler a carta, embora comovido com a sinceridade de Tatiana, ele a rejeita com arrogância, alegando não ter pretensão de se casar, e passa-lhe um breve sermão. Tanto na ária da carta quanto no arioso de Onegin, Tchaikovsky utiliza os versos de Pushkin (porém de forma resumida no arioso). É interessante observar o contraste musical existente entre esses dois momentos. Enquanto a ária da carta é extremamente profunda e elaborada, tanto do ponto de vista melódico quanto da orquestração, o arioso de Onegin já é bem mais frio, direto, como o personagem. Há quem tenha observado que, ao contrário de Tatiana e Lenski, Onegin não tem ária marcante na ópera. Isso não é mero acaso, mas forma de se caracterizar os personagens, um dos pontos em que se faz presente, musicalmente, o narrador. “Totalmente imerso na composição – escreveu Tchaikovsky – eu me identifiquei de tal maneira com a figura de Tatiana que ela se tornou para mim uma pessoa real, juntamente com tudo o que a cercava. Eu passei a amar Tatiana, e estava furiosamente indignado com Onegin, que parecia para mim um almofadinha frio e sem coração.”
É impossível não apontar, aqui, a relação entre ficção e realidade também na vida de Tchaikovsky. Bem na época em que estava escolhendo Eugene Onegin como tema de sua ópera, também ele recebeu uma carta de amor de Antonina Milyukova. Segundo ele descreveu em carta a sua mecenas Nadezhda Von Meck, a carta – como a de Tatiana! – foi escrita com sinceridade e paixão. Tchaikovsky deixou a primeira carta sem resposta, mas respondeu à seguinte e se encontrou duas vezes, com ela. Não querendo ser ele um Onegin – ou talvez tendo ele encontrado uma encarnação de Tatiana –, casou-se com Milykova. O casamento durou poucos meses e foi traumático para ambos. Tatiana teve mais sorte que com Onegin que Milykova com Tchaikovsky. Se é provável que a obra literária tenha interferido na vida, o sentido contrário também o é: a carta de Milykova deve ter interferido no interesse de Tchaikovsky de compor a partir de Eugene Onegin.

Tchaikovsky e Milyukova em sua lua de mel, 1877
Ainda ecoando a melodia da carta, a terceira cena da ópera (primeira do segundo ato), se passa em uma festa tipicamente russa na casa dos Larins: a comemoração do dia do nome de Tatiana. Equivalente a uma comemoração de aniversário, é a comemoração do dia do santo que tem o mesmo nome da pessoa – no caso, o dia de Santa Tatiana. Na montagem de São Paulo, a indicação de que se trata de um baile doméstico é feita pela presença de um forno de pão no fundo. Um baile na frente do forno parece escolha um pouco caricata para indicar gente simples. Lenski insiste para que Onegin vá. No livro, argumenta que é festa para pouca gente. Ao encontrar toda a vizinhança no baile, Onegin resolve se vingar do amigo e começa a cortejar Olga. Frívola como é, ela logo gosta, corresponde, só dança com Onegin e Lenski, furioso, exige satisfação: o desafia para um duelo. No livro, Lenski simplesmente vai embora da festa e o desafio se dá depois, em uma mensagem enviada pelo aficionado por duelo, Zaretsky, que entra na ópera apenas na cena do duelo, como padrinho de Lenski. Na noite anterior ao duelo, Lenski escreve um poema que tornou-se a ária mais popular da ópera. Se no livro é poema cheio de clichês, na ópera é ária elaborada e de extrema beleza, sinal da simpatia que Tchaikovsky sentia pelo pobre poeta. Em São Paulo, Fernando Portari, na estreia, e Medet Chotabaev, no dia seguinte, saíram-se bem na ária de Lenski – especialmente Chotabaev, que começou a ópera sem muito brilho, mas foi crescendo e esbanjou pianíssimos e lirismo na ária.
Ao contrário da ópera, no livro, além dos envolvidos, ninguém fica sabendo que haveria duelo. O fato de ter ocorrido, aliás, fica claro, é uma marca dessa desconexão humana já citada. Lenski (no livro) já havia se reconciliado com Olga; Onegin enxergou o erro e o quão desnecessário era o duelo, mas não recuou por orgulho, porque o natural era aceitar o desafio; Tatiana e Olga de nada sabiam e, portanto, não podiam impedir. Na ópera, o dueto entre Lenski e Onegin, imediatamente antes do duelo, indica que os dois estavam cientes da estupidez do ato mas, mesmo assim, o orgulho não permitiu que recuassem. E num amanhecer coberto pela neve, Lenski foi abatido no primeiro tiro, da mesma forma em que, poucos anos mais tarde, outro poeta, justamente o que lhe deu vida – Pushkin – também seria abatido com apenas 37 anos. Aliás, Pushkin participou de cerca de trinta duelos! Mais que a trágica coincidência, esse número espantoso dá uma ideia de quão popular e socialmente aceita era essa forma de acertar as contas. Evidentemente, nem todos os duelos eram fatais: antes de pegar as armas, havia a tentativa de um acordo – o que não ocorreu no caso de Lenski e Onegin. A ambientação de inverno, branca, trouxe ao Theatro Municipal um clima bastante apropriado à cena – apesar de ser desnecessária a referência ao cemitério.

Ilya Repin - Duelo entre Onegin e Lenski (1899).

Após matar o único amigo, Onegin passa anos viajando. Enquanto isso, no livro (a ópera não cobre esse período), a superficial Olga logo esquece Lenski e se casa com um militar; Tatiana passar um inverno em Moscou em casa de parentes, levada pela mãe, para procurar algum pretendente. Quando Onegin retorna a São Petersburgo, vai a um baile oferecido pelo Príncipe Gremin (que no livro não tem nome), parente seu. Esse baile grandioso, com o qual tem início o terceiro ato, onde se dança a polonaise, é bem diferente daquele doméstico, rural, na casa de Tatiana, com a valsa e a mazurca, com o qual se iniciou o segundo ato. Nem é necessário buscar explicações sobre a forma de dançar e as circunstâncias em que se dançavam essas danças: com a orquestração, a inserção de temas mais elaborados e um certo caráter grandioso na introdução do terceiro ato, Tchaikovsky se encarrega de deixar bem evidente a diferença. Na bela ambientação paulistana, um painel no fundo representou, de forma simples e eficiente, o magnífico salão de baile do Palácio de Catarina. Conforme o corpo de baile dançava, no palco, ao som da polonaise, seus vultos eram refletidos no painel, dando um interessante efeito. Ao mesmo tempo em que suas imagens eram transportadas para dentro do salão, o que se via refletido eram apenas vultos, dando a impressão de fantasmas ou memória de tempos passados.

Salão de baile do Palácio de Catarina.
Onegin reconhece Tatiana e percebe o quanto ela está mudada, embora ainda introspectiva. Ele se dá conta de que em seu individualismo sua vida ficou vazia e descobre que está apaixonado por Tatiana. No livro, agora é ele quem escreve carta antes de, finalmente, conseguir que ela o receba. Na ópera, ele vai diretamente ao encontro. O monólogo desesperado de Onegin, na ópera, após reencontrar Tatiana, tem o conteúdo da carta. Musicalmente há referências aos trechos de maior agitação e dramaticidade da cena da carta (de Tatiana). É esse o momento mais dramático e elaborado da linha de Onegin. Isso é um indicativo da transformação psicológica sofrida pelo personagem. De heróis bayroniano, passa a sofredor romântico. Se na estreia o barítono Andrei Bondarenko, embora desempenhando bem o seu papel, não demonstrou grande brilho ou volume na voz, Kostantin Shushakov, extremamente jovem, que cantou no segundo elenco, tem voz clara, nítida e poderosa. Em lamentável acidente, a voz de Shushakov “quebrou” justamente em sua principal parte. Porém esse acontecimento pontual não comprometeu, de modo algum, sua ótima atuação.
Agora é Tatiana quem dá a lição a Onegin, explicando que é casada e não vai deixar o marido. Enquanto isso, é possível reconhecer, na música, temas da ária que Gremin acabou de cantar – e que Vitalij Kowaljow interpretou divinamente – dizendo que o amor não tem idade e o quanto ama Tatiana. Ela também se transformou. Como sua mãe no início da ópera, adaptou-se à realidade em detrimento de seus ideais românticos. A felicidade esteve tão perto, canta Tatiana e depois Onegin a acompanha. Porém, a desconexão foi mais forte, os tempos dos personagens não se encontraram, a felicidade não foi possível – restou, para Tatiana, o hábito.
No início, mencionei o impacto que a cena final me causou quando vi, pela primeira vez, Eugene Onegin dirigida por Robert Carsen. Nessa versão (que pode ser vista no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=FceRxe1CaQg ) Fleming e Hvorostovsky representam de forma bastante dramática a perda dessa felicidade que passou tão perto e deixaram escapar, dessa desconexão irremediável, dessa impossibilidade de se realizar o ideal romântico. Em São Paulo, a cena foi mais contida, mais de acordo com Pushkin, talvez. Como ponto positivo, a ambientação da cena final dialoga com a da carta, parece ser até um reflexo daquela, como se cada uma estivesse de um lado de um espelho. Porém, seus muitos reflexos luminosos a tornam difícil de ser visualizada. Quando Onegin entra, na direção de Gandini, ele agarra Tatiana. Isso até pode estar de acordo com o desespero do personagem. Porém, não com a mudança por ele sofrida, que o faz chegar humildemente, suplicando o amor de Tatiana. Em Pushkin e Tchaikovsky, ele se ajoelha a seus pés.
O que tivemos em São Paulo foi mais que uma comemoração dos 175 anos de nascimento de Tchaikovsky, como nos informa o programa. Foi uma maravilhosa celebração da alma russa e da poesia de dois gênios.
Fabiana Crepaldi

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