UM TROVADOR DE ALTO NÍVEL MUSICAL EM BELÉM. CRÍTICA DE LEONARDO MARQUES NO BLOG DE ÓPERA E BALLET
Mezzo Denise de Freitas tem uma das maiores atuações de sua carreira, acompanhada por grande elenco.
Em cartaz até este domingo, 1° de setembro, Il Trovatore (O Trovador) foi o segundo título apresentado no XII Festival de Ópera do Theatro da Paz, em Belém. A obra, em quatro atos e oito cenas, tem música de Giuseppe Verdi e libreto de Salvatore Cammarano (complementado por Leone Emanuele Bardare), por sua vez baseado no drama El Trovador, do espanhol Antonio García Gutiérrez.
O libreto
O Trovador é uma das óperas mais populares de que se tem notícia, devido, claro, à magistral música de Verdi. Sua poesia foi confiada ao napolitano Salvatore Cammarano, um dos grandes libretistas daquele tempo, que já havia trabalhado duas vezes com Verdi e que havia sido um dos principais colaboradores de Donizetti (foi o napolitano quem escreveu a poesia de Lucia di Lammermoor, por exemplo). Cammarano morreu antes de concluir o trabalho, ou, segundo outra versão, antes de concluir todas as modificações de que o compositor necessitava. Restando sua viúva e filhos em precárias condições, Verdi pagou à família pelo trabalho do poeta como se concluído estivesse e ainda acrescentou 100 ducados além do combinado.
Um amigo de Verdi, Cesare de Sanctis, contratou para o maestro o jovem poeta Leone Emanuele Bardare, que completou o libreto e ainda se encarregou dos ajustes necessários. Da correspondência de Verdi, pode-se depreender que saíram certamente da pena de Bardare as árias Il balen del suo sorriso e D’amor sull’ali rosee – ambas respondendo a solicitações expressas do compositor. É notório, ainda, que o próprio Verdi refez o texto da segunda cena do segundo ato e encurtou os versos finais da ópera.
Ferrando, o chefe da guarda, começa a ópera narrando uma história do passado, primordial para a compreensão da tragédia. Atualizados sobre os fatos, vemos Manrico e o Conde di Luna brigarem pelo amor de Leonora até a cena final, quando Azucena faz uma revelação que tudo esclarece, causando o derradeiro efeito catártico. Antes disso, peripécias e reviravoltas embalam o ouvinte sem que este perceba o tempo passar.
Azucena
Azucena é um caso à parte. Não seria qualquer exagero afirmar que ela é o centro dramático da ópera. A personagem é uma das maiores criações de Verdi, não somente para mezzosoprano, mas para qualquer registro vocal. Sua constante oscilação entre momentos de transe e de lucidez – alternando terríveis lembranças do passado, seu compromisso de vingar a mãe queimada na fogueira e o amor por aquele que criou como seu próprio filho – apresenta uma mulher, nas palavras do professor Sérgio Casoy no programa de sala, “neurótica, física e mentalmente exausta, estressada, que passara seus últimos vinte anos sem relaxar nem dormir direito.”
A intensa cena da cigana no segundo ato, desde Stride la vampa até o final de seu racconto é uma das mais emocionantes de toda a história da lírica e, quando interpretada por uma artista verdadeiramente qualificada, eleva a tensão a níveis estratosféricos. Uma artista de tal gabarito estava presente em Belém, como se verá adiante. Não é à toa que, para Verdi, a grande personagem feminina da ópera não era Leonora, mas sim Azucena. A propósito de esta parte ser secundária, opôs-se certa vez o compositor em carta a Francesco Maria Piave: “na verdade, não. É primeira, primeiríssima, mais bela, mais dramática, mais original que a outra (Leonora). Se eu fosse uma prima donna, faria sempre no Trovador a parte da cigana”.
A música
A história de Gutiérrez iluminou a imaginação de Verdi mesmo quando Cammarano, no início, não se mostrara muito entusiasmado com a proposta do compositor. Situada na Espanha do século XV, durante a Guerra Civil, a ópera é uma das criações mais genuínas do grande mestre. Sua inspiração parece fervilhar em melodias soberbas encaixadas uma após a outra, quase sem intervalo. O racconto de Ferrando no primeiro ato, o solo de Azucena após o coro de introdução e a grande ária do Conde, ambos no segundo ato, assim como a ária e a cabaletta de Manrico no terceiro ato, ou o grande solo de Leonora na abertura do ato final são exemplos definitivos da prodigalidade melódica de Verdi durante seu período médio.
Alternando momentos de lirismo, suspense, angústia, vigor e brutalidade, a música de O Trovador não encanta apenas pela sua riqueza vocal, mas também pela cor sinistra que, em muitos momentos, percebemos na orquestra. A orquestra cria a atmosfera para as vozes brilharem incandescentes de paixão. Amor, ódio, vingança, duelo, rapto, decapitação, suicídio e até uma criança queimada viva na fogueira são os ingredientes desta obra-prima. Apesar do seu lado dramalhão, uma obra que possui todos esses ingredientes e ainda conta com um Verdi em estado de graça é, sem dúvida, uma ópera e tanto!
A montagem do Theatro da Paz
E tudo isso se pôde perceber na produção do Theatro da Paz. A concepção da montagem, de viés tradicional, foi criada a quatro mãos, entre o diretor e o cenógrafo, a partir de uma proposta do Pró-Reitor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pará, Flávio Augusto Sidrim Nassar. Sabendo que, neste ano, o Festival homenagearia os 200 anos de nascimento de Verdi, Nassar propôs que a homenagem se estendesse aos 300 anos de nascimento de Giuseppe Antonio Landi, arquiteto italiano cujo trabalho na capital paraense é marcante. Com isso, a cenografia da ópera foi inspirada em obras de Landi.
A direção de Mauro Wrona mostrou-se bastante eficiente, buscando sempre a expressão clara do drama. Praticamente todos os solistas estiveram bem cenicamente, e apenas a atuação do tenor italiano não me agradou muito. Calcanhar de Aquiles para muitos diretores, o conjunto coral também teve razoável movimentação. Merece destaque a mão precisa com a qual o diretor conduziu Azucena, claramente reconhecendo nela a grande protagonista da ópera.
Num momento de ousadia, Wrona mostrou parcialmente, no fundo do palco, a decapitação de Manrico, e também fez Azucena gargalhar nos derradeiros acordes da orquestra, comemorando finalmente a esperada vingança exigida por sua mãe, para logo depois cair, ao mesmo tempo satisfeita com a vingança e dilacerada pela dor da perda do filho que criou com amor como se fosse seu. Ousadias justificáveis e perfeitamente compreensíveis.
No geral, o trabalho de Mauro Wrona foi de muito boa qualidade e bastante superior às ideias ridículas e vazias de Bia Lessa quando da produção da mesma obra no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2011. Naquela ocasião, a morte de Manrico se dera como num número de mágica do Mr. M, logo depois de Leonora ser tragada pela terra – além de muitas outras arbitrariedades: mais bizarro, impossível. E voltando a Belém: como é bom ver um Trovador de verdade!
Os cenários de Pietro Lenzini, fazendo referência, como já mencionado, a obras de Landi em Belém, se mostraram simples e bastante funcionais. Se não primaram pela riqueza, por outro lado ambientaram a ação sem recorrer a invencionices e proporcionaram rápidas trocas de cena. A correta luz de Wagner Antônio auxiliou bem esta ambientação, e os belos e adequados figurinos de Elena Toscano complementaram muito bem a atual produção belenense.
Na récita de 30 de agosto, o Coral Lírico do Festival de Ópera do Theatro da Paz, preparado por Vanildo Monteiro, teve razoável rendimento. As vozes femininas estiveram um nível acima das masculinas, e as principais passagens (Vedi! le fosche notturne spoglie, Squilli, echeggi la tromba guerriera e o doloroso Miserere do último ato) foram, no geral, bem defendidas, registrando-se apenas uma ou outra nota que não soaram muito audíveis.
A Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz apresentou um excelente rendimento sob a inspirada regência de Sílvio Viegas, maestro titular da Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Conhecedor da obra, o maestro, que já a interpretara no Rio em 2011, desta vez não teve seu trabalho prejudicado pela direção de cena, como ocorrera naquele ano. Viegas soube extrair do conjunto um som homogêneo e seguro, acompanhou os cantores com inteligência e sensibilidade, e realizou, junto com os músicos, um grande trabalho.
Na comparsaria, o baixo Andrey Mira (um velho cigano), a mezzosoprano Elizabeth Melo (Inês) e os tenores Marcos Carvalho (mensageiro) e Antônio Wilson Azevedo (Ruiz) não comprometeram em suas pequenas partes.
O baixo Sávio Sperandio deu, logo no começo, o tom da noite, ao abrir a ópera com uma belíssima Abbietta zingara, demonstrando a agilidade requisitada pela partitura, a sua sempre exuberante projeção e uma convincente caracterização de Ferrando, o que resultou em mais uma de suas grandes atuações.
O barítono Rodolfo Giugliani teve uma excelente prestação como o Conde di Luna. Desde o terceto com Manrico e Leonora no primeiro ato, Di geloso amor sprezzato, passando por sua grande ária, Il balen del suo sorriso, e respectiva cabaletta, Per me, ora fatale, até as demais cenas com Azucena e Leonora, o solista demonstrou boa agilidade, boa projeção, belo fraseado e um timbre nobre. Apesar de alguns pequeninos problemas de pronúncia na ária supracitada (como ao pronunciar tuo em vez de suo), não tenho dúvidas em afirmar que, dentre aquelas que eu pude presenciar, esta foi a melhor atuação de Giugliani, que compôs um Conde musicalíssimo.
A soprano Eliane Coelho, a grande diva brasileira que dispensa maiores apresentações, deu muito boa conta de Leonora. Nas passagens em que sua voz não se sentia tão à vontade, como naquelas que exigem maior agilidade, sua qualidade técnica compensou; e nas passagens mais líricas, Eliane mostrou a grande cantora que é, de voz poderosa e presença marcante. Foi belíssima sua interpretação da grande ária da personagem, D’amor sull’ali rosee. Apreciar a arte de Eliane Coelho é um prazer inesgotável.
O tenor italiano Walter Fraccaro foi, no geral, um bom Manrico. O artista demonstrou, ao longo da noite, uma voz segura, bem projetada e de belo timbre heroico. Esteve bem em seus duetos e tercetos e na ária Ah! Sì, ben mio. Aí veio a cabaletta: se cantou Di quella pira no tom original, atingindo o famoso dó de peito que Verdi não escreveu, por outro lado fugiu dos trinados e recusou-se a cantar o da capo da cabaletta. Será que algum dia ouvirei esta cabaletta completa no Brasil? Além disso, em alguns momentos, sua presença cênica não me convenceu tanto. Pelo exposto, o solista italiano foi um bom Manrico, mas não foi ótimo, nem tampouco excelente.
Chegamos, então, à grande protagonista deste Trovador: como Azucena, a mezzosoprano Denise de Freitas, sem qualquer margem de dúvidas, teve uma das maiores atuações de sua carreira, se não a maior. No auge de sua maturidade vocal, a artista enfrentou a parte da cigana com bravura, em todos os sentidos. Cenicamente, sua performance foi exemplar, dotada de uma verdade e de uma inteligência dignas do mais alto respeito e de profunda admiração. Através da intérprete, foi possível perceber cada nuance da personalidade atormentada de Azucena: seu grande amor maternal por Manrico, o filho que criou como se fosse seu; sua profunda angústia por não ter comprido o juramento de vingança que fez à sua mãe, queimada na fogueira; seu desespero pela lembranças macabras de um passado que não se apaga. Tudo, em Denise, é entrega. E ela se entregou à Azucena de tal forma que é impossível não se emocionar com sua atuação.
Vocalmente, a solista demonstrou porque é, hoje, a melhor cantora brasileira em seu registro. Sua voz quente e escura encaixou-se perfeitamente na partitura de Verdi, e cada detalhe foi por ela valorizado, às vezes até deixando de lado um pouquinho a busca por uma pureza interpretativa, para explorar mais os recursos da dramaticidade vocal: também se representa com a voz. Dos generosos graves aos agudos retumbantes, a voz da mezzo tomou conta do teatro belenense, invadiu cada espaço do auditório, conquistou e emocionou o público. Perfeita desde o Stride la vampa! até o Sei vendicata, o madre!, talvez o melhor momento da solista em toda a noite tenha sido no clímax de seu racconto, Condotta ell’era in ceppi, de grande eletricidade dramática, no qual ela foi muito bem apoiada pela orquestra e pelo regente. No fim da noite, a cantora foi ovacionada pelo público, e recebeu vários gritos de “brava!”. Um deles, bem caprichado, foi meu.
Depois da elogiada produção de O Elixir do Amor e deste belo O Trovador, o XII Festival de Ópera do Theatro da Paz terá ainda, a partir de 21 de setembro, uma produção de O Navio Fantasma, de Wagner, compositor que será encenado pela primeira vez naquela casa. A montagem, com direção de Caetano Vilela, regência de Miguel Campos Neto e cenários de Duda Arruk (a mesma cenógrafa da elogiada Salomé de 2012), terá o barítono Rodrigo Esteves como protagonista.
Para reflexão
Não posso encerrar sem deixar uma questão para a reflexão dos leitores:
Como o regente titular da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro tem seu talento reconhecido no Brasil (O Trovador – Belém) e no exterior (O Navio Fantasma – La Plata, Argentina, em outubro próximo), mas não tem uma operazinha sequer para conduzir na casa da qual é o regente titular? Será que é por que a temporada de óperas do Municipal do Rio é mesmo bem chinfrim em termos quantitativos como eu tenho defendido? Afinal, o Municipal demora um ano inteiro para montar a mesma quantidade de óperas que o Theatro da Paz monta em dois meses, guardadas as devidas proporções inerentes a um belo festival com o belenense.
Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/
Em cartaz até este domingo, 1° de setembro, Il Trovatore (O Trovador) foi o segundo título apresentado no XII Festival de Ópera do Theatro da Paz, em Belém. A obra, em quatro atos e oito cenas, tem música de Giuseppe Verdi e libreto de Salvatore Cammarano (complementado por Leone Emanuele Bardare), por sua vez baseado no drama El Trovador, do espanhol Antonio García Gutiérrez.
O libreto
O Trovador é uma das óperas mais populares de que se tem notícia, devido, claro, à magistral música de Verdi. Sua poesia foi confiada ao napolitano Salvatore Cammarano, um dos grandes libretistas daquele tempo, que já havia trabalhado duas vezes com Verdi e que havia sido um dos principais colaboradores de Donizetti (foi o napolitano quem escreveu a poesia de Lucia di Lammermoor, por exemplo). Cammarano morreu antes de concluir o trabalho, ou, segundo outra versão, antes de concluir todas as modificações de que o compositor necessitava. Restando sua viúva e filhos em precárias condições, Verdi pagou à família pelo trabalho do poeta como se concluído estivesse e ainda acrescentou 100 ducados além do combinado.
Um amigo de Verdi, Cesare de Sanctis, contratou para o maestro o jovem poeta Leone Emanuele Bardare, que completou o libreto e ainda se encarregou dos ajustes necessários. Da correspondência de Verdi, pode-se depreender que saíram certamente da pena de Bardare as árias Il balen del suo sorriso e D’amor sull’ali rosee – ambas respondendo a solicitações expressas do compositor. É notório, ainda, que o próprio Verdi refez o texto da segunda cena do segundo ato e encurtou os versos finais da ópera.
Ferrando, o chefe da guarda, começa a ópera narrando uma história do passado, primordial para a compreensão da tragédia. Atualizados sobre os fatos, vemos Manrico e o Conde di Luna brigarem pelo amor de Leonora até a cena final, quando Azucena faz uma revelação que tudo esclarece, causando o derradeiro efeito catártico. Antes disso, peripécias e reviravoltas embalam o ouvinte sem que este perceba o tempo passar.
Azucena
Azucena é um caso à parte. Não seria qualquer exagero afirmar que ela é o centro dramático da ópera. A personagem é uma das maiores criações de Verdi, não somente para mezzosoprano, mas para qualquer registro vocal. Sua constante oscilação entre momentos de transe e de lucidez – alternando terríveis lembranças do passado, seu compromisso de vingar a mãe queimada na fogueira e o amor por aquele que criou como seu próprio filho – apresenta uma mulher, nas palavras do professor Sérgio Casoy no programa de sala, “neurótica, física e mentalmente exausta, estressada, que passara seus últimos vinte anos sem relaxar nem dormir direito.”
A intensa cena da cigana no segundo ato, desde Stride la vampa até o final de seu racconto é uma das mais emocionantes de toda a história da lírica e, quando interpretada por uma artista verdadeiramente qualificada, eleva a tensão a níveis estratosféricos. Uma artista de tal gabarito estava presente em Belém, como se verá adiante. Não é à toa que, para Verdi, a grande personagem feminina da ópera não era Leonora, mas sim Azucena. A propósito de esta parte ser secundária, opôs-se certa vez o compositor em carta a Francesco Maria Piave: “na verdade, não. É primeira, primeiríssima, mais bela, mais dramática, mais original que a outra (Leonora). Se eu fosse uma prima donna, faria sempre no Trovador a parte da cigana”.
A música
A história de Gutiérrez iluminou a imaginação de Verdi mesmo quando Cammarano, no início, não se mostrara muito entusiasmado com a proposta do compositor. Situada na Espanha do século XV, durante a Guerra Civil, a ópera é uma das criações mais genuínas do grande mestre. Sua inspiração parece fervilhar em melodias soberbas encaixadas uma após a outra, quase sem intervalo. O racconto de Ferrando no primeiro ato, o solo de Azucena após o coro de introdução e a grande ária do Conde, ambos no segundo ato, assim como a ária e a cabaletta de Manrico no terceiro ato, ou o grande solo de Leonora na abertura do ato final são exemplos definitivos da prodigalidade melódica de Verdi durante seu período médio.
Alternando momentos de lirismo, suspense, angústia, vigor e brutalidade, a música de O Trovador não encanta apenas pela sua riqueza vocal, mas também pela cor sinistra que, em muitos momentos, percebemos na orquestra. A orquestra cria a atmosfera para as vozes brilharem incandescentes de paixão. Amor, ódio, vingança, duelo, rapto, decapitação, suicídio e até uma criança queimada viva na fogueira são os ingredientes desta obra-prima. Apesar do seu lado dramalhão, uma obra que possui todos esses ingredientes e ainda conta com um Verdi em estado de graça é, sem dúvida, uma ópera e tanto!
A montagem do Theatro da Paz
E tudo isso se pôde perceber na produção do Theatro da Paz. A concepção da montagem, de viés tradicional, foi criada a quatro mãos, entre o diretor e o cenógrafo, a partir de uma proposta do Pró-Reitor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pará, Flávio Augusto Sidrim Nassar. Sabendo que, neste ano, o Festival homenagearia os 200 anos de nascimento de Verdi, Nassar propôs que a homenagem se estendesse aos 300 anos de nascimento de Giuseppe Antonio Landi, arquiteto italiano cujo trabalho na capital paraense é marcante. Com isso, a cenografia da ópera foi inspirada em obras de Landi.
A direção de Mauro Wrona mostrou-se bastante eficiente, buscando sempre a expressão clara do drama. Praticamente todos os solistas estiveram bem cenicamente, e apenas a atuação do tenor italiano não me agradou muito. Calcanhar de Aquiles para muitos diretores, o conjunto coral também teve razoável movimentação. Merece destaque a mão precisa com a qual o diretor conduziu Azucena, claramente reconhecendo nela a grande protagonista da ópera.
Num momento de ousadia, Wrona mostrou parcialmente, no fundo do palco, a decapitação de Manrico, e também fez Azucena gargalhar nos derradeiros acordes da orquestra, comemorando finalmente a esperada vingança exigida por sua mãe, para logo depois cair, ao mesmo tempo satisfeita com a vingança e dilacerada pela dor da perda do filho que criou com amor como se fosse seu. Ousadias justificáveis e perfeitamente compreensíveis.
No geral, o trabalho de Mauro Wrona foi de muito boa qualidade e bastante superior às ideias ridículas e vazias de Bia Lessa quando da produção da mesma obra no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2011. Naquela ocasião, a morte de Manrico se dera como num número de mágica do Mr. M, logo depois de Leonora ser tragada pela terra – além de muitas outras arbitrariedades: mais bizarro, impossível. E voltando a Belém: como é bom ver um Trovador de verdade!
Os cenários de Pietro Lenzini, fazendo referência, como já mencionado, a obras de Landi em Belém, se mostraram simples e bastante funcionais. Se não primaram pela riqueza, por outro lado ambientaram a ação sem recorrer a invencionices e proporcionaram rápidas trocas de cena. A correta luz de Wagner Antônio auxiliou bem esta ambientação, e os belos e adequados figurinos de Elena Toscano complementaram muito bem a atual produção belenense.
Na récita de 30 de agosto, o Coral Lírico do Festival de Ópera do Theatro da Paz, preparado por Vanildo Monteiro, teve razoável rendimento. As vozes femininas estiveram um nível acima das masculinas, e as principais passagens (Vedi! le fosche notturne spoglie, Squilli, echeggi la tromba guerriera e o doloroso Miserere do último ato) foram, no geral, bem defendidas, registrando-se apenas uma ou outra nota que não soaram muito audíveis.
A Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz apresentou um excelente rendimento sob a inspirada regência de Sílvio Viegas, maestro titular da Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Conhecedor da obra, o maestro, que já a interpretara no Rio em 2011, desta vez não teve seu trabalho prejudicado pela direção de cena, como ocorrera naquele ano. Viegas soube extrair do conjunto um som homogêneo e seguro, acompanhou os cantores com inteligência e sensibilidade, e realizou, junto com os músicos, um grande trabalho.
Na comparsaria, o baixo Andrey Mira (um velho cigano), a mezzosoprano Elizabeth Melo (Inês) e os tenores Marcos Carvalho (mensageiro) e Antônio Wilson Azevedo (Ruiz) não comprometeram em suas pequenas partes.
O baixo Sávio Sperandio deu, logo no começo, o tom da noite, ao abrir a ópera com uma belíssima Abbietta zingara, demonstrando a agilidade requisitada pela partitura, a sua sempre exuberante projeção e uma convincente caracterização de Ferrando, o que resultou em mais uma de suas grandes atuações.
O barítono Rodolfo Giugliani teve uma excelente prestação como o Conde di Luna. Desde o terceto com Manrico e Leonora no primeiro ato, Di geloso amor sprezzato, passando por sua grande ária, Il balen del suo sorriso, e respectiva cabaletta, Per me, ora fatale, até as demais cenas com Azucena e Leonora, o solista demonstrou boa agilidade, boa projeção, belo fraseado e um timbre nobre. Apesar de alguns pequeninos problemas de pronúncia na ária supracitada (como ao pronunciar tuo em vez de suo), não tenho dúvidas em afirmar que, dentre aquelas que eu pude presenciar, esta foi a melhor atuação de Giugliani, que compôs um Conde musicalíssimo.
A soprano Eliane Coelho, a grande diva brasileira que dispensa maiores apresentações, deu muito boa conta de Leonora. Nas passagens em que sua voz não se sentia tão à vontade, como naquelas que exigem maior agilidade, sua qualidade técnica compensou; e nas passagens mais líricas, Eliane mostrou a grande cantora que é, de voz poderosa e presença marcante. Foi belíssima sua interpretação da grande ária da personagem, D’amor sull’ali rosee. Apreciar a arte de Eliane Coelho é um prazer inesgotável.
O tenor italiano Walter Fraccaro foi, no geral, um bom Manrico. O artista demonstrou, ao longo da noite, uma voz segura, bem projetada e de belo timbre heroico. Esteve bem em seus duetos e tercetos e na ária Ah! Sì, ben mio. Aí veio a cabaletta: se cantou Di quella pira no tom original, atingindo o famoso dó de peito que Verdi não escreveu, por outro lado fugiu dos trinados e recusou-se a cantar o da capo da cabaletta. Será que algum dia ouvirei esta cabaletta completa no Brasil? Além disso, em alguns momentos, sua presença cênica não me convenceu tanto. Pelo exposto, o solista italiano foi um bom Manrico, mas não foi ótimo, nem tampouco excelente.
Chegamos, então, à grande protagonista deste Trovador: como Azucena, a mezzosoprano Denise de Freitas, sem qualquer margem de dúvidas, teve uma das maiores atuações de sua carreira, se não a maior. No auge de sua maturidade vocal, a artista enfrentou a parte da cigana com bravura, em todos os sentidos. Cenicamente, sua performance foi exemplar, dotada de uma verdade e de uma inteligência dignas do mais alto respeito e de profunda admiração. Através da intérprete, foi possível perceber cada nuance da personalidade atormentada de Azucena: seu grande amor maternal por Manrico, o filho que criou como se fosse seu; sua profunda angústia por não ter comprido o juramento de vingança que fez à sua mãe, queimada na fogueira; seu desespero pela lembranças macabras de um passado que não se apaga. Tudo, em Denise, é entrega. E ela se entregou à Azucena de tal forma que é impossível não se emocionar com sua atuação.
Vocalmente, a solista demonstrou porque é, hoje, a melhor cantora brasileira em seu registro. Sua voz quente e escura encaixou-se perfeitamente na partitura de Verdi, e cada detalhe foi por ela valorizado, às vezes até deixando de lado um pouquinho a busca por uma pureza interpretativa, para explorar mais os recursos da dramaticidade vocal: também se representa com a voz. Dos generosos graves aos agudos retumbantes, a voz da mezzo tomou conta do teatro belenense, invadiu cada espaço do auditório, conquistou e emocionou o público. Perfeita desde o Stride la vampa! até o Sei vendicata, o madre!, talvez o melhor momento da solista em toda a noite tenha sido no clímax de seu racconto, Condotta ell’era in ceppi, de grande eletricidade dramática, no qual ela foi muito bem apoiada pela orquestra e pelo regente. No fim da noite, a cantora foi ovacionada pelo público, e recebeu vários gritos de “brava!”. Um deles, bem caprichado, foi meu.
Depois da elogiada produção de O Elixir do Amor e deste belo O Trovador, o XII Festival de Ópera do Theatro da Paz terá ainda, a partir de 21 de setembro, uma produção de O Navio Fantasma, de Wagner, compositor que será encenado pela primeira vez naquela casa. A montagem, com direção de Caetano Vilela, regência de Miguel Campos Neto e cenários de Duda Arruk (a mesma cenógrafa da elogiada Salomé de 2012), terá o barítono Rodrigo Esteves como protagonista.
Para reflexão
Não posso encerrar sem deixar uma questão para a reflexão dos leitores:
Como o regente titular da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro tem seu talento reconhecido no Brasil (O Trovador – Belém) e no exterior (O Navio Fantasma – La Plata, Argentina, em outubro próximo), mas não tem uma operazinha sequer para conduzir na casa da qual é o regente titular? Será que é por que a temporada de óperas do Municipal do Rio é mesmo bem chinfrim em termos quantitativos como eu tenho defendido? Afinal, o Municipal demora um ano inteiro para montar a mesma quantidade de óperas que o Theatro da Paz monta em dois meses, guardadas as devidas proporções inerentes a um belo festival com o belenense.
Leonardo Marques
Fonte: http://www.movimento.com/
Creio que o problema do municipal do Rio se chama Carla Camuratti...
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